Sobre temperamento, aplicações sonoras e adesivos

Ana Paula Paiva
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27 de abril de 2022

A linguagem verbal encontra-se integrada numa antropologia que, por essência, manifesta as conexões entre seres humanos, a sociedade e a cultura. Em todas as civilizações, a utilização de palavras foi e é o principal meio de comunicação entre os indivíduos, o meio sem o qual qualquer progresso no domínio da ciência, da cultura e a técnica seria impossível. No entanto, é necessário fazer alusão a outras relações de comunicação, como os tambores, as flautas e os sons agudos de altura definida a partir da expiração constante através do ar comprimido entre os lábios.

Às vezes confundido com o trinar de algumas aves, o silvo agudo da serpente ou o zunir do vento, o assobio deve ter sido o primeiro instrumento musical humano, antecedendo a percussão, a palma de mão, a batida na coxa e o esmurrar o próprio tórax, iniciativa dos gorilas enfurecidos e humanos de classe média e alta em aglomerações em prol da pátria e da família. Na nossa sociedade, o apito humano tem várias funções. Amigos combinam tons e ritmos para anunciar chegadas ou informar uma situação, entre os navegantes é chamada para o vento, os ladrões noturnos o usam para avisar o perigo ou tranquilizar os companheiros de jornada, os homens heterossexuais que não têm espelho em casa o utilizam para demonstrar desejo ou cobiça, os usuários de maconha mais atentos e simpatizantes com ele divulgam nas praias que há autoridades policiais fardadas sedentas pela aplicabilidade das leis antidrogas.

O proveito dos assobios é vasto e possibilita não apenas a transmissão de informações entre os humanos, mas entre estes e os animais. Caçadores comandam os cães ou chamam os animais pelo sibilo dos lábios. A prática é tão eficaz que inspira pais, mães, tutores e responsáveis a transportarem ótimos benefícios para a rotina das crianças. Tive contato com vários exemplos de sucesso ao longo da minha vida social. São dezenas de casos de criaturas cuja capacidade auditiva tornou-se impressionante a partir da pedagogia sibilar, e cujo senso de direção em ambientes públicos fez-se apurado quando a metodologia sonora na infância associava coleiras adaptadas ao uso das pequenas gentes.

Como esquecer esse companheiro do porteiro solitário regando o jardim do condomínio, da balzaquiana lavadoura de roupas e louças despreocupada e desguarnecida de caixinhas de som próprias para celulares, do jovem rumo à parada de ônibus quando não está atrasado, com um repertório globalizado que vai dos Guns and Roses a Caetano Veloso, assobiadores estelares de rádio, televisão e festivais.

Os mais insensíveis vão dizer que o assobio é uma manifestação acústica sem expressão, sem conteúdo relevante. Nesse sentido, há de se pronunciar uma revelação, ou melhor, um asterisco sobre o meu caso.

Vê-se que em certo dia de calor, a ida salubre à academia, o café-da-manhã saudável e acertado em nutrientes, o perfume de limão e a pintura no rosto não melhoraram organização emocional em um milímetro sequer. Diante das obrigações regulares, saia longa de linho, salto baixo, marmita, fones de ouvido com música relaxante e saí de casa rumo ao metrô na certeza pelo menos da formosura do traje da labuta, apesar do atraso e de prever a erupção vigorosa dos pingos de suor logo a seguir. Porém o reflexo no espelho do elevador deu uma notícia de caráter vacilante.

Apesar de o Sol arder o asfalto lá fora, dois rijos diamantes despontavam sob o tecido verde da blusa de golinha, cujo formato não permitia o uso de sutiã convencional. O pano elástico e fino em nada auxiliava no disfarce de um dado mais que óbvio do corpo de qualquer colega macho ou fêmea da espécie homo sapiens: a existência de um par de mamilos simetricamente posicionados na parte superior do tórax, indicando o local do músculo peitoral maior, como um belo exemplar de pessoa comum. A revolta ante a possibilidade daqueles mamilos eretos causarem uma surpresa despropositada no ambiente de trabalho — contribuindo para rechear ainda mais o vale das asneiras populares — chamejavam meu cérebro, que construía uma exposição de motivos para botar fogo em todas as peças de roupa íntima feminina do Estado do Rio de Janeiro naquela quarta-feira de março. Ao mesmo tempo a inteligência, derrotista, caçava, naqueles segundos de trajeto ao térreo, uma solução para o contratempo que não deveria ser um obstáculo à ida ao serviço ou a qualquer lugar no Via Láctea.

Resignada, me dirigi à abundante farmácia ao lado do prédio atrás de um protetor de mamilos descartável. Rapidamente encontrei o que necessitava. A quantidade de atendentes não preenchia todos os caixas existentes na loja. Este tipo de governança pestilenta, pouquíssimo eficaz e nocivamente comum em drogarias, cartórios e bancos rendia a mim breves elucubrações ao fim da fila, que avançava devagar, mas constantemente, em um ritmo que sossegava aquele coração quase aflito por estar atrasada. O frenteiro foi chamado ao atendimento. Otimismo. Entretanto percebi que o suporte ao rapaz estava demorando e levantei a cabeça para investigar de longe o motivo do vagar. Todavia um rasgo sonoro atrás de mim rompeu de vez a calma matutina.

— Fite, fite, fiuiite…

Em algumas situações, assobios em meus ouvidos equivalem a golpes com facas nas principais veias que irrigam coração e pulmões, alterando os batimentos cardíacos e a frequência respiratória, encadeando uma reação de choque cuja abrangência alcança primeiro a lombar, percorrendo lentamente a coluna até a cervical. O volume da irritação nivela-se ao desconforto causado pela interação compulsória com um artista que faz rimas — de qualquer estilo musical — em uma cápsula de transporte público da qual não consiga me livrar imediatamente, e varia de intensidade de acordo com a semana do mês e se estou em pé ou sentada. Um último vicejo à franqueza: o problema do assobio é a obrigação de interagir com demonstração autêntica da felicidade alheia em meio a um distúrbio psicológico absolutamente pessoal e momentâneo, evidenciando uma fissura ainda significativa na minha evolução espiritual.

Os cartões do garoto não passavam por falta de saldo e assim começou um debate brando de como aquilo seria resolvido. Enquanto isso, a idosa curva e platinada assoviava atrás de mim olhando preços de itens que ela certamente não iria comprar. A senhora se aproximava das minhas costas, os agudos se elevavam e eu calculava se na minha poupança havia dinheiro suficiente para pagar uma fiança volumosa em caso da perda do réu primário por conta de homicídio qualificado. Ela me ultrapassou e foi falar com o garoto, demonstrando a intimidade de uma avó ou tia.

— Você aí cheio de dinheiro na carteira e não tá conseguindo pagar?

— Que dinheiro?

— Eu vi você pegando dinheiro saindo de casa, garoto!

— Eu?

— Olha aí!

Lentamente ele foi testar a hipótese da parente longeva e ele assentiu profusamente com interjeições, alongando bem as vogais para demonstrar maravilhamento. Mas ele teimava em pagar com um dos cartões, sacou o celular para transferir dinheiro de não sei aonde para outra conta, e minha fé sofria abalos acentuados. Alguns minutos depois, o problema estava resolvido e as sacolinhas de plástico foram para as mãos deles. No êxtase de aproveitarem a compra o quanto antes, as capivaras viraram-se bruscamente e derrubaram uma prateleira inteira de desodorantes.

A trilha sonora de estampidos agudos durou em torno de três segundo, contudo teve o poder de me carregar até a antessala do inferno. Em tempo de me livrar das labaredas, vi os oito braços de Durga me envolverem com toda a bravura da natureza cósmica feminina. Tornei-me invencível quando fui finalmente convocada pela mocinha do caixa sob um derramamento de produtos utilizados nas axilas humanas, como se andando sobre as águas estivesse. Pulei os escombros e alcancei a rua, de mamilos salientes, testa suada, em estado lúcido, valorizando ainda mais a nudez dos corpos e da alma, em mais um dia sem recorrer à ingestão de ansiolíticos.

Rio de Janeiro pela fé.

Oremos

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