Sobre tensão arterial, cuidado seletivo e turismo

10 de agosto de 2020

Ana Paula Paiva
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5 min readAug 10, 2020

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O valor que damos às coisas que acreditamos serem de nossas posses, mesmo que temporariamente, muitas vezes é diretamente proporcional ao esforço em conquistá-las. Essa regra aplica-se perfeitamente à busca de apartamento para alugar no Rio de Janeiro, jornada que mistura sorte, perseverança, poder aquisitivo, negociação agressiva e fé em encontrar um local em que se possa dormir dignamente sem entregar mensalmente o montante equivalente ao valor no mercado negro de um par de órgãos humanos produtores de urina.

Com a minha moradia atual não foi diferente. Em meio a dezenas de quilômetros percorridos a pé na fuga da diminuta quitinete na qual morei mais tempo do que minha autoestima gostaria, a meditação diária frutificou em uma conversa aleatória na praia com amigos alheios. Os anjos do Senhor me deram ciência, nas areias de Ipanema, da existência de habitação vazia, em reforma, mas quase pronta para ser alugada. Os oito andares do prédio antigo eram preenchidos com vários apartamentos idênticos, sendo que em um deles inclusive eu havia habitado de favor por três semanas uns dois anos antes. Com vista diagonal à varanda do meu primeiro lar na Cidade Maravilhosa, era bem próximo ao metrô e rodeado pelo farto comércio de uma das principais ruas da Zona Sul. Todavia este cenário, embora muito salutar e merecedor de comemorações efusivas até a data presente, ali era coadjuvante defronte do anseio que estava prestes a sair do plano das ideias.

Finalmente eu poderia receber as valorosas companhias temporárias de fora da cidade com o conforto merecido. Diante das encruzilhadas que somente a pindaíba pode te proporcionar, deixei a máquina de lavar roupas em segundo plano para adquirir primeiramente a bicama, os travesseiros, a mesinha de cabeceira, prateleiras e dois jogos de lençóis do quarto auxiliar. Foram muitos momentos felizes da mudança do Flamengo para Botafogo, da quarta para a quinta residência no Rio de Janeiro. Mas, ao ver pronto o pedacinho do meu lar dedicado especialmente às visitas, finalmente compreendi o sentimento de quem é brindado com as centenas de eletroeletrônicos e mantimentos do Caminhão do Faustão.

Sendo tão carregado de energias positivas, este quarto até bem recentemente acolheu amigos e parentes em gostosa frequência. Munida de roteiro variado, pelo menos uma vez por mês recebia um turista cobiçoso por músicas e comidas típicas do Rio de Janeiro. Quanto mais o excursionista conhece a cidade, mais desafiador e estimulante é construir a exposição completa e metódica das ruas, monumentos, museus e restaurantes dignos de serem visitados em curtos períodos. E tenho uma hóspede em especial pela qual me esmero nas pesquisas não só por apreciar muito a companhia física, contudo para estar à altura de seu elevado repertório turístico. Talvez por ser uma viajante quase profissional ao redor do globo, ávida por aventuras, energeticamente a atração vá bem além dos pontos de interesse.

Em 2017, Camila chegou para passarmos um fim de semana pacífico, ardendo em chamas do Verão carioca. No itinerário, o mar violento da praia que quase roubou os nossos chinelos duas vezes, comprinhas e sorvete nas ruas chiques de Ipanema, barzinho pra refrescar o início do fim do sábado antes de uma noite de samba na quadra do GRES Acadêmicos do Salgueiro, no Andaraí. Entre as atrações, ver de perto o ensaio de Carnaval da Viviane Maravilhosa Araújo ao som da orquestra de percussão da escola vermelha e branco. Novidades auspiciosas para ambas se aproximando, vestimos roupas novas para aproveitar ao máximo o evento principal daqueles dois dias de lazer da hóspede brasiliense.

Chegamos à quadra e fizemos o reconhecimento do local. Compramos churrasquinhos com vinagrete e, humildes, apenas um baldinho de cerveja para compartilhar. Porém os ventiladores não faziam jus aos pingos de suor que escorriam da testa de todos e, talvez por isso, o líquido dourado foi por nós consumido rapidamente. Animadas com o batuque, compramos mais latas, que se esvaziaram quase que espontaneamente, em velocidade semelhante às anteriores. Dessa forma a noite evoluiu alegremente e, chacoalhando o esqueleto e as carteiras num indo e vindo infinito entre o bar e a pista, nos vimos totalmente integradas à cultura da Zona Norte da capital fluminense, como se lá tivéssemos nascido e sido criadas.

O tempo passou veloz e lá pelas tantas a apresentação da bateria furiosa cessou e um DJ prometia manter a diversão do coletivo. Os anfitriões geralmente aproveitam esse intervalo para dar avisos importantes, mas que passam desapercebidos perante a animação inconfundível ao tardar das festas cariocas. Afogada nos efeitos da bebida fermentada consumida em série, uma força desconhecida e graúda fez com que eu, na velocidade das vertebras de uma preguiça-de-coleira, agarrasse o braço e berrasse pausadamente na pobre orelha da amiga:

— AGORA É UMA HORA IMPORTANTE DO ROLÊ, CAMIX! TEMOS QUE PRESTAR ATENÇÃO NAQUELE HOMEM!

Uma intuitiva e outra apenas obedecendo ao comando da dona da hospedaria, ambas ficaram paradas, em silêncio, sem racionalmente entender direito o porquê. Sem perder tempo, o locutor em suas primeiras frases anunciou:

— ANA PAULA PAIVA DOS SANTOS: SUA CARTEIRA DE MOTORISTA ESTÁ AQUI.

O álcool, realmente tóxico ao organismo e ao espírito humano, tem a habilidade de possibilitar o mergulho profundo em um senso de urgência tão soberano quanto, às vezes, desnecessário. Ao ouvir o meu nome completo sair da boca daquele desconhecido, o pico de adrenalina me fez sair correndo, desrespeitando o espaço, os pés e a diversão de idosos, crianças e casais amontoados. Me descobri dominada por um medo arrebatador de que o meu documento seria descartado ou entregue a outra pessoa se eu não chegasse ao palco mais que rapidamente. “Como eu vou provar que eu sou eu, meu Deus do céu, se eu tô sem documento?”, raciocinei durante o trajeto apinhado de 300 metros, esquecendo totalmente da existência da foto 3x4 que consta de qualquer instrumento oficial que têm o condão de comprovar inequívoca e irrefutavelmente a identidade de um indivíduo. A aflição crescia ao lembrar das dificuldades imensas que a burocracia nacional inflige aos cidadãos brasileiros, fora as taxas abusivas, para a emissão de segundas vias e a demora sem fim para chegar o novo, deslembrando ao mesmo tempo da existência de milhares de outros documentos de vários órgãos governamentais que constam das minhas gavetas e de que nem carro eu tenho nessa cidade. Atrás de mim, Camila arrematou o papel de pedinte de desculpas ao renque de ofendidos com razão.

Com a face da reprovação pelo deslize com relação aos objetos pessoais, o prestimoso moço do microfone me devolveu imediatamente o documento assim que gritei o meu nome. Ofegante, Camila me alcançou e acalmou os ânimos. Rimos bastante e recorremos ao óbvio destino dos dias e noites de luta e de glória.

Mais quatro cervejas, por favor.

Rio de Janeiro pela fé.

Sambemos.

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