Cruzando a Transilvânia de bicicleta

Samuel Tonin
Sobrebarba
Published in
11 min readAug 21, 2016

Não faltavam exemplos de amigos próximos que largaram tudo pra rodar o mundo em cima de uma bicicleta, ou foram explorar a cultura e as estradas de várias de regiões do Brasil pedalando, remando e de carro; e tem até amigo que resolveu escalar as 7 montanhas mais altas do mundo!

Exemplos que podem ser tão inspiradores quanto assustadores. Imagina só se aventurar por aí com o básico do básico na mochila, às vezes sem falar nada da língua local, com certeza de pegar chuva forte, sol de rachar, frio, calor e pneu furado? É um baita perrengue! Principalmente se for um ciclista de primeira viagem, como eu, que só pedala entre o trabalho e casa.

Mas é possível ter esse gostinho de aventura sem necessariamente largar pra trás o emprego, os amigos e as cuecas limpas (bom, as cuecas limpas talvez precise, sim). Se organizar direito, dá pra encaixar uma aventura de bicicleta em qualquer viagem de férias. E tem muita empresa especializada em facilitar a sua trip com transporte de malas e reserva de pousadas pelo caminho.

A alegria de quem ainda tem cuecas e meias limpas pra usar…

Foi assim que cruzei a região da Transilvânia, na Romênia, de bicicleta: 7 dias, 300km de terreno plano, muitas descidas e algumas subidas bizarras, sol, chuva, poeira, estrada de terra, asfalto, rodovia, passando por mais de 80 vilarejos que pararam no tempo.

O trajeto foi desenhado com base na localização de alguns principais castelos da Transilvânia e fugindo das vias principais. O lance é procurar sempre por estradas secundárias. Assim a viagem fica um pouco mais longa e bem mais interessante (e segura).

Cada dia a paisagem muda radicalmente. De montanhas a descampados, pastos e plantações de gira-sóis.

Esse aqui foi o nosso mapa, saindo de Braşov até Sibiu, com 6 paradas no caminho (Zărneşti, Făgăraş, Sighişoara, Biertan e Nucet) pra dormir e recarregar a mochila com água e comida.

Um bom trajeto pra se fazer é saindo de Brasov em direção a Sibiu. Mais plano e com menos subidas

Dia 1: Braşov (entrando no clima)

A aventura pela Transilvânia começou Braşov, uma cidade turística com 280 mil habitantes no norte da Romênia.

Foi lá que o Conde Vlad Tepes III (também conhecido como Conde Drácula) tocou o terror contra os Otomanos, torturando e empalando dezenas de milhares de invasores. Era tanto sangue nos olhos que não é de se espantar que ele tenha sido transformado na lenda que todo mundo conhece. Mas apesar de a Transilvânia viver do turismo em torno do vampiro, a região é culturalmente bem mais rica e com um dos cenários mais incríveis pra se conhecer pedalando.

Braşov ainda preserva muito da era medieval, quando era cercada por muros. E é muito bacana pra explorar, batendo perna entre os becos, beber e comer bem (e barato).

Braşov ainda preserva muito da era medieval, quando era cercada por muros. A cidade foi, em 1241 e 1285, alvo de ataques tártaro-mongóis

Por isso nesse dia não rolou bicicleta. A idéia foi relaxar e aproveitar antes de a aventura que começa de verdade no dia seguinte a partir de Zărneşti, uma cidadezinha colada a Braşov e perto dos dois primeiros castelos da viagem.

Dia 2: Zărneşti — Bran (e como dá pra se comunicar sem falar nada da língua)

A empresa que alugou as bicicletas e ajudou com os mapas, instruções e pousadas deu uma carona até Zărneşti, uma vilinha que fica só a 20 minutos do centro de Braşov.

Pra começar de leve: 23,5km entre Zărneşti e Bran

É a partir dali que dá pra seguir por estradas secundárias, fugindo de rodovias movimentadas e é em torno de Zărneşti que estão já outras duas vilas com castelos pra serem visitados num mesmo dia: Raşnov e Bran (o castelo onde morou o Conde Drácula, a maior roubada papa-turista que existe na Romênia, mas vale a pedalada até lá).

Em Bran: o castelo onde morou Vlad Tepes III, o Impalador, também conhecido como Conde Drácula

Assim que a gente chegou em Zărneşti, um senhor esperava pela gente na porta da pensão ao lado das duas bicicletas que seriam nosso único meio de transporte pela próxima semana. Na mão dele uma sacola de plástico e um envelope. Sério, o cara parecia ter saído de um filme de vampiro: pálido pra caramba, magro, olhos fundos, voz rouca… Mas a maior preocupação foi entender o que ele falava. Acho que até pra quem fala romeno devia ser complicado. Tentar se comunicar numa língua estranha é uma das coisas mais bacanas de uma aventura como essa. É quando a gente aprende que comunicação é muito mais que palavras. De alguma forma acaba rolando. É só querer.

Taí o kit completo da mochila de todos os dias, fora a água e a comida

Na sacola tinham um kit de primeiros socorros, bomba de ar e ferramentas caso a gente precisasse reparar a bike no caminho. No envelope tinham mapas impressos com as estradas secundárias marcadas a caneta e instruções de como seguir por elas

Dica: se for fazer uma trip dessa, assim que pegar a bicicleta faça um check-up completo.

Nos primeiros 15 minutos de pedalada tentando achar a saída pra Bran, passei num buraco bizarro na rua e o pneu estourou. Não tinha remendo que resolvesse. Parei numa oficina na saída da cidade e só aí me dei conta que precisava também calibrar os freios, regular o câmbio, alinhar das rodas… Quase trocar de bicicleta!

O Stelian (primeira foto) tem uma oficina nos fundos de casa, bem na saída de Zărneşti. Ele trabalha com a mãe consertando as bicicletas de quem passa por ali.

O cara da oficina também não falava inglês. Mas a necessidade de resolver um perrengue faz milagres. Sem falar nenhuma palavra em comum deu pra conhecer o Stellian. O cara é gente finíssima, trabalha com a mãe na oficina que ele tem no fundo de casa e deixou as duas magrelas prontas pra aguentar o tranco dos 300km que a gente tinha pela frente. E até rolou uma dica de uma estrada com um visual foda, atravessando uma floresta, que a gente pegaria no dia seguinte.

Dia 3: Zărneşti — Făgăraş (e o ritmo da bicicleta)

Uma das vantagens de conhecer uma região de bicicleta é o ritmo. Quando você pedala, você está rápido o suficiente pra cobrir distâncias maiores e lento o suficiente pra sentir de verdade o lugar, perceber a mudança no clima, na vegetação, na paisagem, nos cheiros. Fora a liberdade pra explorar um canto que você normalmente nem veria se estivesse de carro.

E isso ficou muito claro no trajeto de Zărneşti a Făgăraş: a prova de fogo de toda a trip.

67km, mas com uma looonga descida.

Foram 67km passando por pelo menos oito vilarejos diferentes: Poiana Marului, Sinca Noua, Sinca Veche, Sercaita, Bucium, Margineni, Harseni, Ileni… alguns com menos de 300 habitantes e com uma paisagem de tirar o fôlego!

Sol de lascar, lambrecado de protetor solar 70 e um temporal que refrescou os 20km finais até Făgăraş.

Dia 4: Făgăraş — Sighişoara (e a caça pelas chaves dos castelos abandonados)

O visual de montanha do dia anterior foi ficando pra trás e aqui o cenário muda pra uma área mais rural da Transilvânia. E nem precisa usar muito a imaginação pra ver como era passar por ali na era medieval.

Muitas das vilas (como Cincu, Merghindeal, Dealu Frumos e Netus) ainda estão com seus castelos de pé sendo guardados por algum morador. É só saber a quem perguntar pela chave pra poder entrar e conhecê-lo por dentro. Algumas instruções estavam ano envelope que o velhinho entregou no primeiro dia. Coisas como:

“Se quiser visitar o castelo em Cincu, pedale até a praça, procure por uma cabine telefônica. A chave está na casa pintada de verde, logo depois da cabine. Peça a “cheie” (chave em romeno) para o Sr. Manolescu. Ele é o guardião da chave”.

Torre do castelo na vila de Netus, região central da Transilvânia

Essa gincana por vilarejos perdidos no interior da Transilvânia acaba depois de 50km, muitos deles de subida, em Sighişoara, uma cidade medieval murada onde nasceu o Conde Drácula, em 1431.

Por ser uma cidade turística ela tem uma infra bem melhor. Aqui dá pra pegar um hotel bacana com piscina, banho quente, comer e descansar para o restante da viagem.

Sighişoara, a cidade medieval onde nasceu o Conde Drácula em 1431

E se passar por lá não deixe de visitar o cemitério no ponto mais alto da cidade. Ele é IMPRESSIONANTE! Só não se esqueça de sair dele antes das 20h ou vai ficar trancado pra dentro.

Cemitério no topo da cidade medieval de Sighişoara

Palavra de quem precisou subir no telhado da capela e pular o muro pra escapar. ;)

Dia 5: Sighişoara — Biertan (e a calada noite preta)

Próximo destino: Biertan. Mais uma vila histórica de 2890 habitantes fundada em torno de 1283.

O bacana é que o trajeto desse dia é relativamente curto. Pouco mais de 38km, mas com três subidas pesadas no caminho.

38km de Sighişoara a Biertan cheios de altos e baixos

Logo na saída de Sighişoara caímos numa rodovia, um momento tenso pra quem nunca pedalou em autoestrada. Mas é só chegar na vila de Danes, a 8km de Sighişoara, que já é possível desviar para por uma área rural com estradas de terra praticamente desertas.

Por isso é bom sair logo e com disposição pra chegar rápido e aproveitar esse vilarejo histórico, seu castelo, que na verdade é uma igreja fortificada, beber cerveja na praça e comer pra caramba num restaurante de comida medieval que tem ali.

Quando anoitece dá pra entender um pouco mais porque tanta história de vampiro surgiu nessa região. O vilarejo fica completamente deserto e silencioso. Baita climão.

É nessa vila que também acontece em Agosto o Lună Plină (Lua Cheia), um festival de filmes de horror. Nos 3 dias de festival a vila recebe milhares de pessoas de toda a Romênia.

Dia 6: Biertan — Nucet (ou quando o destino não está nem no mapa)

Mesmo que você esteja pedalando sozinho num lugar deserto é certo que vai fazer amigos pelo caminho. Foi assim que conheci o Däniel e Bianca. Ele holandês e ela romena. Eles vinham pedalando seguindo outras estradas secundárias e vez ou outra cruzavam os nossos caminhos se cruzavam.

Däniel, Bianca e as cabras desgovernadas.

E foi num desses encontros que aprendemos uma grande lição: cuidado com onde deixa as bicicletas na hora de descansar. Elas podem ser atacadas por uma horda de cabras descontroladas comedoras de freio. :)

Biertan — Nucet: 53km até chegar ao vilarejo fora do mapa

Bem na reta final, a gente viu que o destino Nucet não estava no mapa! Nem a Bianca, que é romena, tinha ouvido falar. O jeito era seguir as instruções que a gente tinha por escrito e acreditar que 53km à frente existia esse lugar.

Agora imagina chegar numa vila deserta, já sem água e sem comida na mochila, cansados pra caramba, tempestade chegando. “FU-DEU” é a única palavra que vinha à cabeça.

Mas nos lugares mais improváveis é que acontecem as melhores surpresas. Bem ali, na saída de Nucet, fica a BioHaus, uma pensão de um casal romeno gente finíssima. E abrigo certo de ciclistas que passam por ali.

Abrigo por uma noite em Nucet

Só de ver o nosso estado eles já vieram com jarras de água, limonada e (muita) cerveja! Foi onde passamos a noite, com direito a um jantar típico feito só com produtos colhidos ali mesmo na estufa que eles têm ao lado da casa.

Dia 7: Nucet — Sibiu

Noite bem dormida, pé na estrada, último dia de pedalada. E o melhor fica sempre pro final. O trajeto de Nucet até Sibiu tem muitas descidas e passa por mais uma série de vilarejos mergulhados em uma neblina densa. Climão de despedida.

Contraste perfeito pra chegada em Sibiu, cidade mais charmosa da Transilvânia. E também a maior, com pouco mais de 150 mil habitantes.

Como ela foi fundada por colonos alemães no século XII (1190), a arquitetura é tipicamente germânica e ainda guarda muito de sua era medieval.

Piata Mare, no centro de Sibiu

Hoje ela é considerada a cidade com melhor qualidade de vida da Transilvânia e rola uma efevescência cultural. Bem no dia que chegamos lá tava rolando um festival de Heavy Metal na Piata Mare, no centro, junto com um festival de moda e artes em outros pontos da cidade.

Sibiu, charmosa e ensolarada

Um excelente lugar pra terminar um tour de bike e começar a planejar o próximo.

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