A HISTÓRIA DO RAIO NEGRO!
Vocês sabiam que nos EUA fevereiro é considerado o Mês da História Negra? Não entraremos aqui no mérito de discutir a importância desta comemoração para o povo estadunidense, mas faremos uso dela como gancho para falar um pouquinho sobre um certo super-herói da DC Comics. Talvez o personagem em questão não seja um dos mais celebrados ou queridos, porém ele carrega em si uma inegável importância histórica para o Mercado Americano de Quadrinhos. E só por isso… iremos passar a limpo da história do Raio Negro (Black Lightning)! Venham conosco!
Um super-herói negro
Eram os meados dos anos setenta e após um período trabalhando na Marvel o escritor e editor Tony Isabella se mudou de mala e cuia para a DC Comics. Sua experiência prévia com personagens como Luke Cage, Golias Negro e Misty Knight (ele é o criador da investigadora particular e interessante romântico do Punho de Ferro) o tornava apto a dar sugestões em um projeto que estava sendo elaborada dentro da DC Comics havia um tempo: o lançamento de um gibi estrelado por um super-herói negro.
Até aquele momento a DC Comics tinha alguns coadjuvantes afro-americanos, como o soldado Jackie Johnson (dos gibis de guerra do Sargento Rock) e o adolescente Mal Duncan (membro da Turma Titã), até que em 1971 no gibi Forever People #1 o genial Jack Kirby apresentou para os leitores Vykin, o primeiro super-herói negro da editora. Ah e antes que nos esqueçamos: ainda em 1971 na revista Green Lantern #87 estreou o então Lanterna Verde substituto John Stewart, que hoje ocupa lugar de relevo dentro do panteão de personagens da DC Comics.
Entretanto… em uma comparação rápida com a Marvel (que tinha Luke Cage, Pantera Negra, Falcão, Tempestade, Irmão Vodu, Blade e vários coadjuvantes afrodescendentes) não era difícil perceber que a DC estava muito atrasada em relação a questão da presença negra no seu rol de personagens. Alguma providência precisava ser tomada para corrigir esta falha e aí voltamos a falar em Isabella.
Ao chegar na DC Comics os editores apresentaram para Isabella “Black Bomber”, um projeto “muito interessante” concebido pelo escritor veterano Robert Kanigher: um soldado branco (e racista!) passou por algumas experiências científicas no Vietnã, e em situações de estresse ele se tornaria um super-herói de pele escura. Ao voltar ao “normal”, o protagonista esqueceria tudo que fez em sua forma “heroica” e retomaria a sua rotina de homem branco comum (e racista!).
Com jeitinho Isabella explicou que a premissa do “Black Bomber” era no mínimo constrangedora, e após confabularem juntos os editores e Isabella chegaram no consenso que era mais interessante conceber uma nova proposta. Após três semanas matutando e usando como principal referência a sua infância e adolescência em Cleveland o escritor finalmente elaborou o conceito de um herói negro, porém… ainda faltava dar um nome para o novo personagem.
A questão de nome se resolveu de uma forma no mínimo curiosa… durante uma visita ao escritório do lendário editor Julius Schwartz o simpático Isabella se deparou com a capa de Wonder Woman #225 pendurada na parede, na qual a Mulher-Maravilha tenta deter um relâmpago com seu laço mágico e fala: “Hera, ajude-me a deter este raio negro antes que ele parta este prédio em dois!”. A partir da visão desta cena uma lâmpada imaginária se acendeu sobre a cabeça de Isabella, que decidiu: seu herói se chamaria Raio Negro!
A Estreia
O conceito criado por Isabella começava com Jefferson Pierce, um medalhista olímpico que ao se aposentar das atividades esportivas decidiu se tornar professor e passou a ministrar aulas na Garfield High School, uma escola de ensino médio localizada em Metrópolis (sim, a cidade do Superman!) no Beco do Suicídio, um bairro pra-lá-de-barra-pesada. Inconformado com com a situação social do vizinhança Pierce recebeu do seu amigo Peter Gambi (um alfaiate e especialista em equipamentos eletrônicos) um traje especial que permitia a geração de campos elétricos, e passou a trazer justiça para o Beco do Suicídio. A ideia estava posta, porém faltava encontrar um desenhista, e aí que entra Trevor Von Eeden.
Imigrante oriundo da Guiana, ainda muito jovem Von Eeden enviou amostras do seu trabalho para a DC Comics e encontrou abrigo junto ao editor Jack C. Harris, que percebeu o seu potencial e com paciência investiu no seu talento. Aliás, do ponto de vista histórico o novato Von Eeden é considerado o primeiro artista negro contratado pela DC Comics, e graças a Harris ele foi indicado para ser o responsável pela arte da primeira série regular da DC Comics estrelada por um herói negro.
Enfim, todos os elementos foram reunidos e no começo de 1977 Black Lightning #1 chegou nas bancas de jornal. Tanto na edição de estreia quanto nas subsequentes percebe-se claramente as preocupações de Isabella com a situação social dos bairros pobres das grandes cidades americanas, porém algumas vezes os seus roteiros pecavam pela falta de um ritmo adequado e é notória a inexperiência de Von Eeden na execução da arte, que infelizmente não encontrou nos arte-finalistas Frank Springer e Vince Colletta os parceiros artísticos ideais. E, infelizmente, na vida real o Raio Negro encontraria um adversário poderoso, que atendia pelo nome de… Hanna-Barbera!
O Outro Raio Negro
Todos nós assistimos Superamigos em algum momento de nossas vidas. O desenho animado televiso que trazia uma versão infantil e quase educativa da Liga da Justiça introduziu milhões de pessoas mundo afora na mitologia da DC Comics, até que num determinado momento a Hanna-Barbera (a histórica produtora responsável por esta animação, né?) entendeu que era necessário acrescentar um pouquinho mais de diversidade étnica no elenco de heróis da série. Em tese o Raio Negro seria um acréscimo perfeito para Superamigos, mas haviam alguns “probleminhas” no meio do caminho…
Quando criou o Raio Negro o impoluto Isabella assinou um contrato que além do crédito pela sua criação lhe garantia um dinheirinho de royalties caso o personagem migrasse para outras mídias. Só que… quando a Hanna-Barbera aventou a possibilidade de utilizar Jefferson Pierce em Superamigos um impasse surgiu: na visão da DC Comics cabia a Hanna-Barbera pagar os direitos devidos a Isabella; por outro lado a Hanna-Barbera entendia que não devia nada para o criador do Raio Negro. No final das contas esta desinteligência se resolveu de uma forma nada satisfatória para Isabella: a Hanna-Barbera decidiu criar para Superamigos o seu próprio herói negro dotado de poderes elétricos, batizado com o proverbial nome de Vulcão Negro!
Obviamente Isabella não ficou muito contente com o passa-moleque que recebeu da Hanna-Barbera e da DC Comics, e se “vingou” na revista Black Lightning #10, que trouxe a aventura “The Other Black Lightning” (O Outro Raio Negro), onde uma golpista chamada Barbara Hanna (porque diabos ela tinha esse nome?) contrata um ex-jogador de futebol americano para se passar pelo herói do Beco do Suicídio. A confusão com os dois Raios Negros se armou, o vilão Trapaceiro deu o ar da sua graça, Barbara Hanna foi para cadeia, o legítimo herói ficou de boa com a sua versão “fake” e tudo terminou bem. Bem? Na verdade não…
A tensão entre Isabella e a DC Comics ficou insustentável e após a publicação de “The Other Black Lightning” ele deixou de escrever as histórias do Raio Negro. Para substituí-lo foi escolhido o veterano Denny O’Neil, porém em 1978 ocorreu a Implosão DC, uma gigantesca crise administrativa e de mercado que quase fechou as portas da DC Comics. O resultado final de tudo isso: a revista Black Lightning foi cancelada após o lançamento da sua décima primeira edição.
Renegado
Depois do cancelamento do seu gibi o Raio Negro teve entre 1979 e 1980 algumas histórias curtas lançadas nos gibis World’s Finest e Detective Comics, que contaram com o talento de quadrinistas como George Tuska, Rich Buckler, Marshall Rogers, Martin Pasko, J. M. DeMatteis e outros. E, nas revistas Justice League of America #173 e #174 o roteirista Gerry Conway e o desenhista Dick Dillin produziram uma aventura onde Jefferson Pierce foi formalmente convidado a se tornar membro da Liga da Justiça. De forma “educada” o herói do Beco do Suicídio recusou o convite, mas logo ele integraria outra superequipe.
Em meados de 1983 o escritor Mike W. Barr pegou o Raio Negro e o transformou em membro dos Renegados, um time de heróis liderado pelo Batman que estreou em The Brave and The Bold #200 e que posteriormente passou a estrelar a série mensal Batman and the Outsiders. Por lá o personagem continuou a vista dos fãs, mas o Mercado Americano de Quadrinhos sempre foi constituído de cancelamentos, lançamentos, revivals e esquecimentos, e a revista dos Renegados foi cancelada em 1987.
Desde a sua origem nos anos setenta muitas coisas mudaram para o nosso herói: foi definido que o que traje que o Raio Negro usava potencializou suas habilidades genéticas latentes, fazendo com que seus poderes elétricos fossem geradas a partir do seu próprio corpo e em 1995 Isabella — ao lado do desenhista Eddy Newell — retornou a sua criação em uma série que durou treze edições. E, finalmente em 2006 no o aclamado romancista Brad Meltzer tornou Raio Negro membro da Liga da Justiça. Ah, é claro: como o Amor é algo sempre importante Jefferson Pierce se casou com Lynn Stewart (seu interesse romântico desde a sua estreia em 1977) e teve duas filhas dotadas de poderes sobre-humanos: Anissa (capaz de aumentar a densidade do próprio corpo) e Jennifer Pierce (dotada de habilidades similares a do seu pai), que assumiram respectivamente as identidades heroicas de Tormenta (Thunder) e Rajada (Lightning).
Relevância
A origem do herói foi repassada a limpo pelos quadrinistas Jen Van Meter e Cully Hamner na minissérie em seis partes Black Lightning: Year One, lançada em 2009 e no ano de 2018 Tony Isabella — junto com os artistas Clayton Henry e Yvel Guichet — revisitou sua criação a série fechada e dividida em seis capítulos entitulada Black Lightning: Cold Dead Hands. Mas certamente o maior e mais recente feito do herói tenha ocorrido não nas revistas em quadrinhos, mas sim nas telinhas, já que ainda no ano de 2018 as suas aventuras foram adaptadas para o formato de seriado televisivo.
Protagonizada por Cress Willians e disponível no Brasil na Netflix, a série live-action do Raio Negro teve boa repercussão junto aos fãs e procurou ser fiel as intenções sociais do personagem em suas primeiras aparições nos quadrinhos, mas pelo visto os seus índices de audiência não foram satisfatórios para seus produtores, tanto que ela será cancelada em 2021, após o lançamento da sua quarta e derradeira temporada, previsto para o dia 8 de fevereiro nos Estados Unidos.
E assim chegamos perto do final deste textão. É provável que após esta longa leitura vocês entendam que na verdade o Raio Negro é um personagem irrelevante e de pouco destaque, porém até pela sua primazia como o primeiro herói negro a estrelar uma revista própria na DC Comics a relevância histórica dele é indiscutível. Isso sem falar no fato que de que Jefferson Pierce foi uma influência decisiva no desenvolvimento de outros personagens afrodescendentes que surgiram posteriormente. Ou vocês acham que o Super Choque não “deve” alguma coisa para o Raio Negro?
Porém, antes de finalizarmos precisamos ver o que os criados do personagem pensam sobre ele. Em todas as entrevistas que concede Trevor Von Eeden sempre demonstra satisfação por ter participado da criação do Raio Negro e quanto a Tony Isabella, bem… segundo ele até hoje a sua caixa de e-mails é abarrotada de mensagens de fãs que afirmam que Jefferson Pierce foi um elemento fundamental em suas vidas, chegando inclusive a influenciar as suas escolhas profissionais. É claro que isso enche Isabella de orgulho, né? Tanto que ele faz questão de falar para quem quiser ouvir que o Raio Negro é disparado o seu melhor trabalho nos quadrinhos!
E, agora finalizando tudo de vez e antes que nos esqueçamos: parte das primeiras histórias do Raio Negro produzidas por Isabella, Von Eeden e Denny O’Neil foram publicadas aqui no Brasil pela saudosa Editora Ebal entre 1978 e 1980 nas revistas Galax, Kamandi e O Mutante, e infelizmente as minisséries citadas ao longo deste texto permanecem inéditas nesta terrinha abençoada por Papai do Céu.
E, nessas horas como sempre nós falamos:
E TENHO DITO!
ERRAMOS!: Ao contrário do que foi informado originalmente neste texto a revista Black Lightning foi cancelada após o lançamento da décima primeira primeira edição, e não da décima segunda. Corrigimos este equivoco e agradecemos ao fã de quadrinhos Alexandre Barros.
Para saber mais:
★ Grand Comic Database: Black Lightning
★ Guia dos Quadrinhos: Raio Negro
★ Comic Book Resources: Black Lightning vs. Black Vulcan
★ Raio Negro: seriado televisivo