A LIGA DA JUSTIÇA DE DETROIT!

Claudio Basilio
sobrequadrinhos
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10 min readNov 24, 2020

Todo mundo gosta da Liga da Justiça, né? Superman, Batman, Mulher-Maravilha, Lanterna Verde e os maiores heróis da DC Comics reunidos em um time capaz de derrotar qualquer vilão… pessoalmente, eu gosto pra caramba! Mas existe um período da história da maior superequipe heroica da DC Comics — ou fase, se preferirem esse termo — que causa engulho até mesmo no mais apaixonado dos fãs. Sim, amiguinhos e amiguinhas: eu estou falando da Liga da Justiça de Detroit! Ou Liga de Detroit, se preferirem esse termo!

Vamos voltar no tempo, mais especificamente para os anos oitenta e vamos tentar entender o contexto “histórico-mercadológico” que gerou a Liga de Detroit. Naquela época The Uncanny X-Men (X-Men) era o gibi da Marvel que mais vendia; por outro lado os campeões de venda da DC Comics eram The New Teen Titans (Novos Titãs) e Legion of Super-Heroes (Legião dos Super-Heróis). Por mais diferentes que fossem entre si estes três títulos tinham um conjunto de características em comum: além de serem gibis de “supergrupos” eles traziam roteiros que investiam fortemente na caracterização dos personagens (que geralmente tinham idades que variavam entre os dezesseis e vinte poucos anos) e na iteração entre eles. Já a vetusta e adorada Liga da Justiça era completamente desprovida desses atributos! E há uma explicação histórica esse fato, mas ai precisaremos retroceder um pouquinho mais no tempo e voltar para os anos sessenta.

Capa de Justice League of America Annual #2, revista que trouxe a estreia da Liga da Justiça de Detroit. Arte de Chuck Patton e Dick Giordano.

Desde que surgiu em 1960 — graças aos talentos de Gardner Fox e Mike Sekowski e ao acompanhamento editoral de Julius Schwartz — as histórias da Liga da Justiça seguiam quase sempre a mesma estrutura narrativa: uma ameça surgia; alguns membros do vasto elenco da Liga se reuniam para enfrentar a ameaça; eventualmente eles se separavam em duplas ou trios para melhor debelar a ameaça; derrotada a ameaça todos se encontravam nas últimas páginas e entre sorrisos e abraços a aventura findava. Ah, é claro, a iteração entre os personagens não ia além de conversas vazias, mas há uma explicação para isso: durante anos houve dentro da DC Comics uma regra editorial rígida que proibia o maior desenvolvimento da personalidade dos membros da Liga! Explicando melhor: o jeitinho beligerante do Gavião Negro só poderia modificado ou evoluído na revista solo do personagem; a vida amorosa do Superman só deveria ser explorada em detalhes nas revistas Superman ou Action Comics; o relacionamentos pessoais do Cavaleiro das Trevas seriam mostrados apenas em Batman e Detective Comics; e a amizade entre os integrantes da Liga da Justiça, bem… eles até podem ser amiguinhos, mas a Liga é uma força-tarefa criada para encarar o Mal, e não um Clube da Fraternidade! E aí não precisamos ser gênios intuitivos para percebermos que as regras editoriais e modelo de história que norteavam a produção das aventuras da Liga da Justiça não eram adequados para as preferências dos leitores da década de oitenta, e que alguma coisa precisava ser feita. E aí entra o roteirista Gerry Conway.

Gerry Conway, o mais longevo escritor da Liga da Justiça. Para a Marvel ele criou o Justiceiro e foi responsável por uma das fases mais importantes do Homem-Aranha, para quem escreveu a primeira “Saga do Clone” e “A Morte de Gwen Stacy”.

Conway era um veterano que escrevia regularmente os scripts da mais importante equipe da DC Comics desde a segunda metade dos anos setenta e ele estava de saco cheio de redigir as aventuras da Liga dentro do modelinho clássico. De fato ele queria conceber histórias menos “cósmicas” e mais “pés-no-chão”, parecidas com aquelas que eram apresentadas na série mensal dos Novos Titãs. Então, ao lado do editor Len Wein ele arquitetou uma situação que mudaria radicalmente o elenco da principal equipe da DC Comics, de uma forma mais ou menos parecida com aquilo que Stan Lee e Jack Kirby fizeram com os Vingadores na década de sessenta, quando seus os membros foram substituídos por coadjuvantes, em uma formação que ficou conhecida como a “Quadrilha do Capitão”.

Capas de Justice League of America #228 e #230, que trouxeram o arco de histórias “War of the Worlds, 1984”, que preparou o terreno para o surgimento da Liga da Justiça de Detroit. Arte de Chuck Patton e Dick Giordano.

Em 1984 os gibis Justice League of America #228, #229 e #230 trouxeram o arco “War of the Worlds, 1984”, onde sem a presença dos seus principais integrantes (Superman, Mulher-Maravilha, Flash, etc…) a Liga da Justiça foi obrigada a encarar uma invasão marciana. Se não fosse a providencial ajuda do Caçador de Marte provavelmente o nosso planetinha teria virado uma colônia de férias para alienígenas esverdeados, e… a ausência dos veteranos deixou Aquaman fulo da vida, e fazendo uso do seu status de membro fundador o Senhor dos Sete Mares desfez a superequipe em Justice League of America Annual #2!

Fazendo uso do seu status de membro fundador Aquaman desfaz oficialmente da Liga da Justiça. Arte de Chuck Patton e Dave Hunt.

Mas o herói aquático tinha planos. A sua ideia era refundar a Liga como uma equipe que contaria apenas com membros totalmente dedicados a ela e que não desperdiçariam seu tempo vivendo aventuras solo. Para o novo time Aquaman contou com os tarimbados Caçador de Marte, Homem-Elástico e Zatanna, heróis que “coincidentemente” não tinham revistas próprias naquela época. Entretanto, para que os objetivos do Senhor dos Sete Mares — ops, quero dizer de Gerry Conway! — se concretizassem era necessário que a nova Liga abrigasse novos personagens, devidamente antenados com os novos tempos. E ai Conway tirou da cartola quatro jovens super-heróis:

Vixen: Mari Jiwe McCabe era uma modelo internacional que graças ao Totem Tantu (um artefato místico oriundo da África) conseguia reproduzir as habilidades de qualquer animal. Ela foi criada por Conway no final dos anos setenta e seria a primeira heroína negra a estrear em uma revista solo nos EUA, mas infelizmente a conturbada situação do mercado de quadrinhos naquele período adiou a sua estreia, que ocorreu em uma aventura do Superman publicada em 1981 na revista Action Comics #521.

Vixen. Arte de Luke McDonnel e Bob Smith.

Gládio (Steel): neto do Comandante Gládio (um super-herói da Segunda Guerra Mundial criado por Conway em 1978), Hank Heywood III recebeu do avô uma série de enxertos cibernéticos que lhe conferiam força e resistência sobre-humanas.

Gládio. Arte de Chuck Patton e Larry Mahlstedt.

Vibro (Vibe): jovem de origem latina e com um passado relacionado a gangues urbanas, Paco Ramon tinha a habilidade de gerar ondas vibratórias e sísmicas.

Vibro. Arte de Luke McDonnel.

Cigana (Gypsy): dotada de talentos de camuflagem e invisibilidade, inicialmente ela possuía uma origem envolta em mistérios. Muitos anos após a sua estreia em Justice League of America Annual #2 foi revelado que seu verdadeiro nome era Cindy Reynolds.

Cigana. Arte de Chuck Patton e Bob Smith.

Montado o novo time, ele se mudou de mala e cuia para uma instalação secreta na cidade americana de Detroit (daí vem a designação desta versão da Liga) e de fato passaram a viver aventuras mais “pés-no-chão”, com alto investimento na caracterização e nos relacionamentos dos personagens. Porém, a maioria dos leitores da época detestou o que viu! E existem explicações para isso.

É claro que uma parcela expressiva do fandom é constituída por marmanjos resistentes a mudanças e que seguem a famosa cartilha do “eles-estragaram-a-minha-infância”, mas Conway admite que de fato existiram problemas na produção dessas histórias. Inicialmente ele contava com Len Wein como editor do título, porém o novato Alan Gold foi designado para a função, e segundo o escritor a inexperiência de Gold pesou na hora de definir os rumos da série. E, é claro, Conway também admite que faltou para ele traquejo no desenvolvimento dos personagens, tanto que não são poucas as críticas feitas especialmente a caracterização de Vibro, que apresentava alguns dos piores estereótipos que os latinos tem nos EUA. Mas, se olharmos com calma nem tudo foi “ruim” durante a existência da Liga de Detroit…

Capas de Justice League of America #233, #234, #235 e #236, que juntas formam um único painel, que visava apresentar de forma “explosiva” os novos membros da Liga da Justiça. Arte de Chuck Patton e Dick Giordano.

Em Justice League of America #238 os novatos viajaram para a Rússia e resgataram Superman, Flash e Mulher-Maravilha das mãos do vilão Allegro e em Justice League of America#244 eles se depararam com a Corporação Infinito, equipe originária da Terra-2 e constituída por filhos e aparentados da Sociedade da Justiça. Mas provavelmente o ponto alto da série foi aventura publicada entre os números #251 e #254 da série, quando sob a liderança temporária do Batman a Liga de Detroit enfrentou o déspota alienígena Despero, um antigo inimigo que foi repaginado como um sanguinário brutamonte.

Capas de Justice League of America #251 e #253, que mostraram o embate da Liga de Detroit contra Despero. Arte de Luke McDonnell.

Mas todos nós sabemos que uma boa história aqui e outra boa história acolá não garantem necessariamente o sucesso de um gibi nas comic shops, e então educadamente após o lançamento de Justice League of America #255 Conway foi convidado a se retirar do título e foi substituído por J. M. DeMatteis. Porém… as coisas não necessariamente melhoraram para a nossa querida Liga e os editores decidiram que a simpática rapaziada de Detroit deveria passar por um “sacode”! E que “sacode” eles tomaram!

Entre as edições #258 e #261 de Justice League of America foi publicado um arco de histórias dividido em quatro partes e batizado com o proverbial nome de “The End of the Justice League of America” (O Fim da Liga da Justiça da América) . Nele, o Professor Ivo (um especialista em robótica e inimigo da antiga Liga) decidiu partir para uma desforra definitiva contra da Liga da Justiça. As consequências deste embate foram terríveis: o vilão foi derrotado, porém Vibro e Gládio foram assassinados pelos robôs de Ivo, a Liga ficou completamente desmantelada e, por fim, o mais-do-que-clássico gibi Justice League of America foi cancelado. Mas — é óbvio! — este não foi o fim da Liga da Justiça, já que alguns meses depois ao lado do desenhista Kevin Maguire os escritores J.M. DeMatteis e Keith Giffen relançaram o título, colocando heróis de segunda categoria na equipe e injetando doses cavalares de humor nos roteiros. Chamada pelos fãs de “Liga Cômica” ou “Liguinha”, essa fase da maior equipe da DC Comics foi um enorme sucesso de crítica e de público, e aparentemente jogava uma pá de cal definitiva na rejeitada Liga de Detroit. Mas…

Capas de Justice League of America #258, #259, #260 e #261, que trouxeram o arco “O Fim da Liga da Justiça da América”. Vinculado ao crossover “Lendas”, o “Fim da Liga da Justiça da América” marcou o cancelamento da primeira série mensal da Liga da Justiça.

Os sábios sempre falam que o Tempo é o senhor da Razão, e no caso da Liga da Justiça de Detroit este ditado meio que se comprovou. Por que falamos isso? Ora, aparentemente após Justice League of America #261 Vixen, Gládio, Vibro e Cigana deveriam virar uma notinha de rodapé nos livros que falam sobre Quadrinhos, porém havia toda uma geração de artistas que cresceu lendo a Liga de Detroit nos anos oitenta e… lentamente os rejeitados heróis começaram a ser reaproveitados em outros gibis da DC Comics, até que aconteceu algo um tanto quanto inesperado: eles romperam as páginas coloridas dos gibis e migraram para outras mídias!

Em um primeiro momento a rapaziada de Detroit se tornou coadjuvante na animação televisiva da Liga da Justiça lançada em 2001, e posteriormente eles foram usados de forma destacada nos seriados de super-heróis da Warner Channel/CW, tanto que quem assiste “The Flash” deve ter percebido que Vibro (rebatizado na série como Francisco “Cisco” Ramon) é o melhor amigo do protagonista,e que ele tem um “crush” com uma tal de Cigana; e “Legends of Tomorrow” contou em seu elenco com a sempre simpática Vixen e com o quase indestrutível Gládio.

Da esquerda da para a direita, a partir do topo da imagem, as versões live-action dos personagens da Liga de Detroit: Vixen (Maisie Richardson-Sellers); Gládio (Nick Zano); Vibro (Carlos Valdes); Cigana (Jessica Camacho).

Devido a sua longa e bem-sucedida carreira como escritor de tempos em tempos Gerry Conway recebe solicitações de entrevistas. Quando perguntado sobre a Liga de Detroit (praticamente seu único grande “fracasso” nos Quadrinhos) ele admite seus erros, como já falamos aqui; entretanto, ele também sempre lembra que no final de tudo e contra todas as possibilidades os seus “filhos” encantaram uma geração de leitores (ou pelo menos parte de uma geração!), resistiram, ganharam as telas de televisão do mundo inteiro e persistem de forma bem-sucedida dos anos oitenta até hoje.

E não é isso que um escritor mais quer na vida?

Capa dupla de Justice League: The Detroit Era Omnibus. Arte de Jose Luis Garcia-López.

Ah, antes que nos esqueçamos: aqui na terrinha descoberta por Cabral a maioria absoluta das histórias da Liga de Detroit são inéditas, salvo duas exceções publicadas pela Editora Abril: o seu encontro com a Corporação Infinito, nos gibis Super-Homem #34 e Superamigos #24; e “O Fim da Liga da Justiça”, que saiu 1988 entre as quadragésima e quadragésima terceiras edições de Superamigos. E recentemente nos “States” a DC Comics disponibilizou Justice League: The Detroit Era Omnibus, um tijolaço de mais de mil páginas que reúne todas as histórias da Liga de Detroit.

E TENHO DITO!

Para saber mais:

Polygon — Justice League Detroit

The Hollywood Reporter — Justice League Detroit

DC Fandom — Justice League Detroit

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Claudio Basilio
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