DIANA PRINCE, A MULHER-MARAVILHA!

Claudio Basilio
sobrequadrinhos
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17 min readSep 5, 2021

Tudo começou em 1941. E em 2021 de forma graciosa e gloriosa comemoramos oitenta anos de convívio com a Mulher-Maravilha, seja na Televisão, Cinema ou nas revistas em quadrinhos! Aproveitando o ensejo que esta data tão especial proporciona iremos falar um pouquinho sobre a vida da Princesa Amazona da DC Comics ou, sendo mais específico: discutiremos aqui um momento crucial e pouco lembrado da carreira editoral da personagem… um momento em que, desprovida de seus superpoderes a heroína se tornou uma espécie de… artista marcial e espiã! Por favor, nos acompanhem nesta caminhada pelo final dos anos sessenta e inicio dos setenta! Só que, antes precisamos dar uma passadinha na década de quarenta…

A Namoradinha da América

A Mulher-Maravilha foi criada por Willian Moulton Marston (advogado e psicólogo meio charlatão que foi dos pioneiros na criação do polígrafo, a famosa máquina detectora de mentiras) e H. G. Peter e estreou em 1941 na revista All Star Comics #8. Apesar de Marston salpicar as suas histórias inspiradas na Mitologia Greco-romana com mal disfarçadas referências a prática de bondage (uma de suas obsessões pessoais) desde o início ficava claro para o leitor mais atento que a Mulher-Maravilha incorporava muitos dos ideais preconizados pela Primeira Onda do Feminismo, movimento social surgido no final do Século XIX que exigia para as mulheres o direito ao voto e leis trabalhistas mais justas.

Cena de Wonder Woman #13 (1945), onde a Mulher-Maravilha recusa uma proposta de casamento de Steve Trevor porque “não pode fingir que é mais fraca do que ele”. Texto de Joye Hummell, arte de H. G. Peter.

Tal incorporação dos ideais feministas não aconteceu por acaso, já que além de ser sinceramente favorável aos direitos das mulheres Marston era casado com Olive Byrne, que era sobrinha de Margaret Sanger, uma das principais líderes americanas da Primeira Onda do Feminismo. Ah, “por acaso” o criador da Mulher-Maravilha também era casado com Elizabeth Holloway, uma pesquisadora que foi crucial tanto no desenvolvimento da máquina detectora de mentiras quanto nos períodos em que faltava dinheiro nos bolsos de Marston.

Estudiosos da vida de Marston não conseguiram determinar se o relacionamento dele com Byrne e Holloway era poligâmico ou poliamoroso, mas é sabido que os três viviam debaixo do mesmo teto e que juntos tiveram e criaram quatro filhos. Também é sabido que Byrne e Holloway tinham personalidades fortes e foram uma influência decisiva no processo de criação da Princesa Amazona, tanto que a personagem era retratada nas histórias publicadas nos anos quarenta como uma mulher independente e decidida que, apesar de ter uma “quedinha” pelo Coronel Steve Trevor nunca se submetia aos anseios do seu amado, seja vestida como Mulher-Maravilha, seja na sua identidade secreta de Diana Prince, uma oficial da Força Aérea estadunidense.

Capa de Sensation Comics #94 (1949), onde uma Mulher-Maravilha ansiosa está prestes a casar com Steve Trevor. Arte supostamente feita por Art Peddy.

Em 1947 Willian Moulton Marston veio a óbito após uma longa batalha contra o câncer. Naturalmente isto teve um impacto direto na produção das histórias da Mulher-Maravilha, que passou a ser tocada por Robert Kanigher, um sujeito que inegavelmente era um bom escritor (os quadrinhos de guerra que ele concebeu ao lado de Joe Kubert são uma prova deste fato), mas que segundo colegas próximos era um chauvinista incorrigível. Junte o machismo de Kanigher com um processo de higienização que acometeu nos quadrinhos americanos de super-heróis a partir do final dos anos quarenta e o resultado foi óbvio: as alusões sadomasoquistas que permeavam as aventuras da Mulher-Maravilha escritas por Marston desapareceram e a heroína passou a ser dócil, afável e perdidamente apaixonada por Steve Trevor. Em suma: a Princesa Amazona se tornou a “Namoradinha da América”, a mulher ideal e quase submissa que materializava os sonhos de muitos marmanjos.

A Segunda Onda

E assim a Mulher-Maravilha foi levando a sua vidinha nos anos cinquenta e sessenta. Porém, enquanto ela suspirava por Steve Trevor ou passeava por aí com seu avião invisível as coisas ao seu redor mudavam… e intelectuais e ativistas como Simone de Beauvoir, Betty Friedan, Audre Lorde, Angela Davis e muitas outras deram início a Segunda Onda do Feminismo.

Capa de Wonder Woman #178 (1968), edição que dava início a uma das maiores transformações na vida da Mulher-Maravilha. Arte de Mike Sekowsky.

Repentinamente nas décadas de sessenta e setenta em vários cantos do planeta mulheres foram para as ruas com o propósito de exigir direitos e oportunidades iguais aos dos homens. Os seus protestos tiveram impacto na Economia e Cultura, e de alguma forma a Mulher-Maravilha — que já era um dos ícones femininos mais famosos do mundo — precisava refletir essas mudanças. E então o desenhista Mike Sekowsky entrou na vida da Princesa Amazona.

Em 1968 Sekowsky era um veterano na indústria americana de quadrinhos que havia obtido notoriedade ao produzir gibis românticos e principalmente ao desenhar as aventuras da Liga da Justiça da América, porém naquela época ele estava ansioso por novos desafios artísticos. Antenado com os movimentos sociais que pipocavam no período, o desenhista elaborou um projeto quadrinístico que envolvia a criação de uma nova heroína de cunho feminista desprovida de superpoderes e o levou para a redação da DC Comics.

Cena de Wonder Woman #178, onde Diana Prince se “disfarça” com roupas “mod” na tentativa de limpar a barra de Steve Trevor. Arte de Mike Sekowsky.

A proposta de Sekowsky caiu nas mãos de Jack Miller — que havia substituído Robert Kanigher como editor da Mulher-Maravilha — e do então escritor novato Denny O’Neil, e depois de algumas reuniões e de muitas trocas de ideias finalmente foi decidido: o conceito elaborado pelo desenhista seria aplicado na Princesa Amazona.

E assim foi formado um novo time criativo para a Mulher-Maravilha, que contava com Denny O’Neil nos roteiros, Mike Sekowsky no lápis e Dick Giordano no nanquim. A nova equipe estreou no gibi Wonder Woman #178, em uma aventura onde o sempre simpático Steve Trevor foi injustamente acusado de assassinato. Se disfarçando com roupas dentro do estilo “mod” (subcultura muito popular na segunda metade da década de sessenta) a heroína decidiu investigar este caso e, é claro, livrou a cara do seu amado. Mas os problemas de Trevor estavam apenas começando…

Capa de Wonder Woman #179 (1968), onde Diana renuncia ao posto de Mulher-Maravilha. Arte de Mike Sekowsky.

Em Wonder Woman #179 Steve Trevor foi designado para uma missão secreta que visava a prisão de uma terrorista chamada Doutora Cyber. A Mulher-Maravilha estava se preparando para a ajudar o seu amado nesta empreitada quando recebeu uma convocação da Ilha Paraíso, o lar ancestral das amazonas da Mitologia Grega. Ao chegar em sua terra natal a heroína soube que com o propósito de renovar as energias místicas que sustentavam o local as amazonas se retirariam por tempo indeterminado para outra dimensão. Diana não estava disposta a deixar Trevor na mão, e por isso renunciou a sua identidade de Mulher-Maravilha e aos seus superpoderes, retornando aos EUA.

Cena de Wonder Woman #179, onde I Ching treina Diana Prince. Arte de Mike Sekowsky.

Desprovida dos seus poderes e do seu posto na Força Aérea (O’Neil e Sekowsky não se preocuparam em explicar a saída de Diana da Aeronáutica), a nossa heroína não tinha como ajudar Steve Trevor, mas aí entrou na sua vida o mago e artista marcial chinês I Ching. Apesar da sua deficiência visual o sábio oriental também pretendia levar a Doutora Cyber para a Justiça, e acreditava que a Princesa Amazona seria perfeita como sua agente, e por isso se dispôs a lhe ensinar técnicas de combate orientais. Terminado o treinamento, Diana estava pronta para iniciar a busca pela Doutora Cyber, porém no processo Steve Trevor ficou gravemente ferido e, por fim, faleceu em Wonder Woman #180.

Capa de Wonder Woman #181 (1969), onde Diana Prince se prepara para enfrentar os agentes da Doutora Cyber. Arte de Mike Sekowsky.

Segundo Denny O’Neil a morte de Steve Trevor foi decidida por uma razão simples: o personagem era muito chato!Todavia, se analisarmos essas histórias com cuidado perceberemos que havia um motivo mais sutil para o passamento do namorado da Mulher-Maravilha: com a sua ausência a heroína estava completamente livre das amarras que a vinculavam a sua vida anterior e poderia ter aventuras diferentes daquelas que viveu por mais de vinte e poucos anos. Com o propósito de deixar ainda mais clara para os leitores a modificação na ambientação O’Neil e Sekowsky tornaram Diana proprietária de uma butique fashionista em Nova York e, já que estamos falando de leitores…

Todo mundo tinha um crush por Diana Rigg

Em um primeiro momento a “Nova Mulher-Maravilha” foi bem aceita pelos fãs e houve um aumento sensível nas vendas do gibi bimestral da personagem. Algumas razões justificam essa boa recepção: O’Neil era um escritor talentoso, e apesar de não ser exatamente um artista brilhante é perceptível o esforço de Sekowksy neste projeto, já que ele investiu forte no visual “mod” da personagem e em uma diagramação mais ousada que a dos seus trabalhos anteriores. Para completar as coisas a arte-final sempre precisa de Dick Giordano redundou em histórias com um bom acabamento artístico. Entretanto, a grande sacada por trás desta reinvenção da Princesa Amazona consistia na tentativa de captura do zeitgeist do final dos anos sessenta, ou seja: além da óbvia influência do ideário da Segunda Onda do Femininismo as novas histórias eram recheadas de referências as artes marciais orientais — que estavam entrando em voga no Ocidente naquele momento — e, sem dúvida alguma a nova Diana Prince devia muito a Emma Peel, só que… quem diabos é essa senhorita?

A atriz Diana Rigg caracterizada como Emma Peel, em foto promocional do seriado “Os Vingadores”.

Interpretada por Diana Rigg (mais conhecida hoje por ter vivido Olenna Tyrell no seriado “Game of Thrones”), Emma Peel era a coprotagonista de “Os Vingadores” (não confundir com a grupo de super-heróis homônimo da Marvel!), série televisiva britânica de espionagem que fez muito sucesso nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha na década de sessenta. Especialista em esgrima e combate corpo a corpo, exímia atiradora, perita em Química e absolutamente sagaz e destemida, além de transformar Diana Rigg um sex symbol de alcance mundial Emma Peel se tornou a materialização daquilo que segundo parte do Movimento Feminista as mulheres deveriam se tornar.

A “Nova Mulher-Maravilha” indiscutivelmente era dotada de uma caracterização tanto visual quanto psicológica muito similar a de Emma Peel, e quando questionados sobre esta semelhança O’Neil e Sekowsky deram respostas distintas: o escritor jurou de pés juntos que nunca assistiu um mero episódio de “Os Vingadores”, já que na época nem tinha uma televisão na sua casa; por outro lado o desenhista admitiu que naquele período todo mundo tinha um crush por Diana Rigg, inclusive ele!

Capa de Wonder Woman #184 (1969), onde heróis lendários carregam o corpo abatido de Diana Prince no campo de batalha. Arte de Mike Sekowsky.

De um jeito ou de outro… Jack Miller foi demitido da DC Comics e Denny O’Neil foi destacado para outros projetos, e então a partir de Wonder Woman #182 Mike Sekowsky assumiu a edição e os scripts do gibi da Mulher-Maravilha. Em Wonder Woman #183 e #184 Sekowsky levou Diana para um passeio rápido pela dimensão onde as amazonas estavam exiladas, e ao lado de heróis míticos como Orlando Furioso, El Cid, Siegfried e outros ela encarou Ares, o deus grego da Guerra. E, na sequência a heroína encarou um dos seus desafios mais… polêmicos!

Cenade Wonder Woman #185 (1969), onde Diana Prince fica frente a frente com o Elas! Arte de Mike Sekowsky.

Na edição #185 de Wonder Woman a Princesa Amazona retornou para Nova York e bateu de frente com Elas!, um trio de mulheres hippies com forte viés sadomasoquista que aterrorizava as cercanias da butique da heroína. Talvez em um primeiro momento este grupo pudesse ser visto como um tributo de Sekowsky a temática bondage tão propalada por Willian Moulton Marston nos anos quarenta, porém dada a caracterização estereotipada e masculinizada destas vilãs muitos pesquisadores de quadrinhos entendem que o Elas! era na verdade uma critica pouco sutil do desenhista a vertente LGBTIQA+ do Movimento Feminista, que naquela época começava a dar as caras nas grandes metrópoles americanas. E, para piorar as coisas em determinadas cenas Top Hat (a líder do Elas!) era retratada de forma demasiadamente parecida com Betty Friedan, já citada aqui como uma das arquitetas da Segunda Onda do Feminismo!

Cena de Wonder Woman #188 (1970), onde Diana Prince “enfrenta” o escritor e editor Robert Kanigher. Arte de Mike Sekowsky.

Segundo o cartunista e pesquisador Scott Shaw em uma conversa reservada Sekowsky admitiu que a sua intenção com o Elas! era retratar um grupo de “lésbicas perturbadas”, e que para não ter problemas com o Comics Code Authority (órgão que durante muitos anos regulamentou e censurou a publicação de quadrinhos nos EUA) intencionalmente ele nãos as colocou na capa de Wonder Woman #185. Apesar desta “confissão” nunca houve uma confirmação se de fato Sekowsky queria criticar parte do Feminismo com o Elas!, mas pelo menos um certo “gracejo” dele foi muito óbvio: em Wonder Woman #188 a Princesa Amazona prendeu uma ladra de shopping, que se revelou um punguista fantasiado de mulher chamado Creepy Caniguh. Por “coincidência” o bandido era a cara Robert Kanigher, antigo editor e escritor da Mulher-Maravilha. Homenagem? Vingança? Deboche? Não sabemos…

Antigos amigos

Os leitores deste artigo devem ter percebido que até este momento não falamos dos colegas super-heroicos da Mulher-Maravilha. Com a sua nova roupagem a interação de Diana Prince com seus antigos amigos diminuiu consideravelmente, tanto que ela obteve licença do seu posto na Liga da Justiça em Justice League of America #69, mas ainda assim a “Nova Mulher-Maravilha” deu o ar da sua graça em outros gibis.

Cena de Justice League of America #69 (1969), onde Diana Prince se licencia da Liga da Justiça. Arte de Dick Dillin.

Diana Prince se reencontrou com a Liga da Justiça nas edições #71, #100, #101 e #102 de Justice League of America e deu uma força para o Batman em The Brave and the Bold #87 e #105. Não contente com isso a heroína “disputou” com Lois Lane o coração do Superman em Superman’s Girl Friend Lois Lane #93 e posteriormente ao lado do herói kryptoniano se envolveu com um protesto estudantil em World’s Finest #204. Junto com I Ching ela auxiliou o Homem de Aço no final da saga clássica “Kryptonita Nunca Mais” (publicado em Superman #241 e #242) e, como boa fashionista que era Diana Prince ajudou a Supergirl a escolher um novo uniforme em Adventure Comics #397. E, antes que nos esqueçamos: a nossa heroína ficou frente a frente com o humorista Jerry Lewis em The Adventures of Jerry Lewis #117!

Capa de Superman’s Girlfriend Lois Lane #93 (1969), onde Diana Prince disputa o amor do Superman com Lois Lane. Arte de Curt Swan e Neal Adams.

Wonder Woman #196 foi a última revista de Mike Sekowsky a frente da “Nova Mulher-Maravilha”, que foi substituído na função de editor por Dorothy Woolfolk. Uma pioneira que começou a trabalhar na indústria americana de quadrinhos nos anos quarenta — onde inclusive colaborou na edição nos gibis da Princesa Amazona produzidos por Willian Moulton Marston — , segundo alguns relatos Woolfolk escreveu roteiros não-creditados para a personagem, o que a tornaria a primeira escritora da Mulher-Maravilha nas revistas em quadrinhos. Todavia, é importante nos lembrarmos que de forma comprovada no mesmo período Joye Hummell (que foi secretária de Marston) escreveu scripts tanto para a tira de jornal da personagem quanto para as gibis quando seu chefe convalescia por causa do câncer, o que em tese daria para ela a primazia de ser a primeira autora da personagem.

Capa de Wonder Woman #201 (1972), onde Diana Prince encara a Mulher-Gato em um desafio mortal. Arte de Dick Giordano.

A nova passagem de Woolfolk pela Mulher-Maravilha se restringiu apenas aos números #197 e #198 de Wonder Woman, que reprisaram a luta de Diana Prince contra Ares produzida por Sekowsky e que foi originalmente publicada nas edições #183 e #184 da mesma revista. Denny O’Neil voltou a dar as caras e assumiu a direção editorial e os roteiros da revista a partir de Wonder Woman #198, e ao lado dos artistas Dick Giordano e Don Heck criou um pequeno conjunto de aventuras que teve a participação da Mulher-Gato (sim, aquela do Batman!), dos guerreiros Fafhrd e Gray Mouser (dois personagens oriundos da Literatura de Espada e Magia criados por Fritz Lieber) e do investigador particular Jonny Double, um potencial interesse romântico de Diana Prince. E então O’Neil decidiu dar um passo mais ousado no desenvolvimento da heroína.

Precisamos falar de Gloria Steinem

Em meados de 1972 O’Neil convidou o escritor e critico literário Samuel R. Delany para escrever aventuras para a Mulher-Maravilha. A intenção de Delany era criar a partir de Wonder Woman #202 uma saga em seis partes, onde em cada capítulo Diana Prince enfrentaria diferentes aspectos do Machismo, sendo que na edição final a heroína encararia uma gangue que pretendia atacar um clínica médica especializada em abortos. Porém, os planos de Delany não foram concluídos, e para entender esta interrupção precisamos falar de Gloria Steinem.

Capa de Wonder Woman #203 (1972), onde o escritor Samuel R. Delany pretendia iniciar sua saga onde Diana Prince enfrentaria vários aspectos do Machismo. Esta edição marcou o fim da fase espiã da personagem. Arte de Dick Giordano.

Jornalista, palestrante, intelectual, celebridade, ativista política e uma das maiores e mais famosas líderes feministas dos EUA de todos os tempos, desde sempre Gloria Steinem teve algum tipo de vínculo com os quadrinhos: em sua infância ela foi ávida leitora dos gibis da Mulher-Maravilha e, já adulta foi colaborada da Help, revista de humor criada pelo lendário cartunista Harvey Kurtzman. Ah, e não podemos nos esquecer de falar que no transcorrer da sua vida Steinem se tornou madrasta de Christian Bale, ator que deu vida ao Batman nos cinemas! Mas… o que realmente importa é que algum momento do início da década de setenta a “Nova Mulher-Maravilha” caiu nas mãos de Steinem… e ela não gostou nada do que viu!

Foto de Gloria Steinem, tirada no início dos anos setenta.

Ainda hoje são raros os gibis de super-heróis protagonizados por mulheres, e no início da década de setenta a Mulher-Maravilha praticamente era a única heroína a ter uma revista própria. Na visão de Steinem era um absurdo que uma personagem com esta importância e que foi criada para encapsular em si todos os principais valores do Feminismo fosse desprovida dos seus superpoderes, se tornando inferior aos seus pares masculinos e ainda por cima sendo comandada e treinada por um homem, no caso o honorável I Ching. Certamente como fã de longa data da Princesa Amazona ela não deixaria isso barato.

Capa de Ms. #1, onde em seu traje clássico a Mulher-Maravilha é lançada como candidata a presidência dos EUA. Arte de Murphy Anderson.

Com o patrocínio da Warner Communications (conglomerado empresarial a qual pertencia da DC Comics) em 1972 Gloria Steinem levou para as bancas de jornal Ms., uma revista jornalística que pretendia explorar a temática feminina com um viés moderno e vinculado aos principais movimentos sociais da época. E, como em um ato de desafio a capa da primeira edição de Ms. estampou com pompa e circunstância uma imagem inspirada no gibi Wonder Woman #7 (publicado em 1943), onde uma Mulher-Maravilha vestida com seu clássico uniforme vermelho, branco e azul era indicada para a presidência dos EUA! Mas não pensem que as coisas pararam por aí…

Capa de Wonder Woman: a Ms. Book, antologia editada por Gloria Steinem que trazia aventuras da Mulher-Maravilha originalmente publicadas nos anos quarenta.

O miolo de Ms. #1 trouxe “Wonder Woman Revisited” (Mulher-Maravilha revisitada, em uma tradução livre), artigo escrito pela jornalista Joanne Edgar que passava a limpo a história da Mulher-Maravilha e conclamava a DC Comics a devolver os superpoderes para a heroína. Para completar a campanha da volta da “Verdadeira Mulher-Maravilha” foi lançada Wonder Woman: a Ms. Book, uma coletânea editada por Gloria Steinem que reunia antigas histórias da Princesa Amazona originalmente publicadas nos anos quarenta.

Sabemos que naquele período Gloria Steinem era uma voz relevante no debate público e que ela tinha bom trânsito na Warner Communications, tanto que ela visitou os escritórios da DC Comics e obteve permissão para publicar a sua antologia de aventuras da Mulher-Maravilha. Talvez por causa da campanha de Steinem um fato que muitos considerariam inevitável ocorreu: a Princesa Amazona recuperou seu uniforme e superpoderes. Mas talvez…

Capa de Wonder Woman #204 (1972), onde Diana Prince recuperou o seu antigo status. Arte de Don Heck.

Para entendermos a volta da “Verdadeira Mulher-Maravilha” precisamos enxergar tudo que cercava a personagem naquele momento dentro de um contexto mais amplo. Antes mesmo dos reclamos de Gloria Steinem o gibi Wonder Woman vinha apresentando uma acentuada queda nas suas vendas, o que certamente motivaria uma nova “sacudida” na Princesa Amazona e uma verdade muito óbvia precisa ser dita: a Mulher-Maravilha com seu visual clássico era um produto muito mais “vendável” e “licenciável” para o público em geral do que a espiã que andava dando as caras nas revistas em quadrinhos. E também não pode ser descartada a possibilidade dos figurões que comandavam a Warner Communications não verem com bom olhos um dos seus principais “bens imateriais” protegendo clínicas de aborto! Resumindo: é grande a possibilidade da campanha de Steinem ter se tornado uma grande desculpa para o retorno do antigo status quo da heroína.

Cena de Wonder Woman #204 (1972), onde a editora Dottie Cottonman é assassinada por um franco atirador. Arte de Don Heck.

Mas, enfim… Sem maiores explicações Denny O’Neil e Samuel R. Delany foram retirados das suas funções e o bom e velho Robert Kanigher voltou com tudo em Wonder Woman #204. Logo de cara ele matou I Ching e despachou a heroína de volta para a Ilha Paraíso, onde ela readquiriu seu antigo uniforme e seus poderes, e para deixar muito clara a suas intenções na primeira primeira página desta edição Kanigher também matou Dottie Cottonman, a fictícia editora de uma famosa revista feminina. Seria isso uma “homenagem” a Gloria Steinem? Seria isso um “tributo” a Dorothy Woolfolk? Seria vingança ou deboche? Não sabemos…

Valeu a pena?

Entre erros e acertos a Mulher-Maravilha continuou a viver as suas aventuras nas revistas em quadrinhos. Novos autores foram encarregados das suas aventuras e para o bem ou para mal cada um deles acrescentou um novo aspecto mitologia da personagem. Mas a espiã e artista marcial não foi de todo esquecida.

Capa de DC Retroactive: Wonder Woman — 1970’s (2011), onde Denny O’Neil se reencontrou com a versão espiã da Mulher-Maravilha. Arte de J. Bone.

Em 2011 junto com o desenhista J. Bone o inefável Denny O’Neil revisitou a sua Mulher-Maravilha desprovida de poderes na revista especial DC Retroactive: Wonder Woman — 1970’s, e em 2021 na terceira edição da antologia Wonder Woman: Black and Gold (onde vários autores elaboraram histórias curtas sobre a personagem) a dupla Robert Venditti e Steve Epting colocou Diana num vestido “mod” e em uma trama com fortes tintas de Espionagem. E, por fim no ano de 2018 todas aventuras da Mulher-Maravilha espiã e artista marcial produzidas entre 1968 e 1972 foram reunidas em Diana Prince: 50th Anniversary Omnibus, um luxuoso encadernado dedicado aos fãs mais exigentes.

Capa de Diana Prince: 50th Anniversary Omnibus, encadernado que reuniu todas as aventuras da “fase espiã” da Mulher-Maravilha. Arte de Jose Luis Garcia-López.

No final das contas devemos estar nos perguntando: valeu a pena transformar a mais famosa de todas as super-heroínas em uma agente secreta especialista em artes marciais? Quando instado a dar sua opinião sobre este assunto Denny O’Neil (que faleceu em 2020 e hoje é considerado um dos maiores escritores de quadrinhos de super-heróis de todos os tempos) admitiu publicamente que entendeu os pontos levantados por Gloria Steinem e que fracassou na produção das aventuras da Mulher-Maravilha, em especial com I Ching, que era um tanto quanto “carregado” com esterótipos que até hoje atingem a comunidade asiática. Por outro lado Samuel R. Delany afirma que não teve chance de bater um papo com a líder feminista, e que provavelmente ela teria gostado das suas ideias para a personagem. Quanto a Mike Sekowksy… ele abandonou definitivamente o nosso convívio em 1989 devido a complicações decorrentes da diabetes, e segundo a sua esposa Josephine Sekowsky o seu trabalho com a Mulher-Maravilha foi o momento mais feliz da sua carreira.

Dito tudo isso… aqui na amada terrinha descoberta por Cabral a maior partes das aventuras da espiã Diana Prince foi publicada entre 1972 e 1973 na revista As Aventuras de Diana (Quem Foi?), da saudosa Editora Ebal. Aliás, vale a pena citarmos uma pequena curiosidade: no transcorrer dos anos sessenta a Mulher-Maravilha era chamada pela editora carioca de Miss América, e quando chegou a fase “agente secreta” da personagem ela foi rebatizada simplesmente de Diana, e a Moça-Maravilha — sua irmã adotiva e integrante dos Jovens Titãs — por analogia ganhou a alcunha heroica de… Dianinha! Ah, esses tradutores! Seja como for… somente com o estrondoso sucesso do seriado live-action da Princesa Amazona protagonizado por Lynda Carter a heroína finalmente passou a ser chamada de Mulher-Maravilha no Brasil. E, para aqueles que não se interessam por gibis antigos: a aventura que marca a transformação de Diana Prince em espiã foi publicada pela última vez por aqui em Mulher-Maravilha: Antologia, encadernado lançado pela Panini em 2020.

Sem mais nada para falar, só nos resta proferir a velha frase dita inúmeras vezes por um velho sábio:

E TENHO DITO!

Para saber mais:

A História Secreta da Mulher-Maravilha

Wonder Woman: The Complete History

Wonder Woman: Amazon. Hero. Icon.

Alter Ego #33

Alter Ego #54

Alter Ego #113

Back Issue #17

Guia dos Quadrinhos: Lista de Aparições da Diana Prince Espiã no Brasil

Comic Book Resources: Mulher-Maravilha sai da Liga da Justiça

Comic Book Resources: Sekowsky homenageia Kanigher

Comic Book Resources: Kanigher assassina Dorothy Woolfolk

Comic Book Resources: entrevista com Denny O’Neil

Screen Rant: Mulher-Maravilha dos anos setenta

Comics Alliance: Mulher-Maravilha dos anos setenta

Comics Bulletin: Mulher-Maravilha dos anos setenta

Vanity Fair: como Gloria Steinem salvou a Mulher-Maravilha

Wonder Woman Revisited: artigo publicado na Ms. #1

Artigo acadêmico sobre a Mulher-Maravilha

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Claudio Basilio
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Apenas um rapaz latino-americano que gosta de falar de Quadrinhos e Cultura Pop. E de outros assuntos também!