Penso, logo brinco

Leonardo de Lucas
Socialidade
Published in
6 min readSep 14, 2020
(CreativaImages/Thinkstock/Getty Images)

Crianças são abelhudas. Querem saber de tudo. Estão sempre aqui e ali, em movimento, subindo nos móveis, abrindo os armários, jogando objetos ao chão. Gritam, mordem, lambem. Fazem repetidas vezes as mesmas peraltices. Parecem testar os sentidos e o mundo que as cerca, buscando resultados distintos para suas ações. De certa maneira, é isso mesmo que elas procuram. Essas danadinhas são pequenos cientistas, inconformados e céticos sobre tudo.

Bebê brincando com blocos (reprodução)

Ao longo do tempo, tal princípio investigativo vai se aprimorando. Há quase um método de pesquisa infantil sobre o universozinho que as circunda. Elas brincam e, ao mesmo tempo, experimentam, fazem dos objetos e de si mesmas um laboratório. Até que um preceito lógico tenha alguma validade para além de uma travessura e outra tudo é posto à prova. Do quarto para a cozinha e da sala para o quintal, há mil conexões, padrões e descobertas.

Prestam atenção nas mínimas coisas: numa mancha, numa rachadura, num buraco, nas partes desarmônicas do azulejo, nos cantos roídos pela ação do tempo. Passam a mão na grama, nas folhas, nos galhos secos, os carinhos são sucedidos por apertões que avaliam a resiliência do material. Experimentam o gosto da natureza em estado bruto. Colhem amostras da singularidade encontrada: uma pedra, pedaços de uma flor, algum inseto morto e por aí vai.

Até certo momento do desenvolvimento, o contato com os bisbilhoteiros não envolve muito além de algumas balbuciadas, risadas e choros. Para os expectadores desse reality show que testa limites e paciência, essa complexa relação que se desenvolve nas cabecinhas travessas não é acessível. No entanto, tudo muda com o domínio da linguagem. Esse é um novo aliado, que se soma aos outros, na busca dos xeretinhas pelo conhecimento. Agora, além da bagunça, eles ainda fazem perguntas!

As questões criam mais uma camada à traquinagem especulativa. Há uma que é certeira para a maioria dos adultos: por quê? Essa rebeldia cognitiva com o campo das coisas e de si inclui, a partir desse momento, os grandões. Ninguém escapa à inquirição que se estende até que a fome do saber esteja saciada. Mas, não é simples chegar ao fim desse jogo. Os enxeridos não se dão por satisfeitos, mesmo depois de receberem respostas dos mais velhos.

Desconfiam mais uma vez. Não se contentam. Não acreditam. A racionalidade das narrativas domésticas é limitada, não convence. Armas à mão: mais dúvidas, mais perguntas! Trocam os interlocutores e participantes do experimento. Verificam as informações fornecidas e comparam. Até aqui não há certo ou errado, há uma acomodação momentânea de curiosidade. Os inquietos e indiscretos humaninhos querem desvendar, entender, encontrar o que isto tem a ver com aquilo. Procuram uma explicação.

Programa “De onde vem?” (reprodução)

Um desenho infantil de uns anos atrás chamado “de onde vem?” retratou esse processo muito bem. Nele, a personagem principal é Kika, uma menininha que entre uma diversão e outra tem uma pequena insurreição. Sua pergunta principal é a que dá nome ao quadro. Com a interrogação sobre a origem das coisas, a pequena rompe a barreira das explicações usuais e óbvias, deixando os adultos sem jeito, perdidos e sem saber o que fazer.

Por exemplo, no episódio sobre o plástico, Kika aparece interagindo com uma boneca numa cena lúdica. Após algum tempo, um braço do brinquedo se solta e a criança começa a chorar. A mãe, que está por perto, logo acode e contorna a situação com um pequeno reparo. Em seguida, diz à filha que no seu tempo as bonecas eram feitas de pano. Kika, seguindo o raciocínio, dispara: ”do que é feita então a Leiloca?” A matriarca, sem titubear, responde: “de plástico, Kika”.

A mãe espera outro assunto para a conversa ou alguma outra dúvida sobre como era ser criança no passado. Eis que surge da boca da menina a pergunta inocente: “Ué, mas, de onde vem o plástico?”. Um longo silêncio se segue. Não há outra resposta certeira e quase automática. O fato de ser de plástico e não de pano deveria ser o suficiente para findar a curiosidade da filha. Kika aguarda e vê um adulto apreensivo, balançando os pés, hesitando para dizer alguma coisa. “Bem…é…bom…o plástico…é…chiii, deixei a torta no fogo! Já volto! A torta está queimando!”. A menina, então, profere sua conclusão: “ninguém responde às minhas perguntas”.

A situação de Kika ilustra o processo complexo que se desenrola em seu auge. Os danadinhos, no ápice da revolta epistêmica, se deparam com uma reação dispersa em atores e intenções, mas de algum modo eficaz nos seus propósitos. Seja pelo desestímulo, seja pelo confronto com a autoridade moral, seja pelo direcionamento desse impulso para outros campos da vida, em certo momento da infância o mundo repleto de elementos fantásticos e mágicos começa a perder o encanto.

Eles continuam xeretas, mas vão perdendo a capacidade crítica de fazer questões, pelo menos no plano das interrogações que realmente importam. O sol, o mar, o céu, as nuvens, as plantas e os animais, tudo se acomoda numa nova configuração. A família, a escola, a igreja, o mundo do trabalho (que cada vez mais cedo assombra a vida dos pequenos), cada um desses núcleos de sociabilidade vai inibir a vontade de conhecer e, o mais importante, de colocar perguntas. De repente, aquele serzinho inquieto, imaginativo e aventureiro torna-se um pacato sujeito comum, satisfeito com as respostas que encontra.

Os problemas saem da ordem universal para a pessoal. Não se trata mais do por que o céu é azul, e sim do por que não sou rico ou por que estou desajustado do padrão exigido. O centro gravitacional das crianças mais velhas passa a ser a busca por respostas e não mais a necessidade de criar perguntas. A experiência com o mundo se esvanece e diminui. As comparações, o senso de medida passa a ser os amigos, principalmente os mais populares, bem sucedidos e eleitos como modelos a serem seguidos.

O diferente deixa de ser atraente; os pequenos detalhes passam despercebidos. Os jovens buscam agora o similar, o conforto de serem inseridos, de fazerem parte de uma ordem instituída. Já acumulam anos e anos de bombardeio midiático sobre hábitos de consumo, sobre padrões estéticos e sobre regras de sociabilidade excludentes. Em casa, na escola e nos espaços coletivos, reproduzem lógicas preconceituosas, incorporam o mundo pequeno dos adultos.

A dúvida metodológica dá lugar à busca por certezas. Perguntas não levam mais a outras perguntas. Na escola, o aluno é ensinado a encontrar as repostas, as repostas certas. Esse é o propósito maior, a finalidade de tudo. Nada mais representativo do que o livro do professor, o oráculo da vida estudantil. Nesse fluxo socialmente dirigido de adequação, a traquinagem cognitiva dos bebezinhos é domada e domesticada pela conformidade orgulhosa dos grandinhos.

O filósofo francês do século XVII, René Descartes, disse certa vez que era preciso duvidar de tudo; que na busca pela verdade era preciso que ao menos uma vez na vida se seguisse esse princípio. Pois as crianças o seguem sempre, principalmente quando são mais novas. É necessário resgatar essa imaginação para além do trivial, esse senso crítico que não se contenta com qualquer argumentação, esse encantamento com os fenômenos mais simples, esse fascínio pelo diferente, essa experiência de brincar com as coisas e com os seres de uma forma lúdica e investigativa.

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Leonardo de Lucas
Socialidade

Cientista social. Escritor amador. Apreciador de vinhos e de literatura.