Sobre o frio necessário

Leonardo de Lucas
Socialidade
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6 min readSep 29, 2020
PTI Photo (reprodução) — inverno em Nova Delhi

“Não há nada mais difícil de suportar que uma sucessão de dias belos”. Assim diz Goethe no poema conhecido. Há quem interprete a frase, numa linha luterana, como uma crítica aos feriados seguidos. Freud, em relação distinta, a inseriu no meio de sua argumentação sobre princípio do prazer e felicidade no famoso “Mal-estar na civilização”. Ser feliz, segundo o texto, não é um dado, não é algo durável em nós, mas sim um fenômeno episódico, fruto de uma satisfação repentina de necessidades represadas. Mas o pai da psicanálise achou exagerada a sentença do poeta alemão.

Eu nunca pensei nessa frase nem em um sentido, nem em outro. Entendo os motivos delas e até suponho os contextos históricos, as razões filosóficas e tudo mais (e sei como tais questões são importantíssimas num estudo aprofundado sobre qualquer tema). É que, de onde estou na geografia global, tenho uma leitura distinta. Por aqui, dia belo é lugar comum. Calma lá, eu explico. Mas antes, só para deixar claro, a intenção aqui é meramente especulativa, na melhor acepção do termo; fruto de um exercício de imaginação e inquietação particular.

Recordo-me brevemente de um episódio que vivi, do qual não vale detalhar muito. Estava numa ocasião à beira de uma piscina com sol a pino, poucas nuvens e calor razoável. Esse era o quinto ou sexto dia em que as manifestações climáticas eram as mesmas. Um grupo de gringos, vindo de lugares mais frios, fascinava-se com aquela beleza toda. “Nossa, mais um dia de tempo bom, não?!”, disse um deles, como quem acha que está com sorte. “É…por aqui é assim”, devolvo com algum desalento. O sujeito ficou sem entender, enquanto deleitava-se com os outros sob os raios abrasivos.

Durante pelo menos outros dois dias a surpresa diante do espetáculo da natureza se manteve a mesma. Não quis ser indelicado com o nobre indivíduo que saíra quase de um dos polos do globo para conhecer os trópicos. Expliquei, sem querer tirar o entusiasmo do rapaz, num tom afável, que mesmo se ele ficasse por lá uns 20, 40 ou 60 dias a situação se repetiria igualzinha. “Sério?! Uau, que demais!”. Não esperava essa manifestação, mas intuía algo parecido. Com um sorriso taciturno, emudeci. A conversa mudou de direção e outros assuntos foram surgindo.

Era outono, época que representa o início do frio. Por aqui, o que acontece é apenas uma diminuição sutil do calor. Fora isso, nada muda. O tempo seco ainda contribui para dar uma sensação de sufocamento. Mesmo que o citado diálogo tivesse ocorrido no inverno, mesmo lá a quentura estaria presente. Não sei o que o gringo acharia de viver num lugar em que não há grande diferença entre as estações, num loop eterno do mesmo dia. Deveria ter-lhe perguntado se esse excesso de tempos bons não seria similar a uma pessoa que tendo a opção de comer só o que gosta se farta de doces ou de comida gordurosa. Não haveria aí um desequilíbrio, um desarranjo?

Talvez, nessas últimas linhas, eu me aproxime das observações iniciais. Antes de outras questões, seguimos na ideia literal de um dia belo. É comum, e bem difundida, a noção de que as manhãs e tardes deste dia apresentem um tempo firme, com sol, poucas nuvens e calor. Algo tido como convidativo a sair de casa para aproveitá-lo. Outros adjetivos somam-se: bom, agradável, ensolarado, bonito, lindo, aberto. O astro rei é a peça principal do enredo. É ele quem garante a estabilidade de uma condição climática promissora para a maioria das atividades humanas. Envia de lá cima um código cifrado como quem diz a cada um dos mundanos — fiz a minha parte, agora faça a sua.

Também é o momento perfeito para se revigorar, para recuperar o ânimo, para revitalizar-se, para recarregar-se de boas energias. Há ainda os que gostam de meditar sob a copa de uma árvore. Já viu as imagens de bom dia que as pessoas enviam pelo WhatsApp? São exatas representações do imaginário que representam. É quase um anseio partilhado coletivamente para que, do crepúsculo ao anoitecer, o desejo se realize. As simpatias também evocam esse pedido transcendental pelo alvorecer de um belo dia.

Mas o que seria então um dia feio? Um dia nublado, talvez com chuvas e frio. Instável, é como se diz sobre o tempo. Também se fala em fechado, cinza, esquisito, anormal, ruim, horrível. É momento de ficar em casa, de preferência, de baixo das cobertas, sem sair da cama. Por conta disso, é tido como propício para o desânimo, o abatimento e a melancolia. Ao mesmo tempo, dá aquela sensação de insegurança, de incerteza, de imprevisibilidade. Como se algo tivesse dado errado na beleza divina, uma falha na perfeição. Um dia triste, em resumo.

De onde venho, tudo se resume ao sol. É a sua ausência que expressa a mudança de tom. Mesmo no inverno, se o gigante amarelo aparece, logo esquenta. Sem ele, as pessoas estão tão acostumadas com sua companhia que ficam desorientadas. A bola de fogo é o marcador do tempo, o garantidor da ordem, o diretor e executor da peça que se encena lá em baixo. Há apenas duas estações: a quente e a menos quente. São raríssimos os dias de frio verdadeiro. Ainda assim, todos os anos, após um dia nublado e ameno, entre maio e junho, as pessoas insistem em dizer que vai começar o inverno.

Que nada! Dois ou três dias depois tudo volta como era antes. São pouco mais de 300 dias com temperaturas iguais ou acima de 27 °C (tive a maluca ideia de contar!). Desses, 211 dias de 30°C ou mais; e 63 iguais ou acima de 35°C. Ou seja, são dez meses no ano com temperaturas muito quentes. Aí você deve me perguntar, e quanto aos dias frios?, bom, esses representam, tendo como medida até 20°C, 16 dias. Isso mesmo, 16 dias! E isso que desses quase todos estavam ali entre 18°C e 20°C (e são dias picados de dois em dois). Os outros quarenta e tantos dias tinham média muito próxima a 25°C; também considerados relativamente quentes. Pois é, deveria ter feito essa conta e tê-la apresentado ao gringo.

Aqui piso em ovos para falar sobre alguns assuntos. De modo algum, e acrescento, sem nenhuma intenção, faço um julgamento sobre o clima como se influenciasse as pessoas, sendo elas um reflexo daquele. Não. Não é também uma forma de comparar países/culturas ou coisa que o valha. Isso é muito velho e deveria só ser usado para mostrar aos estudantes os equívocos do passado. Há sempre um traço preconceituoso, racista e pejorativo nesse raciocínio. O clima tem uma relação simbólica muito forte e muito complexa em qualquer canto do globo, sendo essencial para a sobrevivência humana, num sentido mais lato.

Minha briga não é com o sol. Talvez seja comigo mesmo. Mas acho que seria melhor se pudéssemos esperar realmente pelo verão, e não conviver com ele o ano todo. Creio que isso faria mais sentido. Teríamos saudades do astro rei e de todo o seu esplendor. Poderíamos curti-lo, aproveitar esses bons momentos em contato com a natureza. Não estaríamos trabalhando, correndo para lá e pra cá sob um sol escaldante ou mesmo diante de um céu magnífico. O dia quente, ensolarado e com poucas nuvens não seria uma eterna repetição, um dia da marmota — tal qual o filme dos anos 80 — sempre igual.

Do mesmo modo, o inverno teria corpo, estrutura e complexidade longeva. O frio chegaria bem-vindo e viria para ficar um tempo. Seria um convite à mudança, à alternância dos estados da vida. Haveria beleza nele sim. Continuaríamos a sair de casa, agora com roupas adequadas. Mesmo ficando no recanto do lar, poderíamos nos entender mais em nossa introspecção ou mesmo interagir mais com os nossos. Queria acreditar nos negacionistas que dizem que o mundo passa por uma nova era glacial; quem sabe depois de toda a Escandinávia virar um só bloco de gelo a minha região não passaria a ter mais de 16 dias com temperaturas abaixo dos 20°C. Mas queria mesmo era saber o que o velho Goethe pensaria de um verão de mais dez meses.

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Leonardo de Lucas
Socialidade

Cientista social. Escritor amador. Apreciador de vinhos e de literatura.