A Ave Amarela

Trecho do segundo capítulo de “O Poeta e os Lunáticos

Sociedade Chesterton Brasil
Sociedade Chesterton Brasil
15 min readJul 12, 2017

--

Trecho do segundo capítulo de “O Poeta e os Lunáticos”. Contribua com sua campanha aqui: http://bit.ly/2re4FBN

Cinco homens haviam estacado no topo duma colina que se erguia, sobranceira, em meio a um largo vale arborizado. A paisagem, deslumbrante o suficiente para se lhe chamar uma visão, por escondida felizmente escapara ao destino trágico de ser chamada uma vista.

Os sujeitos, um clube de desenhistas diletantes num tour a pé pelos bosques, quando lá chegaram não mais andaram, e, curiosamente, quase não desenharam. Foi como se houvessem chegado em algum tranquilo fim do mundo; aquele canto da Terra exercia-lhes sobre o espírito um efeito curioso, variando, é verdade, de acordo com suas diversas personalidades, mas sobre todos agindo como algo aliciante e vagamente cabal. A qualidade, contudo, era tão inominável quanto única; naquele vale não havia, afinal de contas, nada a que pudessem apontar o dedo e dizê-lo diferente do que há noutros vinte vales arborizados naqueles condados ocidentais nas fronteiras de Gales. Escarpas esverdeadas mergulhavam nas orlas de matagais escuros que eram, comparativamente, negros, e o rio encurvado refletia-lhes as paredes lisas e cinzentas como se fossem longas e contorcidas colunatas. Um pouco apenas à frente, no outro lado do rio, a margem, lisa e desmatada, formara uma plataforma para jardins e pomares.

Embrenhada ali estava uma casa, velha e altaneira. A todos os cantos de suas paredes de tijolos vivamente amarronzados e gelosias azuis estavam cosidas trepadeiras, que mais estavam como o musgo para uma pedra que como flores para um canteiro. O teto era plano, e de seu centro despontava uma chaminé, a baforar anéis de fumaça que se iam perder no céu azul — o único sinal de que a casa não estava completamente deserta. Dos cinco homens que lançavam o olhar paisagem afora, só um tinha qualquer razão especial para detê-lo na casa.

O local afetara o mais velho dos artistas, homem sombrio, enérgico e ambicioso, a usar óculos e destinado a mais tarde tornar-se famoso sob o nome de Luke Walton, de um modo curioso. Parecia importuná-lo como uma mosca, como algo elusivo e arisco; insatisfeito sempre com a vista, de lá para cá, sem parar, mudava a sua banqueta de lugar e ia e vinha e voltava sob as chacotas e gracinhas incansáveis de seus companheiros.

O segundo, gordo e loiro sujeito chamado Hutton, contemplou a cena, bovinamente, por alguns segundos, rabiscou umas linhas quaisquer num bloquinho de desenho e anunciou, triunfante e sonoro, que ali se tinha um bom lugar para um piquenique, e que iria almoçar.

O terceiro pintor concordou; mas este era, além de pintor, poeta, e como se sabe nada há mais natural aos poetas do que demonstrar certo fervor por qualquer oportunidade de se esquivar do trabalho. De fato, a este artista em particular — Gabriel Gale era o seu nome — parecia faltar-lhe a coragem até mesmo para olhar a paisagem, que dirá para pintá-la; depois de abocanhar um sanduíche de presunto e bebericar o Bordeaux alheio, incontinenti deitou-se de costas e ficou a observar a luz que lhe dava piscadelas rútilas por entre a folhagem dançante; segundo alguns tirando uma sesta, segundo outros, mais generosos, a compor poesia.

O quarto, batizado Garth e sobrando na vigilância felina o que lhe faltava na altura, só poderia ser considerado membro honorário do grupo, pois era homem de ciência, não de arte, e trazia nas mãos uma câmera em vez dum estojo de tintas. Ainda assim, não é como se não soubesse apreciar um cenário inteligentemente, e estava, pois, a fixar o seu aparato fotográfico de modo a fazê-lo cobrir o ângulo do rio onde jaziam o jardim negligenciado e a casa ao longe.

Foi então que o quinto homem, até ali marmorizado, mudo e imóvel, estalou um gesto tão mirabolante que se poderia dizer que ele engatilhara a câmera, como um revólver pronto a matar.

— Não; pare aí — ele disse, — já basta quando eles tentam pintá-la.

— Qual é o problema? — perguntou Garth. — Você não gosta da casa?

— Gosto demais, — disse-lhe o outro, — ou, melhor dizendo, amo-a demais para que possa até mesmo gostar dela.

Conquanto o mais jovem do grupo, o sujeito que assim falara, quinto homem do grupo, ao menos já havia logrado algum sucesso e fama locais; em parte porque devotara o seu talento às paisagens e lendas daquela região, em parte porque vinha de uma família de pequenos squires cujo nome era histórico naquelas colinas. Era alto, tinha cabelos castanho escuros e um rosto moreno alongado de que despontava um nariz aquilino, antes nobre do que belo. No cenho, uma espessa nuvem de elucubração que dali nunca saía e lhe dava à aparência uns quantos anos que ele ainda não tinha. Ele fora o único dos homens a não fazer gesto nenhum, quer de relaxamento, quer de trabalho, ao chegar no topo da colina. Em meio ao vaivém de Walton, ao alegre cear de Hutton e ao artístico contemplar de Gale em seu colchão de folhas, este homem, a olhar através do vale para a casa, estatuescamente não movera um músculo, e só levantou um braço quando Garth para esta apontou a sua câmera.

Garth virou-lhe um rosto que, apesar de suas linhas angulosas, estava fresco e risonho; é que o cientista calhava de ser um sujeito admiravelmente bem-disposto.

— Ah, suponho haver uma história aí no meio, — ele disse; — pelo seu jeito, a coisa é confidencial. Se me quiser contá-la, asseguro-lhe que sou um excelente guardador de segredos. Sou um médico e tenho de guardá-los aos montes, especialmente os de doidos. Isso deveria encorajá-lo.

O jovem, cujo nome era John Mallow, continuara a fitar, melancólico, o vale, mas algo nele sugeria que o outro havia adivinhado certo, e ele estava prestes a falar.

— Não se preocupe com os outros, — acrescentou Garth, — não têm como ouvir nada; estão muito ocupados fazendo coisa nenhuma. Hutton! — gritou, estridente, — Gale! Vocês estão ouvindo?

— Sim, estou ouvindo os pássaros, — veio em resposta, de seu lar folheado, a voz abafada de Gale.

— Hutton está roncando já, — fez notar Garth, satisfeito. — Não é de se espantar, depois de todo aquele almoço. E você, Gale, está dormindo?

— Dormindo não; sonhando, sim, — respondeu o outro. — Se você espiar o céu por um tempo, daí a pouco não há mais embaixo ou em cima, e tudo se nos torna um sonho verde e vertiginoso, com pássaros que aliás poderiam muito bem ser peixes. Não passam de formas estranhas, multicoloridos recortados contra o verde; o marrom, o cinza… e uma delas parece bastante amarela.

— Um martelo-amarelo*, suponho, — Garth observou.

— Não, com um martelo não se parece, — Disse Gale, molemente, sonhosamente; — não é uma forma tão estranha assim.

— Ora, seu palerma! — disparou Garth, curto se bem que não grosso. — Que é que você esperava? um martelo de leiloeiro? Vocês, poetas que são tão bons quando o assunto é a Natureza, sabem nada de história natural, mesmo. Bem, Mallow, — ele então acrescentou, girando o corpo para olhar o companheiro, — não há o que temer, como você bem vê, se conversarmos sem gritar. Que tem esta sua casa?

— A casa não é minha, — disse Mallow. — A bem dizer, é de uma velha amiga de minha mãe, a Sra. Verney, uma viúva. Agora, o lugar está basicamente arruinado, como se pode ver, pois os Verneys foram a pouco e pouco empobrecendo, e não sabem o que fazer agora; um grande problema. Mas foi ali que eu passei os tempos mais felizes que já tive e provavelmente jamais terei na vida.

— E esta Sra. Verney era assim tão encantadora? — perguntou-lhe, docemente, o seu amigo, — ou poderia eu tomar a liberdade de supor que havia uma descendência?

— Infelizmente, para mim, é uma descendência um tanto ascendente, — replicouMallow. — Vai ascendendo em algo como uma pequena revolução; e de tanto ascender algumas coisas já lhe estão subindo à cabeça. Então, depois de um silêncio, soltou, algo abrupto, — Você acredita em senhoras doutoras?

— Não acredito em doutor nenhum, — respondeu-lhe Garth. — Eu sou um deles.

Adquira já seu exemplar: http://bit.ly/2re4FBN

— Bem, não é exatamente uma doutora, creio, mas algo do tipo, — continuou Mallow; — estudo de ciência psicológica e coisa e tal. Laura está deslumbrada, obcecada mesmo, pela coisa, e está ajudando algum psicólogo — ou coisa que o valha — russo.

— Seu estilo narrativo é mesmo formidável de tão sucinto, — fez notar o Dr. Garth, — mas, vamos lá. Suponho que eu possa deduzir o seguinte: Laura não só é filha da Sra. Verney, como também tem alguma conexão lógica com os idos dias felizes que não irão mais voltar, certo?

— Suponha o quanto quiser sobre o que quiser, — replicou-lhe o jovem. — Sabe muito bem o que estou dizendo. Mas o ponto mesmo é este aqui: Laura está cheia de novas idéias, e conseguiu persuadir a sua mãe a tirar o cavalinho da chuva da alta sociedade e viver de acordo com o que ganham. Não digo que ela esteja errada nisto; o diabo é que há algumas complicações no mínimo curiosas. Para começo de conversa, Laura não apenas trabalha para se sustentar; trabalha para se sustentar no laboratório deste misterioso moscovita; além de quê, quase forçou a sua mãe a alugar um quarto. E o inquilino é, de novo, o moscovita, que segundo parece quer uma vida tranquila no campo.

— E, de novo supondo, — disse o doutor, — há moscovita demais na vida da senhorita para o seu gosto?

— A falar a verdade, ele se mudou ontem à noite, — continuou Mallow, — e suponho estar aí a razão de eu ter vindo parar aqui, arrastando-os todos junto comigo. Disse-lhes que o lugar era lindo, e é mesmo, mas eu não queria nem mesmo visitá-lo. Não consegui me livrar, porém, de uma vaga sensação de que eu deveria ficar por perto.

— E, como não conseguia se livrar de nós, trouxe-nos junto, — Garth arrematou, com um sorriso. — Bem, a coisa é perfeitamente compreensível. Você sabe algo sobre este professor russo?

— Não sei coisa nenhuma de má, — respondeu o outro. — É um homem extremamente famoso, tanto na ciência quanto na política. Há muito tempo, escapou de uma prisão na Sibéria ao mandar a parede pelos ares com uma bomba que fizera, em sua cela, à gambiarra; é uma história muito empolgante, e, ao menos, sei que ele é corajoso. Depois, escreveu um grande livro chamado, salvo engano, ‘A Psicologia da Libertação’. Laura abraça-lhe as visões fervorosamente. É algo que não consigo descrever, para lhe dizer a verdade; eu e ela gostamos muito um do outro, e eu não creio que ela me tome por um idiota, e nem eu creio ser um idiota. Mas, de uns tempos para cá, todas as vezes em que nos encontramos a coisa foi literalmente como um encontro na autoestrada, quando duas pessoas estão indo em direções opostas. E eu acho que sei por quê: a sua alma é centrífuga; a minha, centrípeta.

Quanto mais eu vejo do mundo; quanto mais homens eu conheço, livros vou lendo ou perguntas respondendo, tanto mais retorno, mais convicto sempre, àqueles lugares onde nasci ou brinquei em garoto, estreitando os meus círculos como um pássaro que volta ao ninho. Parece-me ser este o fim de todas as viagens, e, especialmente, da viagem mais extravagante de todas — a de volta para casa.

Laura, por sua vez, tem uma idéia bem diferente. Não se trata apenas de ela dizer que a velha casa de tijolos marrons lhe é como uma prisão, ou as colinas como gaiolas; ouso dizer que, sim, é verdade, as coisas podem ficar bastante tediosas num lugar assim. Há uma teoria, também, que ela deve ter pegado de seu amigo psicólogo. Está sempre a falar de como ali, em seu próprio vale, em seu próprio quintal, as árvores só crescem por irradiarem para fora, palavra que aliás é o latim para ‘ramificar’. Diz ela que a palavra mesma — ‘radiante’ — prova ser isso o segredo da felicidade. Há algo de verdadeiro aí, suponho; mas, quanto a mim, eu por assim dizer irradio para dentro; é por isso que todas as pinturas que faço são deste cantinho minúsculo do mundo. Se eu tivesse como pintar apenas este vale, talvez eu chegasse a pintar-lhe o jardim; e, pintado o jardim, quem sabe eu não me tornasse digno de pintar a trepadeira que lhe está abaixo da janela.

Do nada, o dorminhoco Hutton acordou com um bocejo estrondoso e, içando o corpanzil de sua cama de folhas, cambaleou até onde o mais industrioso Walton havia ao menos se instalado para trabalhar no outro lado da colina. Quanto a Gale, o poeta, este continuava a espiar o emaranhado de topos d’árvores embaralhados. E a única resposta que deu a um novo desafio de Garth foi dizer, pesadamente, — Enxotaram o amarelo.

— Quem enxotou o quê? — Mallow, enfezado, exigiu saber.

— As outras aves atacaram a amarela e enxotaram-na, — disse o poeta.

— Um intruso indesejado no bando, sem dúvida, — explicou-lhe, solícito, Garth.

— O Perigo Amarelo, — disse então Gale, e recaiu em seus sonhos.

Mallow já resumira seu monólogo:

— O psicólogo chama-se Ivanhov, e, segundo dizem, ele está a escrever outro grande livro neste seu retiro campestre; creio que Laura esteja trabalhando como sua secretária. O objetivo é incorporar alguma teoria matemática sobre a eliminação de limites e…

— Veja só! — gritou Garth. — Não é que a sua ínsula campestre está a ganhar vida? Alguém está abrindo uma janela.

— Você não a vinha olhando como eu, — respondeu-lhe, quieto, Mallow. Ali à esquerda, logo onde faz uma curva a parede, há uma pequena janela que esteve aberta o tempo todo. É a janela da pequena sala-de-estar em que transformaram o antigo quarto sobressalente. Antes, era o quarto de Laura, e muito de suas coisas ainda estão ali; mas eu acho que o cômodo agora é para os hóspedes.

— Incluso aí, óbvio, o hóspede pagante, — observou Garth.

— Ele é um tipo estranho de hóspede. Oxalá seja pagante, — retrucou-lhe o outro. — A grande janela cujas gelosias acabaram de ser abertas está no final da enorme livraria; todas estas janelas lhe pertencem. Se o filósofo quiser filosofar, é ali que irão enfiá-lo.

— Quando o assunto é ar fresco, ao que tudo indica o filósofo é filosófico, — fez notar Dr. Garth; — ele ou mais alguém abriu mais três janelas, e parece estar penando paraabrir outra ainda.

Enquanto falava, a quinta janela escancarou-se e mesmo dali, longínquos como estavam, conseguiram ver uma trepadeira que se lhe pegara estalar e cair morta, mutilada. Foi como se alguma corrente verde, que até então aferrara a casa, se houvesse partido. Como o partir-se do selo de uma tumba.

Pois Mallow, a muito contragosto, sentira a presença e a pressão daquele ideal revolucionário que reconhecera ser o seu rival.

Ao longo de toda a maltratada fachada da antiga e amarronzada casa as janelas estavam a abrir-se qual os olhos de um Argos a despertar, enfim, de seu sono colossal. Fora obrigado a admitir que jamais vira o lugar vir assim à vida desde dentro, como uma planta que se vai desdobrando ao Sol. As últimas três janelas já sorviam a luminosidade rútila da manhã; o longo cômodo devia estar cheio de luz, sem falar no ar puro. Garth havia falado de um filósofo do ar fresco; porém aquilo se afigurava mais um sacerdote pagão a transformar a casa num templo dos ventos.

Havia, porém, naquela visão d’alva mais do que o simples acidente de uma fileira de janelas abertas quando de ordinário estavam fechadas. A mesma imagem, sobre a vida a desdobrar-se, pareceu encher, pairar sobre acena qual uma nova atmosfera. Era como se ar puro houvesse sido assoprado das janelas ao invés de para as janelas. O Sol, que já subira razoavelmente no céu, irrompeu das brumas matinais com algo do raiar potente da aurora. As silhuetas mesmas das árvores na floresta, espreguiçando-se e esticando as suas frondas como leques, pareciam repetir a palavra original “radiante”, que antes lhe soara quase um trocadilho latino. Sobre a sua cabeça velejavam, como se esporadas ao vôo por algum tipo de força centrífuga, as nuvens que continuavam a carregar té as alturas do meio-dia as tintas do nascer do Sol.

Sentia tudo aquilo que tanto temia — todo o frescor e viço das coisas — investir-lhe contra, numa irresistível expansão. Mesmo quando seu olhar foi dar num abandonado e definhado portão solitário no velho jardim, Mallow podia jurar que o vira intumescer.

Uma exclamação estridente de seu amigo fê-lo despertar de seu devaneio sobrenatural, a que poderíamos melhor chamar, contraditoriamente, de um pesadelo diáfano de luz.

— Com mil diabos! Ele encontrou outra janela; — clamou o doutor; — uma janela no telhado.

Havia, com efeito, uma clarabóia a rebrilhar sob o céu resplandecente; e da abertura emergiu a figura de um homem. Àquela distância, dele só o que se dava para ver é que era alto, magro e loiro, com uns cabelos amarelos que o Sol cáustico tornava dourados. Vestia algo longo e claro, provável é que um roupão, e estava a esticar os seus braços compridos como se com a sonolenta exultação de quem acabou de acordar.

— Veja aqui! — disse Mallow, de repente, uma expressão indescritível a perpassar-lhe de ponta a ponta o rosto para sumir um instante depois; — Está na hora de lhes fazer uma visita.

— Imaginei mesmo que fosse fazê-la, — respondeu-lhe Garth. — Quer ir sozinho?

Enquanto falava, olhou à roda em busca dos outros, mas Walton e Hutton ainda tagarelavam ao longe no outro lado da colina, e apenas Gale estava largado deitado, à espessa sombra copada, olhando os pássaros como se nunca houvera mexido um músculo na vida. Garth chamou-lhe a nome, mas foi só depois de um silêncio que Gale respondeu. O que ele disse foi:

— Você alguma vez já foi um triângulo isósceles?

— Muito raramente, — replicou Garth, contido. — Será que eu poderia saber de que diabos você está falando?

— É só algo em que eu estava pensando, — respondeu o poeta, erguendo-se sobre um dos cotovelos. — Fiquei aqui a imaginar se seria algo limitativo estar cercado de linhas retas, e se um círculo seria qualquer coisa de melhor. Será que alguém já viveu numa prisão redonda?

— De onde você tira essas idéias malucas? — inquiriu o doutor.

— Um passarinho me contou, — Gale disse, gravemente. — Oh, é mesmo verdade.

A essas tantas, já estava de pé, e veio vindo devagar até a beira da colina, mirando sempre a casa ao pé do rio. Enquanto olhava, seus sonhosos olhos azuis pareceram despertar, como as janelas se abrindo na casa que fitava.

— Outro pássaro, — murmurou, suave, — como um pardal nos telhados. E isto se encaixa perfeitamente.

Havia, a bem dizer, alguma sugestão de verdade na frase, pois a estranha figura estava na beirada mesma do telhado, com espaço abaixo e os braços escancarados quase como se quisesse voar. Mas a última sentença, e inda mais por estranhamente que fora falada, confundiu o doutor.

— Encaixa-se no quê? — perguntou o homem, um tanto ríspido.

— Ele é como aquele pássaro amarelo, — disse Gale, vagamente. — De fato, é um pássaro amarelo, com aquele cabelo e o Sol sobre a cabeça. O que você pensava que ele era mesmo. . . um martelo-amarelo?

— Martelo-amarelo é você, — retorquiu Garth; — tão amarelo quanto ele. Na verdade, com estas pernas compridas e este cabelo aí cor-de-palha, olha, vocês são iguaizinhos.

Mallow, algo mais místico, ficou a olhar, estranhamente, de um para o outro, pois com efeito havia uma vaga semelhança entre as duas figuras, esguias e louras; uma na casa, a outra, na colina.

— Talvez eu seja bastante parecido com ele, — disse Gale, calmo. — Talvez eu seja suficientemente como ele para aprender a não ser como ele, por assim dizer. Quem sabe não sejamos aves de uma só pelugem, a pelugem amarela; mas não afluímos ao mesmo bando, pois o seu bando é ele mesmo. E quanto a ser um martelo, amarelo ou o que for, bem, temos aí outra alegoria.

— Eu passo a chance de descobrir onde está o pé, onde a cabeça de suas alegorias, obrigado — disse-lhe, simplesmente, o Dr. Garth.

— Antigamente, eu queria um martelo para com ele esmagar coisas, — continuou Gale; mas aprendi a fazer algo mais com um martelo, algo para que aliás a ferramenta foi criada; e, agora, de quando em quando, eu consigo fazê-lo.

— E o que você quer dizer com isso?” — quis saber o doutor.

— Eu consigo acertar em cheio o prego certo**, — respondeu-lhe o poeta.

Contribua com essa obra. Apoie a campanha de “O Poeta e os Lunáticos”: http://www.sociedadechestertonbrasil.org/opoetaeoslunaticos/

*Chesterton, como de praxe, faz aqui um jogo de palavras. Yellow-hammer (martelo-amarelo) é como se chama a categoria de pássaros que, em português, designamos por “escrevedeira-amarela”. Por intraduzível que era o trocadilho, e, pois, os dois parágrafos que se lhe seguem e mais uns tantos mais à frente, optei por manter o nome original e traduzi-lo literalmente, ainda que o correspondente em português lhe seja diverso.

**Hit the right nail on the head é o equivalente de nosso “acertar na mosca.” Por razões óbvias, não pude usar esta última expressão e tive de traduzir, de novo literalmente, o que é na verdade um jogo de palavras. Ossos do ofício.

--

--