Produção cooperativa é uma das bases do Distributismo

Distributismo: economia porque as pessoas importam

Pedro G. Menezes
Sociedade Chesterton Brasil
7 min readMay 3, 2017

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Por Pedro Menezes. Gestor público e autor do site O Distributista Urbano.

Existem muitas propostas econômicas para melhorar a renda, a produção, o bem-estar, enfim, a vida das pessoas. E quase todas podem ser classificadas entre o capitalismo totalmente liberal e o socialismo plenamente estatizante, ou então num certo grau situado entre estes dois extremos. No entanto, há outra forma de propor uma economia próspera, solidária e ao mesmo tempo baseada na propriedade e na livre iniciativa. Esta forma é o Distributismo[1].

O distributismo (também chamado de distributivismo) não é unicamente um meio termo entre capitalismo e socialismo — embora seja comumente descrito desta forma, com alguma precisão. Há muitos bons artigos que resumem o distributismo, sendo que dos melhores para aprender os fundamentos desta proposta econômica foi recentemente traduzido em português pela Sociedade Chesterton Brasil. Não irei repetir o que está lá, mas apresentar de outra forma, com outros detalhes. Nesta apresentação, preferi começar descrevendo o distributismo com uma frase:

O distributismo é uma proposta de organização econômica na qual os meios de produção devem ser distribuídos o máximo possível entre as pessoas.

Um dos sinais mais comuns para se medir a pobreza é a desigualdade de renda — normalmente expressa pelo coeficiente de Gini [2]. A ótica, portanto, é pelo ponto de vista da renda. Quase todo paradigma sobre pobreza e os meios de combatê-la ergue-se do ponto de vista da renda. As medidas do governo para diminuir o desemprego, os programas sociais e bolsas-família da vida, os vales-transporte e tíquetes-alimentação, os benefícios fiscais — tudo isso, no fundo, são políticas de redistribuição de renda. Praticamente nenhuma delas almeja redistribuir meios de produção, isto é, os meios pelos quais se gera a renda.

A renda é, numa frase, a remuneração dos meios de produção. Ela é um resultado da produção, e não os meios de se produzir. Meios de produção são coisas que usamos para produzir outras coisas (e em última análise, gerar a renda, a qual usaremos para consumir, para subsistência e previdência): máquinas, imóveis, ferramentas, terra, entre outras coisas. Podemos chamá-los genericamente de capital.

O objetivo do distributismo não é distribuir renda. Seu objetivo é distribuir capital.

A razão disso é capacitar as pessoas, sempre que possível, a produzirem riqueza por elas mesmas. O distributismo objetiva evitar, ou mesmo eliminar, a dependência das pessoas e de suas famílias unicamente na sua força de trabalho. Pois, quem não tem qualquer meio de obter renda a não ser sua força de trabalho, fica a mercê de quem possui o capital. Na teoria marxista, os trabalhadores desprovidos de capital são chamados de proletariado.

Entre o capitalismo e o socialismo?

Como disse acima, muitos descrevem o distributismo como um sistema econômico que não é nem capitalista, nem socialista, mas algo entre os dois. É uma descrição válida. No entanto, prefiro descrever o distributismo de outra forma. Nele, há dois pressupostos importantes:

  • No distributismo, há propriedade privada dos meios de produção — isto é, o capital não fica na mão do Estado ou de entes coletivos, mas de pessoas particulares.
  • Como o capital é privado, o distributismo pressupõe a iniciativa privada.

Estes dois princípios bastariam para classificar o distributismo como capitalismo em sentido amplo: é uma economia baseada na propriedade privada do capital (e não estatal, social, coletiva, etc.) e que funciona em uma lógica de mercado, com livre iniciativa. No entanto, não se trata de um capitalismo totalmente liberal, lassez-faire, no qual a lógica de mercado é superior a todo o resto. Pois, se esta lógica é o objetivo último da economia, o capital acaba sendo acumulado na mão de poucos, chegando assim ao oposto do objetivo do distributismo. Como escreveu G.K. Chesterton, escritor inglês e um dos proponentes do distributismo:

“O problema do capitalismo não é que existem capitalistas demais, e sim que existem capitalistas de menos”.

Uma vez que temos, no distributismo, o capital privado, mas a lógica de mercado não é a mais prevalente, qual é então a lógica desse sistema? A diferença está nos princípios que descreverei a seguir.

Um moshav: vila agrícola cooperativa em Israel

Do menor para o maior

A família é a célula-mater da sociedade. Era o que se ensinava na escola, pelo menos na época em que eu estava na escola. É necessário para o bem-estar de todos que a família seja capaz de sustentar a si mesma.

Toda produção econômica e a renda dela proveniente deveria servir, em fim último, as famílias; e as famílias deveriam ser soberanas no sustento e nos negócios que lhes dizem respeito. A economia serve para dar sustento e prover segurança material. O objetivo da produção deve ser o provimento — não mais a produção, em ritmo e eficiência cada vez maior, que não serve diretamente às pessoas e suas famílias.

Portanto, as famílias têm autoridade total em seus assuntos e negócios, exceto naquilo que não podem resolver sozinhas — o que, por sua vez, está sob autoridade de um ente maior, a vizinhança. A vizinhança trata dos seus assuntos e delega outros maiores para a cidade, e a cidade para a província, e assim por diante, até o Estado nacional, cuja competência se restringe aos temas fora do alcance dos agrupamentos menores. Este é o princípio da subsidiariedade: o ente maior não interfere no menor. As famílias e os grupos menores devem viver com o mínimo de interferência de grupos maiores e mais poderosos: empresas, cidades, estados.

E quando precisamos ser melhores?

O distributismo surgiu da crítica à economia moderna, tanto socialista quanto capitalista, que causou uma separação (muitas vezes brutal) entre a força de trabalho do homem e seus meios de sobrevivência, entre trabalho e capital, e advoga o retorno a formas de organização pré-capitalistas, inspiradas nas guildas ou corporações de ofício.

Isso pode dar a impressão de que o distributismo é contra a produção eficiente, os sistemas financeiros, a especialização do trabalho e o avanço tecnológico, mandando as pessoas de volta para o campo e obrigando-as a produzirem a própria manteiga.

Trata-se de uma impressão equivocada, pois todas essas coisas — eficiência, sistema financeiro, especialização e divisão do trabalho, e avanço tecnológico — já existiam antes do capitalismo moderno. Este somente acelerou seu desenvolvimento, tendo como mote a acumulação infinita de riqueza. A proposta do distributismo é mudar o foco, da acumulação irracional (que, ironicamente, é o objetivo maior de um sistema dito plenamente racional) para o sustento abastado e autônomo de todas as pessoas.

E quando precisamos ser maiores?

O distributismo claramente favorece a pequena propriedade, o pequeno produtor, as empresas familiares. Esta é a forma mais direta de distribuir os meios de produção ao maior número possível de pessoas.

Porém, hoje vivemos em economias complexas, que produzem bens de alto nível tecnológico, como carros e smartphones, em fábricas gigantescas e com enormes montantes de capital. Dá para continuar com este padrão produtivo de ponta privilegiando os produtores de leite em agricultura familiar?

A resposta é sim: grandes empreendimentos com altos volumes de capital são possíveis com a distribuição da riqueza, por meio de cooperativas e empresas geridas pelos próprios trabalhadores. Deveríamos criar incentivos para que as pessoas se organizem em arranjos cooperativos, nos quais os empregados sejam proprietários do capital das empresas onde trabalham, e desestimular a acumulação de capital (em particular o capital especulativo) em pequenos grupos proprietários.

Corporación Mondragón, cooperativa sediada na Espanha

Não é utopia

Estas ideias podem parecer longe da realidade, mas o fato é que já são aplicadas em muitos lugares. Iniciativas que permitem o acesso ao capital a mais pessoas são, de certa maneira, distributistas. Cooperativas de trabalhadores, negócios familiares, fundos de microcrédito, seguradores para empreendedores, aceleradoras de startups, trabalhadores como acionistas e com representantes dos boards de suas empresas, agricultura comunitária, até a recente popularização da agricultura orgânica e do ato de comprar dos “produtores locais”: são todos exemplos comuns que utilizam ao menos alguns princípios do distributismo.

Há dois outros exemplos marcantes. A Corporação Mondragón, o 10º maior grupo empresarial da Espanha, é uma entidade composta por cooperativas. E, na Itália, na província de Emilia-Romagna — uma das mais ricas do país, cujo PIB cresceu o dobro da média nacional e ultrapassou o crescimento francês em 2016 — quase 15% dos trabalhadores atuam em cooperativas, gerando 16,5% da produção da província.

O distributismo nos traz um conjunto de fundamentos praticáveis numa economia de mercado, competitiva, com iniciativa privada e propriedade do capital. Ao contrário do sistema socialista, pode ser imediatamente aplicado a partir dos incentivos corretos, sem agigantar o Estado nem socializar a propriedade.

No distributismo, faz sentido dizer que as pessoas importam e que as pessoas se importam. Cada pessoa importa porque o sustento de sua família deve render-lhe mais do que somente o valor em horas do seu trabalho, principalmente se ela é remunerada apenas pela força do trabalho por uma parcela mínima da riqueza que seu trabalho gera. As pessoas se importam porque reconhecem sua contribuição para a sociedade, uma vez que cada uma delas possui parte do capital total e compreendem como essa parcela impacta as vidas de outras pessoas — é o princípio da solidariedade.

www.sociedadechestertonbrasil.org

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Notas:

[1] O distributismo foi proposto no início do século XX pelos pensadores ingleses Hilaire Belloc e G.K. Chesterton como uma alternativa econômica inspirada na Doutrina Social da Igreja, em particular na encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII.

[2] O coeficiente de Gini é a razão da curva de distribuição de renda (curva de Lorenz), a qual expressa a porcentagem da população que detém determinada porcentagem da renda total. Ele vai de zero (renda plenamente distribuída) a 1 (renda totalmente concentrada). O coeficiente de Gini do Brasil em 2016 foi calculado em torno de 0,52.

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