O Diabolista

O dia em que Chesterton conheceu um adorador do diabo

Daniel Alves de Araújo
Sociedade Chesterton Brasil
7 min readFeb 2, 2017

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Textro do livro Tremendas Trivialidades

De vez em quando introduzo em meus ensaios um elemento de verdade. Mencionei coisas que realmente aconteceram, como o encontro com o presidente Kruger ou ser atirado para fora de um táxi.

O que vou relatar agora realmente ocorreu; porém não houve qualquer elemento de prática política ou perigo pessoal. Foi simplesmente uma quieta conversa que tive com outro homem. Mas essa quieta conversa foi de longe a coisa mais terrível que já me aconteceu na vida. Ocorreu há tanto tempo que não posso estar certo das palavras exatas do diálogo, só de suas perguntas e respostas principais; mas há uma sentença que posso garantir palavra por palavra. Foi uma frase tão terrível que não conseguiria esquecê-la mesmo que tentasse. Foi a última frase pronunciada; e não foi dirigida a mim.

O episódio ocorreu nos dias em que eu estava na escola de artes. Uma escola de artes é diferente de quase todas as outras escolas e faculdades nesse respeito; que, por ser de criação recente e ainda crua e de disciplina laxa, apresenta um contraste especialmente intenso entre o laborioso e o indolente. As pessoas em uma escola de artes ou fazem uma quantidade brutal de trabalho ou não fazem trabalho algum. Eu pertencia, juntamente com outras pessoas encantadoras, à última categoria; e isto me atirou com freqüência para a companhia de homens muito diferentes de mim e que eram ociosos por razões muito diferentes das minhas.

Eu era ocioso porque estava muito ocupado: estava envolvido naquela época em descobrir, para minha extrema e duradoura surpresa, que não era ateu. Mas havia outros desocupados que estavam envolvidos em descobrir o que Carlyle chamava (acho que com desnecessária delicadeza) o fato de que o gengibre é picante ao paladar.

Valorizo aquela época, em resumo, porque me fez conhecer um bom número de salafrários. Sobre isso há duas coisas muito curiosas que o crítico da vida humana pode observar. A primeira é o fato de que existe uma diferença real entre homens e mulheres: mulheres preferem falar em pares, enquanto homens preferem falar em trios.

A segunda é que, quando você encontra (como é freqüente) três jovens devassos e idiotas saindo juntos e embebedando-se juntos todo dia, em geral descobre que um dos três devassos e idiotas não é (por alguma razão extraordinária) nem devasso nem idiota. Nesses pequenos grupos devotados a uma dissipação frívola há quase sempre um homem que parecer ter transigido em acompanhá-los; um homem que, ao mesmo tempo em que consegue conversar sobre alguma torpe trivialidade com seus companheiros, pode também falar sobre política com um socialista ou filosofia com um católico.

Foi justamente um desses homens que acabei conhecendo bem. Era estranho, talvez, que ele apreciasse suas companhias sujas e bêbadas; era talvez ainda mais estranho que apreciasse a minha companhia. Durante o dia conversava comigo horas a fio sobre Milton ou sobre arquitetura gótica; durante a noite, por horas ele ia a lugares em que não tenho o menor desejo de segui-lo, mesmo em imaginação.

Era um homem de face comprida e irônica, e cabelo ruivo bem curto; tinha boa posição social e seria capaz de andar como um cavalheiro, mas preferia, por alguma razão, andar como um cavalariço carregando dois baldes. Parecia uma espécie de super-jóquei; como se algum arcanjo tivesse entrado no turfe. E nunca esquecerei a meia hora em que ele e eu discutimos sobre coisas reais pela primeira e última vez.

Ao longo da fachada do grande prédio de que nossa escola era parte havia um enorme lance de degraus de pedra, mais alto, acredito, do que aqueles que sobem à Catedral de St. Paul. Em uma escura noite de inverno caminhávamos nessas alturas frias, tão lúgubres quanto uma pirâmide sob as estrelas. A única coisa visível abaixo de nós na escuridão era uma fogueira brilhando; pois algum jardineiro (creio eu) estava queimando algo no pátio, e de tempos em tempos faíscas vermelhas passavam voando por nós como uma nuvem de insetos vermelhos no escuro. Acima de nós também havia trevas; mas se alguém olhasse tempo suficiente para aquela escuridão superior verias faixas verticais de cinza no preto, até tomar consciência da colossal fachada de construção dórica, fantasmagórica, mas que preenchia o céu, como se os Céus ainda estivessem cheios com o gigantesco fantasma do paganismo.

O homem perguntou-me abruptamente por que eu estava me tornando ortodoxo. Até que ele o dissesse, eu realmente não sabia que estava; mas no momento em que o disse, soube que era pura verdade. E o processo fora tão longo e completo que respondi imediatamente com argumentos tirados de um verdadeiro estoque de explicações.

¨Estou me tornando ortodoxo¨, disse-lhe, ¨porque cheguei, de uma forma ou de outra, após forçar meu cérebro até rebentar, à velha crença de que heresia é ainda pior do que o pecado. Um erro é ainda mais ameaçador que um crime, porque um erro gera o crime. Um imperialista é pior do que um pirata. Pois um imperialista mantém uma escola de piratas; ele ensina pirataria desinteressadamente e sem um salário adequado. Um entusiasta do amor livre é pior que um libertino. Pois um libertino é sério e ousado mesmo em seu amor mais curto, enquanto um amante livre é cauteloso e irresponsável mesmo em sua mais longa devoção. Detesto a dúvida moderna porque ela é perigosa¨.

¨Você quer dizer perigosa para a moral¨, ele disse em uma voz maravilhosamente gentil. ¨Imagino que esteja certo. Mas por que se importa com a moral?¨

Olhei rapidamente para seu rosto. Ele esticara o pescoço como era seu hábito; e assim sua face foi abruptamente iluminada pela fogueira abaixo, como por uma ribalta. Seu queixo longo e malares salientes estavam infernalmente iluminados desde baixo, de forma que parecia um demônio olhando para um poço de chamas. Tive uma impressão inexplicável de estar sendo tentado no deserto, e no momento em que fiz uma pausa uma explosão de faíscas passou.

¨Essas faíscas não são esplêndidas?¨, perguntei.

¨Sim¨, respondeu-me.

¨É tudo o que lhe peço para admitir¨, disse-lhe. ¨Dê-me esses poucos grãos vermelhos e deduzirei a moral cristã. Já pensei como você, que o prazer de alguém em ver uma faísca voando era algo que poderia ir e vir com a faísca. Já pensei que o encanto era tão livre quanto o fogo. Já pensei que aquela estrela vermelha que vemos estava só no espaço. Mas agora sei que a estrela vermelha está apenas no alto de uma pirâmide invisível de virtudes. Aquele fogo rubro é apenas uma flor em um caule de hábitos arraigados que não se vêem¨.

¨Só porque sua mãe o fez dizer ´obrigado` por um pão doce é que você é capaz agora de agradecer à Natureza ou ao caos por aquelas estrelas vermelhas de um instante ou pelas estrelas brancas de todos os tempos. Só porque você se humilhou perante os fogos do 5 de novembro é que consegue apreciar os fogos que vê por acaso. Você só gosta de que eles sejam vermelhos porque lhe contaram sobre o sangue dos mártires; só gosta de que lhe brilhem porque o brilho é uma glória. Aquela chama floresceu de virtudes, e fenecerá com virtudes. Seduza uma mulher, e aquela fagulha brilhará menos. Derrame sangue, e aquela fagulha será menos rubra. Seja muito mau, e elas lhe parecerão manchas em um papel de parede.¨

Ele possuía uma horrível clareza intelectual que me fez desesperar de sua alma. Um ateu comum e inofensivo negaria que a religião produzisse humildade ou que a humildade produzisse qualquer alegria: mas ele admitia ambas. Apenas disse:

¨Mas não é possível que eu encontre no mal uma vida própria? Suponha que para cada mulher que eu arruíne se apague uma destas faíscas: não acontecerá que o prazer crescente da ruína…¨

¨Vê aquele fogo?¨ perguntei. ¨Se tivéssemos uma verdadeira democracia militante, alguém queimaria você nele, como o adorador do diabo que é.¨

¨Talvez¨, disse-me, em seu tom cansado e ponderado.

¨Só que o que você chama mal eu chamo bem¨

Ele desceu os grandes degraus sozinho, e senti-me como se quisesse que fossem varridos e limpos. Segui-o depois, e enquanto procurava meu chapéu na passagem baixa e escura em que estava pendurado subitamente ouvi sua voz de novo, mas as palavras eram inaudíveis.

Parei, espantado: então ouvi a voz de um dos seus companheiros mais vis dizendo: ¨Ninguém pode saber¨. E então ouvi aquelas duas ou três palavras que recordo sílaba por sílaba e não consigo esquecer. Ouvi o diabolista dizer:

¨Estou lhe dizendo que já fiz tudo o mais. Se fizer isto já não saberei a diferença entre o certo e o errado¨

Corri para fora sem atrever-me a parar, e ao passar pela fogueira não sabia se era o inferno ou o furioso amor de Deus.

Desde então, ouvi dizer que ele morreu: pode-se dizer, imagino, que cometeu suicídio; embora o tenha feito com ferramentas de prazer e não de dor. Deus o ajude, conheço o caminho que trilhou; mas nunca soube, ou mesmo ousei pensar, qual foi o ponto em que ele parou e hesitou.

(Tremendas Trivialidades — G.K. Chesterton)

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Daniel Alves de Araújo
Sociedade Chesterton Brasil

Professor de literatura, jornalista não-praticante & carioca refugiado em São Paulo. Marido e pai.