O fim da história humana

A história do homem é a história de Cristo, e sua morte foi também a morte do mundo

Sociedade Chesterton Brasil
Sociedade Chesterton Brasil
10 min readApr 12, 2017

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O texto a seguir é um trecho do livro O Homem Eterno

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“A história de Cristo é a história de uma jornada, quase na forma de uma marcha militar, certamente à maneira da busca de um herói que se desloca para sua conquista ou sua destruição. É uma história que começa no paraíso da Galileia, uma terra pastoril e pacífica que realmente sugere de algum modo o Éden e vai aos poucos galgando o interior que se eleva até as montanhas mais próximas das nuvens tormentosas e das estrelas, como se fosse uma montanha do purgatório.

Podemos vê-lo vagando por lugares estranhos, ou parado à beira do caminho para uma discussão ou uma disputa, mas seu rosto se fixa na cidade da montanha. Esse é o significado daquele grande clímax quando ele atingiu o topo e postou-se numa curva da estrada para de repente lançar um grito lamentando a sorte de Jerusalém.

Algum ligeiro toque daquela lamentação está presente em cada poema patriótico; ou então, se estiver ausente, o patriotismo exala o mau cheiro da vulgaridade. Esse é o significado do surpreendente e assustador episódio às portas do templo, quando mesas foram atiradas escada abaixo como trastes, e os ricos comerciantes foram expulsos debaixo de pancadas físicas. Esse incidente no mínimo deve constituir um enigma para os pacifistas na mesma medida em que qualquer paradoxo sobre a não-resistência pode constituir um enigma para os militaristas.

Comparei sua busca à jornada de Jasão, mas nunca devemos esquecer que num sentido mais profundo melhor cabe a comparação com a jornada de Ulisses. Não foi apenas um romance de viagem, mas também um romance de regresso — e do final de uma usurpação. Nenhum rapaz sadio que leia a história considera a expulsão dos pretendentes de Ítaca como outra coisa que não seja um final feliz. Mas há sem dúvida alguns que consideram a expulsão dos comerciantes e cambistas judeus com aquela delicada repugnância que nunca deixa de se comover diante da violência, especialmente da violência contra os ricos.

Mas aqui o ponto principal é que todos esses incidentes trazem em si a marca de uma crise crescente. Em outras palavras, esses incidentes não são incidentais. Quando Apolônio, o filósofo ideal, é trazido perante o tribunal de Domiciano e magicamente desaparece, o milagre é inteiramente incidental. Poderia ter acontecido a qualquer hora da vida errante do tianeu; de fato, acredito que esse milagre é tão duvidoso na data quanto na substância. O filósofo ideal simplesmente desapareceu e retomou sua existência ideal nalgum outro lugar por um período indefinido. Talvez o que caracterize o contraste foi o fato de Apolônio ter supostamente vivido até uma idade milagrosamente avançada.

Jesus de Nazaré foi menos prudente em seus milagres. Quando levado perante o tribunal de Pôncio Pilatos, Jesus não desapareceu. Tratava-se da crise e do objetivo: era a hora e o poder das trevas. Em toda sua vida milagrosa, esse foi o ato eminentemente sobrenatural: o de ele não desaparecer.

Todas as tentativas de engrandecer essa história apenas a diminuíram. O empreendimento tem sido tentado por muitos homens de verdadeiro gênio e eloquência, bem como por um número excessivo de sentimentalistas vulgares e de retóricos cheios de si. A história tem sido contada com sentimentalismo condescendente por elegantes céticos e com fluente entusiasmo por rudes campeões de venda. Não será recontada aqui. A força esmagadora das simples palavras da narrativa do Evangelho tem o poder das mós de moinho: os que conseguem lê-las com suficiente simplicidade terão a impressão de terem sobre si o peso de rochas. A crítica não passa de palavras sobre palavras. E para que servem palavras sobre palavras como essas que temos no Evangelho?

Qual é a utilidade de uma descrição verbal do jardim escuro subitamente repleto de tochas acesas e rostos furiosos? ‘Saístes com espadas e porretes para prender-me, como a um salteador? Todos os dias eu estava convosco no templo, ensinando, e não me prendestes.’ Alguma coisa pode ser acrescentada ao sólido e moderado comedimento dessa ironia, que parece uma enorme onda que se ergueu até o céu e se recusa a cair?

‘Filhas de Jerusalém, não choreis por mim; chorai, antes, por vós mesmas e por vossos filhos!’ Assim como o Sumo Sacerdote perguntou que necessidade mais tinham de testemunho, poderíamos perguntar que necessidade mais temos de palavras.

Pedro em pânico o repudiou: ‘E imediatamente o galo cantou; e Jesus olhou para Pedro; E Pedro saiu e chorou amargamente’. Alguém tem outras observações a fazer?

Pouco antes de seu assassinato Jesus orou por todos os homens assassinos dizendo: ‘Eles não sabem o que fazem’. Pode-se acrescentar a isso algum comentário, a não ser dizer que tampouco sabemos o que fazemos?

Há alguma necessidade de repetir e desenrolar a história de como a tragédia se arrastou pela via Dolorosa e de como o juntaram ao acaso com dois ladrões num dos lotes comuns de execução; e de como em todo aquele horror e ermo ululante da deserção uma voz de louvor se fez ouvir, uma voz surpreendente provindo exatamente da última fonte de onde se poderia esperá-la — a cruz do criminoso — e ele disse àquele malfeitor anônimo: ‘Hoje estarás comigo no paraíso’? Existe alguma coisa a acrescentar-se a isso a não ser um ponto final? Ou será que alguém está preparado para responder adequadamente àquele gesto de despedida endereçado a toda carne, gesto que criou para sua mãe um novo filho?

Condiz mais com minhas forças, e aqui também com meu propósito imediato, mostrar que naquela cena estavam reunidas todas as forças humanas vagamente esboçadas nesta história. Assim como reis, filósofos e gente comum haviam estado simbolicamente presentes em seu nascimento, também estavam de modo mais prático envolvidos em sua morte.

E com isso nos postamos face a face diante do fato essencial a ser entendido.

Todos os grandes grupos presentes junto à cruz representam de um modo ou de outro a grande verdade da época: que o mundo não podia salvar-se a si mesmo.

Nada mais poderia fazer o homem. Roma, Jerusalém, Atenas e tudo mais estava numa rota descendente como um mar transformado numa lenta catarata. De fato nas aparências o mundo antigo ainda estava no auge de sua força: é sempre nesse momento que a fraqueza mais profunda se instala. Mas para entender essa fraqueza precisamos repetir o que já foi dito mais de uma vez: que não era a fraqueza de algo originariamente fraco. Era decididamente a força do mundo que se tornara fraqueza e a sabedoria do mundo que se transformara em loucura.

Nessa história da Sexta-Feira Santa, são as melhores coisas do mundo que estão no seu pior momento. É isso que realmente nos mostra o mundo no seu pior aspecto. Tratava-se, por exemplo, dos sacerdotes de um verdadeiro monoteísmo e dos soldados de uma civilização internacional.

Roma, a lendária, fundada sobre a destruída Troia e triunfante sobre a destruída Cartago, representara o heroísmo que foi o aspecto pagão que mais se aproximou do cavalheirismo. Roma defendera os deuses do lar e as decências humanas contra os ogros da África e as monstruosidades hermafroditas da Grécia. Mas à luz fulminante desse incidente vemos a grande Roma, a república imperial, se afundando sob a sina lucreciana.

O ceticismo corroeu até a confiante sanidade dos conquistadores do mundo. Aquele que ocupa o trono para dizer o que é justiça só consegue perguntar: ‘O que é a verdade?’. Assim, nesse drama que decidiu todo o destino da antiguidade, uma das figuras centrais se fixa justamente no inverso de seu verdadeiro papel. Roma era quase outro nome para responsabilidade. No entanto, ele representa para sempre uma espécie de estátua cambaleante da irresponsabilidade. Nada mais poderia fazer o homem. Até o prático se tornara o impraticável. Postado entre os pilares de seu próprio tribunal, um romano lavara as mãos em relação ao mundo.

Lá também se encontravam os sacerdotes daquela verdade pura e original que estava por trás de todas as mitologias como o sol por trás das nuvens. Era a verdade mais importante que existia; mas nem mesmo ela poderia salvar o mundo. Talvez haja algo irresistível no puro teísmo pessoal: como ver o sol, a lua e o céu juntando-se para formar um rosto de olhos esbugalhados. Talvez a verdade seja demasiado assustadora quando não é domesticada por alguns intermediários divinos ou humanos; talvez seja demasiado pura e distante. Seja como for, ela não poderia salvar o mundo; nem sequer poderia convertê-lo.

Houve filósofos que a acalentaram em sua forma mais elevada e nobre; mas eles não só não puderam converter o mundo como também nunca tentaram. Seria tão impossível combater a floresta da mitologia popular com uma opinião privada quanto derrubar uma floresta com um canivete.

Os sacerdotes judeus haviam guardado ciosamente a verdade no bom e no mau sentido. Guardado como um segredo gigantesco. Como heróis selvagens poderiam ter guardado o sol numa caixa, eles guardaram o eterno no tabernáculo. Orgulhavam-se do fato de só eles poderem contemplar o sol ofuscante de uma deidade singular; e não sabiam que eles mesmos haviam ficado cegos. Desde o dia em que isso aconteceu seus representantes têm sido como cegos na plena luz do dia, com suas bengalas desferindo golpes à esquerda e à direita e amaldiçoando a escuridão. Mas isso se constatou em seu monumental monoteísmo: que ele pelo menos permanecia como um monumento, a última coisa de seu gênero, e em certo sentido imóvel em meio ao mundo inquieto que ele não podia satisfazer. Pois não há dúvida de que por alguma razão ele não podia satisfazê-lo.

Desde aquele dia nunca tem sido plenamente suficiente dizer que Deus está no céu e tudo vai bem com o mundo, desde o boato de que Deus abandonou seu céu para consertá-lo.

E assim como aconteceu com essas forças que eram boas, ou pelo menos haviam sido boas outrora, o mesmo aconteceu com o elemento que talvez fosse o melhor, ou que Cristo certamente parece ter sentido como o melhor.

Os pobres a quem ele pregou a boa-nova, a gente comum que o ouvia de bom grado, a plebe que havia criado tantos heróis e semideuses no antigo mundo pagão também exibiu as fraquezas que estavam dissolvendo o mundo. Os pobres padeciam dos males que muitas vezes são constatados na multidão urbana, especialmente na multidão da capital, durante o declínio de uma sociedade. A mesma coisa que faz a população rural viver de tradição faz a população urbana viver de boatos. Exatamente como seus mitos na melhor das hipóteses haviam sido irracionais, suas preferências e aversões são facilmente trocadas pela afirmação infundada arbitrária e destituída de autoridade.

Algum bandido ou algo foi artificialmente transformado numa figura pitoresca e popular e apresentado como uma espécie de candidato contra Cristo. Nisso tudo reconhecemos a população urbana que conhecemos, com seus sensacionalismos e furos de jornal. Mas constatava-se nessa antiga população um mal muito característico do mundo antigo.

Já o observamos como o esquecimento do indivíduo, até mesmo do indivíduo que vota a condenação e ainda mais do indivíduo condenado: uma característica pagã. O grito desse espírito também foi ouvido naquela hora: ‘Convém que morra um só homem pelo povo’. No entanto, esse espírito de devoção à cidade e ao estado próprio da antiguidade também fora em si mesmo e na sua época um espírito nobre. Teve seus poetas e mártires, homens a serem homenageados para sempre. Ele estava extinguindo-se por sua fraqueza de não enxergar a alma individual do ser humano, o santuário de todo misticismo; mas só se estava extinguindo como tudo mais se extinguia.

A multidão seguia os saduceus e os fariseus, os filósofos e os moralistas. Acompanhava os magistrados imperiais e os sacerdotes sagrados, os escribas e os soldados, para que um único espírito universal pudesse sofrer uma condenação universal; para que pudesse haver um único profundo, unânime coro de aprovação e harmonia quando o Homem foi rejeitado pelo homem.

Havia solidões além das quais ninguém deve avançar. Havia segredos na parte mais íntima e invisível desse drama que não encontram símbolos em palavras, ou em nenhuma ruptura que separa um homem dos homens. E não é fácil para quaisquer palavras menos duras e simples que as da despojada narrativa sequer sugerir o horror da elevação que se exibiu sobre a colina. Intermináveis exposições não a exauriram, nem sequer começaram a expressá-la. E se existir algum som capaz de produzir um silêncio, com certeza poderemos guardar silêncio sobre o fim e a hora extrema; quando um grito foi ouvido saindo daquela escuridão com palavras terrivelmente distintas e terrivelmente ininteligíveis, que o homem nunca haverá de entender durante toda a eternidade que elas para ele adquiriram; e por um instante aniquilador um abismo que não cabe em nossa cabeça se abrira exatamente na unidade do absoluto.

E Deus fora abandonado por Deus

O corpo foi descido da cruz, e um dos poucos ricos entre os primeiros cristãos obteve permissão para sepultá-lo numa tumba aberta na rocha em seu jardim; e os romanos montaram uma guarda militar para impedir um possível tumulto e a tentativa de recuperar o corpo. Houve mais uma vez um simbolismo natural nesses procedimentos naturais: convinha que a tumba fosse lacrada com todo o sigilo das antigas sepulturas orientais e guardada pela autoridade dos césares.

Pois naquela segunda caverna toda a grande e gloriosa humanidade a que chamamos de antiguidade estava reunida e encoberta, e ali foi sepultada.

Foi o fim de algo muito grande chamado de história humana, a história que foi simplesmente humana. As mitologias e as filosofias foram ali sepultadas, os deuses e os heróis e os sábios. Na grande fase romana, eles haviam vivido. Mas como só podiam viver, eles só podiam morrer; e estavam mortos.

No terceiro dia os amigos de Cristo vieram para o local ao romper da manhã e encontraram o túmulo vazio e a pedra removida. De várias formas eles perceberam a nova maravilha, mas até mesmo eles mal se deram conta de que o mundo havia morrido naquela noite. O que estavam contemplando era a primeiro dia de uma nova criação, com um novo céu e uma nova terra; e sob as aparências do jardineiro Deus novamente caminhava pelo jardim, no frio não da noite e sim da madrugada”.

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