Solidarismo, um distributismo à brasileira

Uma proposta de terceira via nascida no Brasil bebeu das mesmas fontes do distributismo

Pedro Ribeiro
Sociedade Chesterton Brasil
11 min readApr 4, 2017

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Caro leitor, devo dizer a você, em primeiro lugar, que foi para mim uma grande honra ter sido chamado pelo Daniel Alves de Araújo para fazer parte do grupo de colaboradores da Sociedade Chesterton Brasil.

Há, no entanto, uma confissão a ser feita: eu estou longe de ser um grande conhecedor de G. K. Chesterton. Conheço, creio eu, algumas linhas-mestras do pensamento chestertoniano e tenho, em particular, enorme interesse por sua teoria político-econômica, o distributismo, mas não poderia, de modo algum, fazer uma longa palestra sobre as ideias do velho gordo inglês e tenho a aprender nesta publicação digital tanto quanto você.

O que faço eu aqui, então, a escrever este artigo?

Bem, já há uns bons oito anos, tenho me dedicado, de modo mais ou menos sistemático, a estudar a Doutrina Social da Igreja. Doutrina essa que gerou o distributismo de Chesterton, sendo esse uma aplicação daquela. Mas não a única.

Assim, em função desse histórico pessoal, minha contribuição para essa editoria será voltada menos para expor as possíveis interseções, diferenças e conexões entre a teoria político-econômica chestertoniana e outras que também bebem dos Evangelhos, da tradição cristã e da Doutrina Social da Igreja.

É isso, inclusive, o que pretendo fazer hoje aqui.

Apresento a vocês o solidarismo.

O ano era 1963. O mundo vivia em clima de intensa radicalização política, estando no auge da Guerra Fria.

No Brasil, a coisa não era muito diferente.

Tendo Jânio Quadros renunciado à presidência com pouquíssimos meses de mandato, o país passou às mãos do vice-presidente eleito, João Goulart, que, com a desconfiança de boa parte dos meios militares e sem amplo apoio do Congresso, viu seus poderes serem rapidamente limitados pela aprovação às pressas do parlamentarismo.

Por sua vez, em janeiro de 1963, tal aprovação foi submetida a plebiscito e o povo brasileiro achou por bem pôr fim ao arremedo parlamentarista e reconduzir Goulart ao pleno domínio de sua autoridade constitucional. A partir daí, o fim da história já sabemos: defensor de reformas sociais intensas e acusado de cumplicidade com o comunismo internacional, Jango foi deposto do cargo em 31 de março de 1964, em um processo que deu início à ditadura militar.

Pois bem, foi justamente neste contexto político bastante conturbado, tomado de paixões e de radicalismos tanto à direita quanto à esquerda, que o Padre Ávila, doutor em sociologia pela Universidade de Louvain, fundador do departamento de ciências sociais da PUC-RJ, publicou um pequeno livreto, ainda bastante atual hoje, chamado Neo-capitalismo, Socialismo, Solidarismo, o qual, em sua terceira edição, um tanto ampliada e que veio à luz em 1965, se chamaria apenas Solidarismo. Conforme diz o próprio Padre Ávila em sua bela autobiografia A alma de um Padre:

“naquela década dos anos 60, o ambiente universitário era agitado por fortes correntes ideológicas polarizadas entre os temas do capitalismo e do socialismo. Na preocupação de apresentar uma alternativa para esse dualismo reducionista, lancei um pequeno opúsculo”.

Padre Fernando Bastos de Ávila, S.J

Igualmente, diz Eurico de Andrade Neves Borba, aluno de Ávila àquele tempo:

“Sua publicação causou o maior impacto no meio sindical, estudantil e político. Foi como uma luz, uma opção para nós que, engajados como estávamos na política estudantil e partidária, não sabíamos para que lado nos voltarmos: rejeitávamos os socialismos em seus mais diversos matizes, opunhamo-nos ao capitalismo e sua versão light, o neo-liberalismo, mas não tínhamos o que propor, uma doutrina consistente que organizasse nossa reflexão e o nosso agir. O livro Solidarismo, cumpriu esse papel.”

Em suma, conforme o nome da primeira edição do livro claramente indica, Padre Ávila acreditava que o Brasil encontrava-se naquele momento diante de uma enorme, mas falsa polarização.

De um lado, haviam os intransigentes defensores do liberalismo econômico, ainda que mitigado (o que Ávila chamava de neo-capitalismo). Estes — o jesuíta pensava provavelmente em Carlos Lacerda e nos udenistas de modo geral -, vendo no capitalismo uma expressão normal e saudável da natureza humana, consideravam o modelo de livre mercado e livre concorrência como o mais justo e eficiente, cabendo ao capital, isto é, à iniciativa privada, o completo protagonismo nas operações econômicas.

Nesta perspectiva, que ainda hoje seduz a tantos, o papel do Estado deve ser severamente limitado, cabendo-lhe apenas garantir as condições necessárias para o bom funcionamento do mercado (justiça, segurança e defesa) ou, no máximo, oferecer serviços básicos essenciais, como saúde e educação.

De outro lado, por socialismo, Ávila entendia todas aquelas correntes que viam no Estado e na ação do poder público controlado pelos trabalhadores o elemento central de organização de uma justa esfera econômica. Da versão mais radical à menos radical, do comunismo propriamente dito, praticado na União Soviética, à social-democracia europeia o denominador comum seria sempre o estatismo, isto é, a confiança excessiva no poder do Estado como solucionador dos problemas sociais.

Mercado vs Estado. Iniciativa privada vs poder público. Liberalismo vs socialismo: como se vê, apesar dos mais de 50 anos que nos afastam do livro de Padre Ávila, os termos do debate público não mudaram tanto.

Ainda vivemos hoje marcados por uma falsa polarização, denunciada àquele tempo pelo jesuíta, na qual se entende que as únicas saídas para a problemática social são, ou bem o enfraquecimento do Estado e a assunção do individualismo como paradigma das relações sociais, ou bem o agigantamento do poder público e a restrição do poder de ação dos indivíduos por meio de um modelo coletivista. Como na década de 60, as únicas outras alternativas que parecem vir à tona no debate público, além dos radicalismos de parte a parte, são versões mais moderadas destes dois pólos em luta,.

Ora, segundo padre Ávila, como vimos, tal polarização é sempre falsa. E o motivo é bem simples: é que há uma outra alternativa sócio-política-econômica para além do capitalismo e do estatismo.

Segunda edição de “Solidarismo”

Tal como Chesterton, nas primeiras décadas do século XX, o projeto do sociólogo brasileiro foi oferecer uma terceira via para além do liberalismo e do socialismo. Um distributismo à brasileira.

No que, pois, consiste o solidarismo?

Em primeiro lugar, aponta Ávila, é necessário compreender que tanto o liberalismo quanto o socialismo partem de pressupostos falsos.

De fato, antes de econômicos ou sociológicos, os erros de liberais e socialistas são antropológicos: são incapazes de conceber a pessoa humana na sua integralidade.

Aí está o ponto: tanto o coletivismo quanto o individualismo são incapazes de enxergar o homem. Este, na medida que é um ser racional, é sempre uma pessoa, isto é, um ente insubstituível e irrepetível, dotado de um eu, de uma identidade única e peculiar.

Por outro lado, na medida em que a racionalidade é uma capacidade que só se desenvolve em comunidade, no contato com o outro, por meio do aprendizado com ele, a pessoa humana é também ela mesma sempre essencialmente comunitária, de modo que os vínculos sociais não são algo de exterior e acidental no homem, mas antes algo que brota de sua própria essência e que lhe é constitutivo. Em síntese, como ensinou o grande Aristóteles na Política, “O homem é por natureza um animal social e político: aquele que não precisa da comunidade para viver não é um homem — ou é uma besta ou é um deus”.

Nem individualista nem coletivista, o solidarismo é personalista e comunitário.

Categorias teóricas essenciais do solidarismo, as noções de pessoa e comunidade revelam que os pressupostos antropológicos do liberalismo e socialismo, longe de se manterem na alta esfera de meros erros teóricos, revelam-se também princípios péssimos para a compreensão concreta da sociedade.

Com efeito, no fim das contas, tanto liberais quanto socialistas vêem a sociedade de modo amorfo: uns a compreendê-la como uma mera coleção de átomos autônomos e independentes, que só têm vínculos contratuais entre si; outros a vêem como uma totalidade que absorve e transcende os indivíduos, sendo estes meras partes existentes em função do todo. A verdade, porém, é que o mundo social não é assim.

Muito diferente do que as ideologias modernas nos fazem crer, a vida social não é composto apenas de dois agentes — o Estado e o indivíduo. Ao contrário, há entre eu individualmente e a autoridade pública uma série de instâncias sociais intermediárias, que filósofos como Montesquieu e Tocqueville chamavam de corpos intermédios e que o padre Ávila chamou de comunidades reais. Trata-se da família, das associações de bairro, das organizações não-governamentais, dos clubes, etc. Tais comunidades, por sua própria natureza, não se reduzem à esfera meramente individual, é claro, uma vez que, como define o jesuíta:

“A Comunidade é o lugar natural onde os homens pensam e querem juntos”.

Por outro lado, sendo parte da sociedade civil, tais comunidades também não pertencem à esfera de atuação do poder público. Há, pois, nas comunidades uma realidade particular, que exige um olhar diferenciado e que possui direitos e deveres próprios.

Vejamos isso concretamente. Numa família, para citar aqui a comunidade mais paradigmática, o homem, na sua condição de pai, possui uma série de direitos e deveres concretos. Ele tem a prerrogativa, por exemplo, de castigar os seus filhos casos estes se comportem de modo inadequado. Do mesmo modo, tem a obrigação de prover a subsistência do seu lar.

Veja, porém, o amigo leitor que esses direitos e deveres não são nem individuais nem concessões ou imposições do Estado. Não são individuais, pois não pertencem ao sujeito na qualidade de ser humano. Se fosse assim, todo ser humano teria o direito inalienável a castigar crianças, tal como tem o direito à vida, o que não é verdade. Por outro lado, não se trata de concessões ou imposições do Estado porque tais direitos e deveres derivam da própria estrutura familiar e não de uma lei escrita. Estamos, pois, aqui diante de prerrogativas e obrigações comunitárias, que nascem da vida em comunidade, das relações orgânicas de um membro da família com outro e que só ali possuem sentido. Ora, apesar dessa realidade comunitária manifestar-se paradigmaticamente na família, como já dito, é possível perceber fenômenos análogos em todas aquelas pequenas sociedades locais, as quais não se reduzem nem à iniciativa individual nem à iniciativa pública.

O que é solidarismo enquanto doutrina social e econômica? Conforme diz o Padre Ávila:

“O Solidarismo compreende todos os sistemas sócio-econômicos nos quais as decisões e a propriedade são atribuídas, não ao capital exclusivamente, mas às comunidades-reais. A comunidade é a proprietária; não o capital, nem o Estado. As decisões são tomadas, em todos os níveis, por órgãos democraticamente representativos das comunidades”.

Em suma, trata-se de um modelo econômico no qual o centro do processo produtivo não se encontra nem no mercado, com seus agentes atomizados, como é o caso do capitalismo liberal, nem no Estado, como nos variados matizes socialistas.

Ao concentrar a iniciativa econômica no empresariado, o liberalismo viola o bem comum e dissolve a organicidade dos laços sociais. Ao centrar o poder econômico nos agentes públicos, os modelos estatistas enfraquecem a sociedade civil e diminuem a liberdade das pessoas. Ao tomar como eixo da vida econômica a ação comunitária, o solidarismo responde às autênticas necessidades materiais e morais do homem.

Naturalmente, o tipo por excelência de uma economia solidarista é a cooperativa.

Atividade econômica fundada precisamente na solidariedade de seus membros, a empresa cooperada não é privada, porque não há patrão, mas também não é pública, uma vez que não pertence ao Estado. Nela, todos são simultaneamente donos e trabalhadores: decidem juntos os rumos do negócio, sacrificam-se conjuntamente por eles e partilham seus lucros em comum.

Há, no entanto, outros modelos de negócio que, ainda que não tão perfeitamente como a cooperativa, exprimem bem o solidarismo: a cogestão, por exemplo. Neste caso, trata-se de uma empresa que é privada, que possui um dono individual, mas que permite aos trabalhadores uma participação efetiva no controle da empresa, através de uma eleição periódica de representantes dos funcionários. Estes representantes, nas empresas que vivem a cogestão, têm direito à presença garantida nas reuniões de cúpula, seja de modo meramente consultivo, seja com direito à voto.

Símbolo da Corporação Mondragón, cujo slogan é: “corporacion cooperativa”

Na Alemanha, por exemplo, onde esse modelo é muitíssimo comum desde o pós-guerra, há empresas cuja diretoria é composta por vinte e um membros com direito a voto: dez representantes dos acionistas, dez dos trabalhadores e um mediador neutro.

Aliás, já dizia a este respeito o Papa João XXIII na Mater et Magistra:

“Não é possível determinar antecipadamente o modo e o grau dessa participação [ativa dos trabalhadores na empresa], dependendo ela do estado concreto que apresenta cada empresa. Esta situação pode variar de empresa para empresa, e, dentro de cada empresa, está sujeita a alterações muitas vezes rápidas e fundamentais. Julgamos contudo útil chamar a atenção para a continuidade da presença ativa dos trabalhadores, tanto na empresa particular como na pública; deve-se tender sempre para que a empresa se torne uma comunidade de pessoas, nas relações, nas funções e na situação de todo o seu pessoal.”

Enfim, exemplos de aplicação da ideia solidarista não faltam: a implementação da participação de lucros; a disseminação da empresas familiares, já tão comuns e importantes economicamente no Brasil, sobretudo na área agrícola; o fortalecimento dos pequenos negócios de modo geral, como as feiras de rua e o comércio local.

Fundamental aqui é compreender que o solidarismo não é um modelo exclusivista: ele não propõe o fim da propriedade privada e das empresas capitalistas comuns, tampouco exclui a existência de serviços estatais e mesmo de empresas públicas. Seu ponto, porém, é que estes dois modelos não devem nem podem ser o eixo do processo produtivo, de modo que é necessário uma comunitarização progressiva e intensiva da vida econômico-social.

“O Solidarismo”, dizia o Padre Ávila no Manifesto Solidarista, “sabe que as estruturas sociais vigentes não oferecem possibilidades concretas para a realização destes direitos [naturais do homem]. Por isto, ele é essencialmente um protesto que se traduz num programa de reformas. O Solidarismo não é mero moralismo. É reformismo radical”.

Poderá perguntar o leitor: não será o solidarismo, bem como o distributismo, por mais belo que seja, não mais do que uma nobre utopia, singela, mas irrealizável?

Bem, se já não bastassem as experiências solidaristas concretas, como a já mencionada cogestão alemã e a Mondragón, empresa espanhola de enorme sucesso econômico, fundada não à toa por um padre e que é a maior associação de cooperativas do mundo, deve-se dizer que não foi por um utopismo que se bateu o Padre Ávila.

Meu próximo texto para a Sociedade será justamente um esforço por pensar em algumas medidas concretas para a implementação progressiva do distributismo/solidarismo em uma sociedade atual. Buscarei fazer isso a partir da obra de Jacques Maritain.

Até lá.

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