Yochai Benkler in Davos, 2015

A “uberificação” da economia

Não é só a Uber! Muitas outras empresas de vários setores estão a substituir os serviços tradicionais por novas plataformas de partilha e colaboração através da internet. Que implicações é que isso tem para o futuro do trabalho, do emprego e da economia?

José Moreno
Published in
6 min readDec 28, 2016

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[crónica publicada na Super Interessante nº209, de Setembro de 2015]

No início deste ano, Yochai Benkler esteve em Davos, na Suíça, durante o Fórum Económico Mundial, e surpreendeu muita gente com uma curta mas incisiva palestra em que alertava para os perigos da “uberificação” dos serviços e da economia da partilha (o vídeo pode ser visto aqui: http://youtu.be/mBF-GFDaCpE). A palestra surpreendeu muita gente porque Yochai Benkler, justamente ele, era (e é) um dos grandes teóricos da economia da partilha como um modo de organização económica alternativo ao mercado e à propriedade privada.
Pouco tempo depois, escrevendo no site de tecnologia Techcrunch, Tom Goodwin, responsável de estratégia e inovação na Havas Media, notava que a Uber, principal empresa de táxis do mundo, não possui veículos; que o Facebook, o mais importante canal de informação do planeta, não cria qualquer conteúdo; que o Alibaba, o maior distribuidor de produtos não mantem nenhum stock; e que o Airbnb, o mais popular fornecedor de alojamento não é dono de qualquer edifício. “Algo de interessante está a acontecer”, concluía Goodwin.
Mas afinal o que há de comum entre o Facebook, a Uber, a Alibaba e a Airbnb? Comecemos pelo Facebook. Ao contrário dos meios de comunicação tradicionais, como os jornais ou as revistas, o Facebook, como todos os outros “novos media” da sociedade em rede, não existe para produzir informação, mas antes para proporcionar aos indivíduos as ferramentas para produzirem e partilharem sua própria informação. Ou seja, desempenha uma função social diferente da dos meios de comunicação social tradicionais e está mais adaptado do que estes às características da sociedade em rede na era digital.

A Uber é uma empresa de informação
Olhemos então para a Uber. Tal como o Facebook não produz os conteúdos que distribui e sobre os quais monta o seu modelo de negócio, a Uber também não é dona dos veículos que andam na estrada. Então qual é a função da Uber? Tal como o Facebook, o que a Uber faz é explorar uma plataforma — uma ferramenta — que permite, através de fluxos de informação materializados numa app, colocar em comunicação indivíduos que procuram transporte com outros indivíduos ou entidade que têm transporte para oferecer. Ou seja, o que isso significa, no fundo, é que, na realidade, a Uber não é a empresa de transportes; a Uber é uma empresa de informação. O mesmo se aplica, obviamente, à Alibaba, à Airbnb e a tantas outras novas empresas da era digital que fazem precisamente o mesmo. Há portanto aqui uma regularidade que a sociologia da sociedade em rede ajuda a explicar.
No seu importante “The Wealth of Networks”, Yochai Benkler explicou como um dos mais notórios efeitos das modernas tecnologias de informação e comunicação é o facto de estas reduzirem os custos de transação nos relacionamentos sociais. Uma pessoa que precisa de transporte e outra que, estando nas proximidades, tem transporte para oferecer, talvez nunca se encontrem por puro acaso. Em vez disso, a primeira pessoa talvez telefone a um amigo que mora perto para lhe dar boleia. E este amigo talvez deixe o emprego, por 15 minutos, para lhe dar boleia. Ou seja, existe aqui um “custo de transação” que até agora é apenas social e nada tem de económico. Mas isso já seria diferente se, em vez de chamar o amigo, a primeira pessoa optasse por chamar um táxi. Nesse momento, o que aconteceria era que o táxi lhe ia cobrar uma tarifa pelos custos envolvidos no transporte, incluindo os custos de transação. Ora, não tendo táxis em seu nome, o que a Uber faz é proporcionar uma plataforma que permite a dois estranhos, profissionais ou não, coordenarem o seu relacionamento social reduzindo os respetivos custos de transação. O mesmo acontece na Alibaba, na Airbnb e em tantos outros serviços atualmente.

A informação está por todo o lado
A segunda coisa importante que a sociologia nos ensina sobre esta matéria é que, por um lado, como identificou Manuel Castells, a gestão da informação é o fator económico decisivo nas sociedades modernas, com implicações em todas as atividades económicas. E, por outro, a emergência tecnologias de informação e comunicação digitais tendem a colocar as ferramentas de controlo do processo informativo nas mãos dos utilizadores. São tecnologias “distribuídas”, como lhes Castells. Ora, isto deve tornar o silogismo claro: se a gestão da informação é uma parte importante da estrutura de custos de qualquer atividade económica e se a informação tende a estar “distribuída” na era digital, isso significa que uma parte dessas atividades económicas também tende a estar “distribuída”. Ou seja, diretamente operada pelos utilizadores usando plataformas que lhes são propostas para o efeito, como a Uber, o Facebook, o Alibaba ou a Airbnb.
É por isso qualquer destes quatro serviços (como outros) está a desregular os operadores tradicionais dos respetivos setores (os táxis, os media, os comerciantes e os fornecedores de alojamento, respetivamente). Isso não acontece porque a Uber, o Facebook, o Alibaba ou a Airbnb sejam concorrentes diretos dos operadores tradicionais. Isso acontece porque eles têm uma função social diferente, mais adaptada ao funcionamento da sociedade em rede ligada por tecnologias digitais.
O problema — identificado por Benkler na pequena palestra referida no início deste texto — é saber se essa desregulação está verdadeiramente a aproveitar o potencial da economia de partilha ou se, pelo contrario, está a permitir que esse “valor” social e económico seja “capturado” por empresas privadas que se comportam como silos fechados e que dessa forma limitam a inovação. Esse é verdadeiramente o problema que está sobre a mesa.

O futuro será o “pós-capitalismo”?
Mas afinal para onde nos leva a desregulação dos modelos de negócios de tantos e tão diferentes setores da economia? Bem, Paul Mason acha que a resposta é: ao “pós-capitalismo”. Num artigo publicado recentemente no jornal The Guardian e que antecipa um livro a publicar em Setembro, o jornalista e editor de economia do Channel 4 britânico argumenta que essas várias manifestações da “economia de partilha” prefiguram uma organização económica profundamente diferente da atual.
Paul Mason atribui esse desenvolvimento a duas causas fundamentais: por um lado, o facto de a tecnologia tornar o trabalho dispensável em cada vez mais setores de atividade e funções profissionais; e, por outro lado, o facto de a abundância de informação e as tecnologias de comunicação digitais desregularem o mercado como mecanismo central de formação de preços. O resultado é que em muitos casos o valor social de uma atividade se sobrepõe ao seu valor económico, tornando-se possível coordenar a respetiva realização usando as ferramentas digitais disponíveis em vez de recorrer ao mercado.
Claro que a Uber é uma empresa privada de índole capitalista cujo objetivo é colocar essas ferramentas digitais ao alcance das pessoas com forma de gerar lucro. É portanto uma atividade económica como qualquer outra. Mas, para Paul Mason, esse aproveitamento prefigura e antecipa outras utilizações que nada têm de “económico”, no sentido capitalista do termo. Em Israel, a Google, através da sua plataforma Waze, está testar um sistema de partilha de boleias chamado “RideWith” que não só não envolve troca económica entre os participantes como explicitamente a proíbe!
Mas será isto realmente o fim do capitalismo? O problema com este tipo de conceitos — “capitalismo”, “pós-capitalismo”, “socialismo” — é que eles são demasiado conotados politicamente. Mas se nós pensarmos no capitalismo apenas como uma forma específica de organização económica e social (com as suas instituições, as suas regras, os seus costumes e valores) cujo objetivo é coordenar um conjunto abrangente de atividades sociais, então não podemos deixar de concluir que as tecnologias de informação e comunicação digitais, assim como a “economia de partilha” que elas possibilitam, não pode deixar de o afetar profundamente.
Ou seja, pode não ser (ainda) o fim do capitalismo, mas é provavelmente o começo de algo novo!

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José Moreno

I study the digital to understand how it affects the way we live. I train and teach and learn to share knowledge with others.