A Meritocracia NÃO PRECISA de "oportunidades iguais" para funcionar

Esse é Daniel: teve a perna amputada por uma lancha aos 13 anos, ganhou uma prótese e uma indenização vitalícia de R$3.000,00. Foi preso por HOMICÍDIO em Maio de 2015. Mérito? [1]

Daniel teve todas as oportunidades para recomeçar a vida, mesmo assim…

Ao longo da semana passada, uma tirinha, bastante compartilhada nas redes sociais, trouxe mais uma vez à tona a velha discussão sobre meritocracia: nela (você pode conferi-la no site Catavento), mostra a história de duas pessoas: Richard, um garoto de classe média/alta que sempre estudou em escola particular, não precisou conciliar trabalho e estudo e era sempre amparado pelos pais; do outro, Paula, uma garota pobre, que precisou conciliar trabalho e estudos e que nunca teve pais presentes. O objetivo da tirinha? Óbvio, contestar a ideia de meritocracia, a invalidando pelo fato de não existir “igualdade de oportunidades”.

Não é a primeira vez que, mesmo de forma indireta, discorro sobre o assunto (ver aqui e aqui). Além disso, não custa reiterar a ideia de que tanto tal como a ideia de meritocracia, a “igualdade de oportunidades” é uma questão mal-entendida não só pelos esquerdistas, mas também por uma parcela considerável da direita, que muitas vezes acaba usando a mesma retórica (e, por isso mesmo, acabam perdendo para os esquerdistas, ainda que estes tenham menos razão). Enfim, o intuito deste post é fazer algumas ponderações não só sobre a tirinha, mas sobre as ideias por trás dela.

1 — Oportunidades iguais, a rigor, NÃO existem

A premissa importante antes de se debater esse assunto, é que, diferente da tirinha, que resume os seres humanos em dois grupos de espantalhos homogêneos, a verdade é que existem bilhões de indivíduos diferentes, com perfis diferentes, aspirações diferentes e visões de mundo diferentes. Isso continua sendo válido mesmo em grupos de mesma etnia, mesmo padrão de vida ou mesmo gênero.

Logo, se um indivíduo A oferece uma oportunidade de emprego igual (para simplificar: mesma função, com os mesmos recursos, para trabalhar no mesmo horário e no mesmo lugar) para dois indivíduos B e C ainda será provável que estes possuam desempenhos diferentes um do outro, assim como será provável que tanto o indivíduo B tenha a percepção que não está tendo exatamente a mesma oportunidade que C e vice-versa, pelo fato de ambos não terem (exatamente) o mesmo perfil.

Vamos supor ainda, que, como forma de “corrigir” essa diferença, A adote medidas que visem garantir que B e C tentem realizar seus trabalhos “em pé de igualdade”. Nada garante, porém, que a percepção da oportunidade seja melhor (pelo contrário, ela pode inclusive piorar) e nada garante que os desempenhos de B e C se aproximem da igualdade.

Só neste exemplo bem bobo, já dá para perceber que a ideia de “oportunidades iguais”, a rigor, não passa de uma ficção, pelo simples fato dos seres humanos serem diferentes uns dos outros. A propósito, se incluir o fator tempo, a situação fica ainda mais complicada, uma vez que uma oportunidade agora nunca será exatamente a mesma de daqui a um ou dois anos, seja pelas mudanças no próprio indivíduo, seja pelas mudanças do ambiente externo.

A ideia de “oportunidades iguais” é como uma assíntota (algo que alguns estudantes viram no ensino médio e que seguramente todo estudante de exatas viu em seu curso): algo que até é possível se aproximar, mas nunca de se atingir.

Resumo da ópera: oportunidades iguais simplesmente NÃO existem. Ponto.

2 — Se existe mesmo assim, igualdade de oportunidades NÃO significa igualdade de resultados, e uma melhor oportunidade NÃO significa um melhor resultado

Como disse no item anterior, apenas pelo fato de que os seres humanos são diferentes uns dos outros, as oportunidades dadas a eles serão diferentes, seja do ponto de vista de quem as dá, seja do ponto de vista de quem as recebe, ou mesmo de ambos. Logo, a igualdade de oportunidades, a rigor, não existe. Mas vamos supor que eu não falei isso e que, por um momento, admitamos que as pessoas possam ter as mesmas oportunidades e que elas tenham, de fato, a percepção de que foram dadas as mesmas oportunidades. Mesmo assim, pela própria diferença entre indivíduos, os resultados podem ser diferentes.

Por tabela, uma pessoa que tenha uma oportunidade na vida melhor que a outra não significa que entregará um resultado melhor. Existem filhos de pais ricos que possuem carreiras medíocres (se levar em conta o que seus genitores investiram), e existem filhos de pais pobres que construíram ótimas e sólidas carreiras (principalmente se levar em conta algumas limitações de investimento). Essa análise individualizada pode ser perfeitamente estendida para um nível macro, como o de políticas públicas, sendo que o exemplo da famigerada ideia dos 10% do PIB para a educação se enquadra nisso.

Se fizermos outra extensão ao item no sentido de que a deficiência de oportunidades pode implicar em decisões erradas, a existência dessas de forma abundante não implica, necessariamente, em decisões certas. O caso do garoto que teve a perna decepada, ganhou uma prótese paga por um empresário, R$ 3 mil por mês de indenização do dono da lancha que provocou o acidente e que mesmo assim optou por entrar no tráfico e agora está preso por assassinato não me deixa mentir.

A propósito, casos de jovens de classe média/alta que estudam em ótimas escolas, tem todo o apoio (ao menos financeiro) dos pais e que mesmo assim acabam indo para caminhos errados tem de sobra, da mesma forma que existem pessoas com um padrão social limitadíssimo e que escolhem subir na vida dignamente. Basta uma breve pesquisa no Google ou em qualquer portal de notícias.

3 — A personagem Paula é uma prejudicada pelo Estado

Lá pela quarta linha da tirinha, faz-se uma comparação entre a escola de Richard e a escola de Paula. Supondo uma realidade brasileira, a primeira é uma escola particular típica e a segunda uma escola pública típica. Trata-se, logo, de um problema criado pelo Estado, que é incapaz de, mesmo investindo em torno de 6% do PIB em educação, a mesma fatia dedicada por alguns países desenvolvidos, conseguir igualar o desempenho destes (ou mesmo de alguns emergentes).

E se o Estado, no lugar de investir em toda uma infraestrutura e recursos humanos para escolas públicas, desse preferência por fornecer financiamentos a baixo custo ou mesmo vouchers para que a personagem Paula, por exemplo, pudesse estudar em uma escola igual a de Richard, ou, pelo menos, alguma escola que a permita pensar um pouco mais alto? Pois é. E olha que nem sou, exatamente, um defensor da privatização da educação, muito embora eu nutro cada vez mais simpatia por essa ideia, ao menos de forma parcial. Outra alternativa seria a militarização de algumas escolas públicas situadas em localidades críticas (que parece dar certo).

Antes que alguém questione, cito um caso interessante do quanto o ensino público básico pode “não valer o que custa” em relação ao particular: durante a greve de professores no Paraná, alguns pais de alunos, impacientes pelo fato de seus filhos perderem dias e mais dias de aula, resolveram matricular seus filhos em escolas particulares. E na matéria do Último Segundo sobre gastos por aluno no Ensino Médio, o Paraná tem um custo de R$3.512,63, o que equivale a R$292,72 por mês para cada estudante.

No caso de uma estudante citada na reportagem, a mãe teve de cortar despesas para pagar R$300,00 de mensalidade (tudo bem que existem os gastos com material escolar e livros didáticos no segundo caso, mas se estes fossem diluídos, elevaria para R$350,00 numa hipótese razoável). Não fosse o fato de ter de pagar duas vezes (uma para ter acesso ao ensino público, por meio de impostos, e outra para pagar a escola particular), seria uma excelente troca, uma vez que ela gastaria menos de R$ 8,00 a mais por mês por uma qualidade de ensino muito melhor.

E antes que eu achem que estou viajando, basta comparar os custos-benefícios dos dois sistemas: no caso paranaense, o Ideb do ensino médio na rede pública é de 3,4, enquanto que na rede particular é de 5,7. Ou seja, o “custo por ponto por aluno” no Ideb equivaleria a R$86,09 no primeiro caso, enquanto que no segundo seria de R$61,40. Vantagem de, aproximadamente, 25% para o sistema privado. Para que a relação custo-benefício se torne indiferente (no aspecto financeiro), a mensalidade na escola particular (incluso livros didáticos e material) teria de se aproximar de R$500,00.

Resumindo: Paula é prejudicada pelo Estado duas vezes. Uma por estudar em uma escola ruim e outra por seus pais terem de pagar por isso em vez de receberem um benefício que lhe permita escolher uma escola particular.

4 — Os pais de Richard são culpados por serem ricos?

A tirinha tão elogiada por alguns passa a impressão de que Richard tem menos mérito em conseguir as coisas pelo fato dos pais serem ricos. Ou, melhor dizendo, os pais do garoto de classe média/alta são culpados pelo simples fato de terem mais recursos e uma melhor rede de relacionamentos — no mundo dos negócios é conhecida como networking — que lhe permita chegar onde chegou.

De nada adiantaria esse gasto e dedicação maior dos pais de Richard se ele acabasse sendo um aluno repetente na escola (apenas para efeito de relato, conheço pessoas que repetiram ano em uma escola de alto padrão de Vitória, cidade vizinha de onde moro e, só para constar, quando isso aconteceu, em 2009, a mensalidade já era de mais de R$2.000,00), relaxado na faculdade e que só fizesse caca no trabalho. Dependendo da situação, não há dinheiro nem Q.I. (quem indica) que resolva isso.

A propósito, a família do personagem Richard, ou pelo menos as gerações anteriores a ele, precisou construir este patrimônio por meio de esforços que atendessem as pessoas ao redor. Aliás, este é o conceito da meritocracia, que é conseguir algo por meio de ações que tragam vantagens aos envolvidos, e não tão somente pelo esforço dedicado na atividade (muito embora este possa ser importante).

5 — A questão não é se o Estado deve ou não agir para viabilizar a ascensão social dos mais pobres, e sim COMO agir

O fato da ideia de “igualdade de oportunidades” per se ser utópica não implica que o Estado deve se omitir na assistência aos mais pobres de forma que estes possam ascender socialmente de forma sustentável, inclusive com a construção de uma rede de relacionamentos que facilite essa ascensão, que é muito importante, e é, inclusive, uma vantagem de o governo investir em uma política de vouchers ou de financiamento para que alunos do ensino básico possam estudar em escolas particulares, uma vez que eles serão inseridos em um meio inicialmente frequentado por alunos pertencentes às classes mais altas.

A questão principal é COMO o Estado deve agir e, infelizmente, isso será visto como um sinal verde para justificar a defesa de soluções famigeradas, como a das cotas sociais e raciais (com a última sendo justificada pela vigarice intelectual da dívida histórica), ideias estas que não atacam o cerne do problema e que podem muito bem piorá-lo em longo prazo.

No mais, a diferença entre Richard e Paula, quando não provocada, é acentuada por ações erradas do Estado. E, de qualquer forma, a não existência de oportunidades iguais (a rigor) não anula a meritocracia. Evidente assim.

UPDATE: o leitor Octávio Henrique publicou em seu blog uma resposta ao meu artigo. Até o final do feriado de Corpus Christi escreverei uma réplica, incluindo alguns pontos que esqueci de abordar que não são menos importantes para efeito de análise.

AVISO AOS LEITORES: Este artigo foi baseado num outro que salvei no meu Pocket, mas que foi retirado do ar pelo antigo autor. Eu procurei a fonte, mas não encontrei. Logo, decidi republicar o conteúdo.

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("…Opinião…")! : Renatho Siqueira

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