Uma Brevíssima História do Espiritismo — Parte 1

Claudia de Abreu
sociedadeterranovabrasil
11 min readOct 20, 2019

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Mesa girante

A primeira parte desse texto narra, brevemente, o nascimento do Espiritismo, seu desenvolvimento e consolidação, na Europa, até o falecimento de Allan Kardec, em 1869.
Os próximos segmentos abordarão sobre a forte crise do movimento espírita após o óbito do seu fundador. Pierre Gaëtan Leymarie, passou a exercer as funções de redator-chefe e diretor da Revue Spirite (1870 a 1901) e gerente da Librairie Spirite (1870 a 1897). No entanto, por seu excessivo espírito de tolerância, foi acusado de desvirtuar as finalidades da Revista Espírita, sendo acusado e preso por fraude. O descontentamento da Igreja Católica, o movimento feminista em Barcelona e o não reconhecimento da doutrina pelo movimento espiritualista inglês, resultou no progressivo desinteresse sobre a doutrina na França e Europa em geral e pode ter sido responsável pela transnacionalização do Espiritismo da França para o Brasil.

Introdução

Hippolyte Léon Denizard Rivail, conhecido pelo pseudônimo de Allan Kardec, foi apresentado ao tema das mesas girantes, em 1854, por um grande amigo seu. Nascido em Lyon em 1804, educou-se na Escola de Johann Heinrich Pestalozzi em Yverdun, Suíça, tornando-se um defensor do seu sistema de educação. Antes que ficasse conhecido por seu pseudônimo, Rivail publicou livros e trabalhos de natureza pedagógica voltados para os conteúdos de Química, Física, Astronomia e Fisiologia, além de outros.

A obra espírita deixada por Kardec é conhecida como a “Codificação Espírita” ou “pentateuco kardequiano” e contém a base teórico-prática do espiritismo e sua proposta doutrinária.

É o próprio Allan Kardec quem descreve seu contato inicial com os fenômenos posteriormente catalogados por ele. Cético de início, aceitou assistir às experiências e empreendeu seus estudos através de uma observação rigorosa e meticulosa dos fenômenos:

“Foi em 1854 que pela primeira vez ouvi falar das mesas girantes. Encontrei um dia o Senhor Fortier a quem eu conhecia desde muito e que me disse: Já sabe da singular propriedade que se acaba de descobrir no Magnetismo Animal? Parece que já não são somente as pessoas que se podem magnetizar, mas também as mesas, conseguindo-se que elas girem e caminhem à vontade. — ‘É, com efeito, muito singular, respondi; mas, a rigor, isso não me parece radicalmente impossível. O fluído magnético, que é uma espécie de eletricidade, pode perfeitamente atuar sobre os corpos inertes e fazer que eles se movam’.
Os relatos, que os jornais publicaram, de experiências feitas em Nantes, em Marselha, e em algumas outras cidades, não permitiam dúvidas acerca da realidade do fenômeno”[1]. (KARDEC, 1998b, p.323)

Kardec reagiu sem surpresa aos fenômenos das mesas girantes, pois imaginava que o fenômeno fosse resultado apenas da propriedade não catalogada do fluido magnético, exposta por Mesmer. Segundo seus próprios relatos, ele teria tido contato com o magnetismo desde os 18 anos de idade, e havia se empenhado juntamente com os outros adeptos pela consolidação do mesmerismo na ciência oficial.
Kardec não aceitava que um evento sobrenatural estivesse acontecendo nas reuniões da burguesia parisiense. Sua formação acadêmica o impedia de acreditar em algo, sem que ele próprio realizasse uma análise mais detalhada. No ano seguinte, 1855, o futuro codificador espírita ouviu falar dos fenômenos mais uma vez, através de outro amigo. A ardorosa exposição feita por este amigo de tantos anos fez com que Kardec, de maneira coerente com sua formação acadêmica, procurasse observar presencialmente o fenômeno. Assim, em maio desse mesmo ano, Kardec é indicado pelo Sr. Fortier para comparecer a uma reunião onde o fenômeno se daria:

[…] fui à casa da sonâmbula Sra. Roger, em companhia do Sr. Fortier, seu magnetizador. […] A reunião foi marcada para terça feira, (1) de maio às oito horas da noite. Foi aí que, pela primeira vez, presenciei o fenômeno das mesas que giravam, saltavam e corriam, em condições tais que não deixavam lugar para qualquer dúvida. […] Eu entrevia, naquelas aparentes futilidades, no passatempo que faziam daqueles fenômenos, qualquer coisa de sério, como que a revelação de uma nova lei, que tomei a mim estudar a fundo. (KARDEC, 1998b, p. 326)

Os primeiros contatos de Kardec com as mesas girantes, deram forma à base da doutrina espírita. Muitas reuniões se sucederam em outros locais, com outras pessoas nas quais testou-se a comunicação direta com as inteligências por trás dos fenômenos. Usando uma cesta atravessada por um lápis, Kardec conseguiu comunicações extensas com um espírito que se autodenominava “Zéfiro” e lhe devotava muita simpatia.

Kardec denominou mediunidade à capacidade dessas pessoas para perceberem a presença e/ou manifestar a vontade dos espíritos, através de algum fenômeno palpável (KARDEC, [1960], p. 159–160).

A Codificação Espírita

O LIVRO DOS ESPÍRITOS
Em 18 de abril de 1857, chega às livrarias a primeira obra de Allan Kardec: O Livro dos Espíritos. Para concluir o projeto desse livro, Kardec desenvolveu durante dois anos, aproximadamente, um programa de pesquisa, coleta e organização, em que afirmava utilizar a metodologia científica para investigar as manifestações psíquicas dos indivíduos e perceber a ação e/ou influência de seres inteligentes imateriais. Tais inteligências extracorpóreas, chamadas de espíritos, podiam produzir diversos fenômenos tais como luzes, vozes, mensagens escritas, faladas etc. O livro contém uma grande compilação de perguntas feitas por Kardec aos espíritos e suas supostas respostas.
É com esta obra, O livro dos espíritos, que nasceu o pseudônimo Allan Kardec. Conforme relatado por seu biógrafo, Henri Sausse[2] (1851–1928), Kardec, ao ver-se na iminência de colocar seu nome no livro, ficou em dúvida se assinava com seu verdadeiro nome, devido à sua reputação no meio intelectual. A fim de evitar problemas para o seu propósito, resolveu adotar o nome de “Allan Kardec” seguindo uma recomendação do seu “espírito-guia” que, em comunicação mediúnica anterior, havia lhe contado que ele fora um druida na Gália em uma encarnação passada e cujo nome seria Allan Kardec.

A primeira edição era constituída de 501 perguntas e se tornou um enorme sucesso de vendas, esgotando-se rapidamente. Posteriormente, uma das responsáveis pelo material do livro, Ruth-Cèline Japhet, questiona publicamente Kardec sobre a ausência de seu nome no livro.
Em função disso, a editora lançou uma segunda edição ampliada com 1019 perguntas e fez menção à Mme. Japhet e outros.

O primeiro volume da Codificação Espírita está dividido em três partes e contém toda a base da doutrina espírita, cujos pilares são: a) a sobrevivência da alma e a possibilidade dos que já partiram deste mundo, os mortos, se comunicarem com os que aqui estão e b) o fato de que a alma é criada “simples e ignorante” e vai evoluindo, se depurando, crescendo em intelecto e moral através de sucessivas (re)encarnações, objetivando alcançar o patamar de “espírito puro”, no qual prevalece somente o bem, orientado pela moral cristã. Sobre esta última premissa, Kardec relata que a observou no início de seus trabalhos:

“Um dos primeiros resultados que colhi das minhas observações foi que os espíritos, nada mais sendo do que as almas dos homens, não possuíam nem a plena sabedoria, nem a ciência integral; que o saber de que dispunham se circunscrevia ao grau, que haviam alcançado, de adiantamento, e que a opinião deles só tinha o valor de uma opinião pessoal.” (KARDEC, 1998b, p.328)

A afirmativa acima desmistificava o “mundo dos espíritos” mostrando-o como um mundo comum, de homens vivendo em condições diferentes e que, apesar de estarem desencarnados, os espíritos tinham o conhecimento de acordo com o que tinham estudado e vivido em suas encarnações. Assim, o pesquisador espírita deveria estar municiado de certos cuidados em sua investigação, por estar lidando com homens comuns possuidores de uma índole boa ou má. (KARDEC, 1998).

Allan Kardec se tornou um dos intelectuais franceses mais lidos de sua época e O Livro dos Espíritos, foi reeditado 15 vezes durante sua vida, alcançando a 22ª edição em 1886 com versões em inglês, alemão, polonês, espanhol, italiano, português, grego moderno, croata e russo (MONROE, 2008, p. 96).

Em 1º de janeiro de 1858, Allan Kardec lança em Paris, com recursos próprios, uma revista com o nome de Revue Spirite, objetivando desenvolver e debater ideias espíritas entre simpatizantes do novo movimento. Muitas das ideias apresentadas, após consolidadas, foram transferidas posteriormente para os livros que comporiam as próximas obras da Codificação Espírita. O primeiro número da revista, com 36 páginas, tinha como subtítulo Journal D’Études Psychologiques, uma vez que igualmente eram publicados estudos sobre aspectos da psicologia humana. Em abril desse mesmo ano, Kardec toma uma das providências mais significativas para a propagação do movimento espírita ao fundar a Société Parisienne des Études Spirites (Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas — SPEE).

O LIVRO DOS MÉDIUNS
Em 1861, Kardec publica O Livro dos Médiuns onde aborda o “espiritismo prático” e teoriza sobre as manifestações mediúnicas. Sua intenção era capacitar a todos para lidar com os fenômenos espiritas se utilizando de uma “prática mais segura”. Mediante os conceitos e instruções ali contidas, seriam evitados problemas como charlatanismo ou complicações no trato com os espíritos. Esse livro consagra, em toda a Europa, a palavra médium como “pessoa acessível à influência dos espíritos e mais ou menos dotada da faculdade de receber e de transmitir suas comunicações”, ou seja, aquele que intermedia a comunicação entre vivos e mortos (EDELMAN, 1995, p. 10).

O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO e O CÉU E O INFERNO
A terceira obra de Kardec foi lançada em 1864 sob o nome Imitação do evangelho segundo o espiritismo, objetivando resgatar o cristianismo em sua pureza original. Em seguida seu nome é trocado para O Evangelho segundo o Espiritismo. Essa obra contém a proposta religiosa do espiritismo e é composta por mensagens de espíritos que, ao longo do tempo, auxiliaram na divulgação do cristianismo. Nesta obra, Kardec afirma que a doutrina espírita ou espiritismo é o “consolador prometido” por Jesus citado no Evangelho de João, e chama para si a responsabilidade de “dar continuação às leis do Cristo”. Assim, o espiritismo vinha, ao seu tempo, cumprir as promessas de Jesus de “ensinar todas as coisas”.
O penúltimo livro é lançado em 1865, sob o título de O céu e o inferno: ou a justiça divina segundo o espiritismo, onde Kardec aborda, segundo a ótica da doutrina espírita, os dogmas católicos de céu, inferno, purgatório, anjos e demônios. A intenção era mostrar que céu, inferno e purgatório não existem como concebidos pela teologia católica; que anjos não passam de espíritos que, através de seu autoburilamento, alçaram a condição de espíritos puros, e os demônios não passam de espíritos que, por sua ignorância, encontram-se ainda presos às sensações que a matéria densa propicia e se recusam a progredir através de uma autorreformulação interna (KARDEC, 2001).

A GÊNESE
Por último, em 1868, Kardec lança sua última obra, A Gênese: os milagres e as predições segundo o espiritismo. Nesta, o autor busca ampliar as leis da natureza para que os fenômenos espíritas e os milagres de Jesus, possam receber um tratamento mais racional e adequado aos conhecimentos do século XIX.
Kardec procura apresentar a “gênese” planetária utilizando, para isso, uma série de comunicações ditadas à Sociedade Espírita de Paris, em 1862 e 1863, sob o título Estudos uranográficos e assinada Galileu, supostamente uma comunicação mediúnica do espírito de Galileu Galilei (1564–1642) recebida pelo astrônomo e médium Camille Flammarion. O texto completo da série de comunicações pode ser encontrado no capítulo VI, “Uranografia geral”, dessa obra.

A “CIÊNCIA” ESPÍRITA

Durante os anos de 1862 e 1863, a ideia de éter luminífero se encontrava bem consolidada entre os astrônomos. Assim, não é difícil entender que Camille Flammarion tenha se apropriado do éter para descrever a matéria cósmica primitiva. Esta, geradora do mundo e dos seres, seria um fluido etéreo que permearia o universo, assumindo dois estados distintos, o de eterização (imponderabilidade) e o de materialização (ponderabilidade) e, entre estes, ocorreriam transformações contínuas:

10. Há um fluido etéreo que enche o espaço e penetra os corpos. Esse fluido é o éter ou matéria cósmica primitiva, geradora do mundo e dos seres. Ao éter são inerentes as forças que presidiram às metamorfoses da matéria, as leis imutáveis e necessárias que regem o mundo. Essas múltiplas formas, indefinidamente variadas segundo as combinações da matéria, localizadas segundo as massas, diversificadas em seus modos de ação, segundo as circunstâncias e os meios, são conhecidas na Terra sob os nomes de gravidade, coesão, afinidade, atração, magnetismo, eletricidade ativa. Os movimentos vibratórios do agente são conhecidos sob os nomes de som, calor, luz etc. Em outros mundos, as formas se apresentam sob outros aspectos, revelam outros caracteres desconhecidos na Terra e, na imensa amplidão dos céus, forças em número indefinido se têm desenvolvido numa escala inimaginável, cuja grandeza tão incapazes somos de avaliar, como o é o crustáceo, no fundo do oceano, para apreender a universalidade dos fenômenos terrestres.

Ora, assim como só há uma substância simples, primitiva, geradora de todos os corpos, mas diversificada em suas combinações, também todas essas forças dependem de uma lei universal diversificada em seus efeitos e que, pelos desígnios eternos, foi soberanamente imposta à criação, para lhe imprimir harmonia e estabilidade. (KARDEC, 2013a, p. 97)

Cabe observar aqui, que a matéria primordial a que Allan Kardec se refere é similar às características do éter de G. G. Stokes: densidade maior próxima à superfície da Terra e rarefeito a grandes alturas.

Seu objetivo com esta obra era parear a ciência com o espiritismo, buscando casar a ordem do mundo material com a ordem do mundo dos espíritos e, assim, demonstrar que ambos são um só mundo, estando somente em planos diferentes. Kardec entendia o espiritismo como uma ciência surgida com base na investigação dos fenômenos mediúnicos e na elucidação das leis que regem as relações entre o mundo corporal e o mundo espiritual. Para ele, as manifestações espirituais nada teriam de sobrenatural ou de maravilhoso; elas se produziriam sob leis naturais, assim como a eletricidade, a gravitação e a mecânica (KARDEC, 1998a, p. 6–28). Sua metodologia — observação empírica, análise racional das manifestações espirituais e apropriação dos conceitos da ciência da época — levaram seus adeptos a reivindicarem um caráter científico, moderno e racional para a teoria espírita, tendo esta metodologia, obtido grande repercussão. (SHARP, 2006, p.xvi)
Entretanto, ele próprio afirmava que o espiritismo não poderia ser enquadrado no mesmo ramo das ciências tradicionais, como a química e a física, por não lidar com a matéria, mas sim como uma nova ciência cujos fatos observados não encontrariam explicações à luz de teorias ou sistemas já existentes (KARDEC, 1999, p.2).

No ano de 1869, Allan Kardec falece de uma parada cardíaca súbita, deixando vários escritos esparsos, que foram posteriormente reorganizados por Pierre-Gaëtan Leymarie[3] (1827–1901) sob o título de Obras Póstumas. Morreu em seu apartamento, enquanto organizava a mudança da sede da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas.
Kardec foi enterrado no cemitério Père-Lachaise em Paris, e a inscrição na lápide resume os preceitos máximos de sua doutrina espírita: Naître Mourir Renaître encore et Progresser sans cesse: Telle est la Loi [4].

[1] Excertos do texto “A Minha Primeira Iniciação no Espiritismo”. (KARDEC, 1998b, p. 323–406)

[2] Representante comercial francês, nascido em Lyon e conhecido como o “biógrafo de Allan Kardec”, é devido a ele o conhecimento detalhado que hoje se possui da vida pessoal de Allan Kardec.

[3] Colaborador de Kardec desde o início da publicação da “Revue Spirite” e das obras da codificação da doutrina espírita, juntamente com Camille Flammarion. Como administrador da SPEE, passou a exercer as funções de redator-chefe e diretor da “Revue Spirite” (1870 a 1901) e gerente da “Librairie Spirite” (1870 a 1897). Durante trinta anos, no conturbado período que se seguiu à morte de Kardec, Leymarie manteve-se em atividade, promovendo congressos e divulgando trabalhos espíritas de vários países. Os escritos espíritas de William Crookes, na Inglaterra foram amplamente divulgados na revista, incentivando o próprio Leymarie a realizar experiências com fotografias. Pela ação de Leymarie, as obras de Kardec foram traduzidas para vários idiomas.

[4] Nascer, Morrer, Renascer ainda e Progredir sem cessar: Tal é a Lei

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Claudia de Abreu
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Docente do curso de Eng. Química de uma IES privada. Seu doutorado versou sobre o tema Espiritualismo e Ciência, na Inglaterra do século XIX.