Caixeiros viajantes: do Oriente Médio para o Brasil

Sofia Lisboa
Sofia Lisboa
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9 min readJul 1, 2022

A 25 de Março se tornou um pedaço de história e um lugar de memória dos Sírios e Libaneses na cidade paulistana

25 de Março

O rio Tamanduateí foi um importante afluente para o comércio da cidade de São Paulo até o final do século XIX — período em que foi drenado. Localizado no centro da cidade, o porto do rio em SP recebia produtos importados de Santos, e hoje, mesmo sem a existência dele, a região continua sendo um importante centro comercial da cidade paulista, conhecida pela rua que recebe cerca de 500 mil pessoas por dia: a 25 de Março.

Com extensão de 1,3 km, a rua de 154 anos já recebeu diferentes nomes, mas só em 1865 foi nomeada da forma que conhecemos hoje, em homenagem à data da primeira Constituição Brasileira, de 1824. Graças a sua localização estratégica — próximo ao mercado municipal, entre a cidade e a estação ferroviária e com alugueis baratos — a região foi o reduto dos primeiros sírios e libaneses na cidade.

“A família do meu pai chegou no final do século XIX em São Paulo, não sei ao certo a data. Meu pai, chegou ao Brasil na década de 40, mas já havia uma parte da família aqui bem estruturada na região da 25 de Março”, explica o descendente libanês e dono da loja Armarinhos Ambar na 25 de Março, Elias George Ambar.

Os imigrantes oriundos do Oriente Médio, na época dominado pelo Império Otomano, vieram ao Brasil no final do século XIX por espontânea vontade — há histórias que contam que a chegada deles no país seria consequência de um convite feito pelo D. Pedro II em viagem pelos países em 1870. O primeiro registro da entrada de sírios e libaneses em São Paulo é de 1880.

Porém, a consequência da imigração deste grupo inicialmente pode ser explicada de outra maneira: pelo conflito étnico na região entre maronitas e drusos, que acarretou em um massacre de cunho religioso. “Há relatos que os sírios e libaneses receberem mesmo o convite de D. Pedro II em sua viagem diplomática aos países, mas não acredito que tenha sido responsável pelo fluxo migratório desse grupo. As questões políticas, econômicas e sociais são as razões pelas quais eles vieram ao Brasil”, afirma a pesquisadora Juliana Khouri, autora da pesquisa sobre o Estudos Judaicos e Árabes pela Universidade de São Paulo.

Em busca de melhorar a qualidade de vida, enriquecer e assim, voltar para a cidade natal, a primeira leva de imigrantes eram de pequenos proprietários que chegaram aqui sem subvenção do governo — custeio de despesas pelo Estado para que imigrantes viessem trabalhar nas propriedades rurais do Brasil da época. “Em sua maioria eram homens solteiros, com o intuito de fazer dinheiro e retornar para a Síria/Líbano. Contudo, como toda história de imigração eles vão vendo que essa ideia não é possível e que não conseguem tanto dinheiro em tão pouco tempo e que o Brasil não era o que eles imaginavam”, comenta Juliana.

Desse modo, ao chegarem no país se depararam com uma estrutura agrária baseada em latifúndios, o oposto do que havia na Síria e no Líbano — baseada em pequenos lotes de terra e no trabalho familiar -, e tiveram que optar por outra força de trabalho: a mascateação.

De vendedores de tecidos à donos de comércio

A inserção da comunidade árabe na sociedade se deu inicialmente pela mascateação — o comércio de porta em porta -, pois não havia perspectiva econômica no trabalho rural. Apenas cerca de 18% da população oriunda destes países se declararam ser agricultores ao chegarem no Porto de Santos- mesmo sendo no país natal — entre 1908 e 1939, o que mostra o intuito de trabalhar na área comercial.

“Os caixeiros viajantes (mascates) faziam um elo de ligação com população da época muito importante. Ao chegarem nos rincões do Brasil, eles levavam além do armarinho a comunicação da cidade para essas pessoas”, conta Elias George Ambar.

Assim, com pouco capital financeiro e com a preferência de trabalhar para si próprios, a venda à domicílio foi a opção adotada pelos primeiros imigrantes sírios libaneses. O retorno rápido de dinheiro, a pouca exigência em falar português, a oportunidade de praticar o novo idioma, o acúmulo de capital e o esforço individual para crescer são outros fatores para a escolha da mascateação pelo grupo árabe. “Ao comprar a mercadoria e passar a vender ela durante a semana pelo interior do Brasil com uma margem de lucro boa e investir o retorno no próprio trabalho, eles acabaram criando um fluxo orientado pelo comércio”, ilustra a pesquisadora Juliana.

No início, o comércio era realizado pelas ruas da cidade e do interior — por isso a importância da localização próxima a linha de trem -, no qual vendiam seus produtos, de maioria bens não duráveis, em baús parecidos com armarinhos. “Ao chegar no país, meu pai foi ensinado a trabalhar pelos seus primos que estavam aqui desde o final do século XIX. Eles eram caixeiros viajantes, e o levaram para viajar e conhecer os comércios de outras cidades, onde ele poderia visitar e vender”, relembra Ambar.

O sucesso deste grupo com este tipo de mercado foi perceptível em um curto espaço de tempo. Instalados em São Paulo em menos de duas décadas, em 1901, já eram registradas cerca de 500 firmas de sírios e libaneses na região. No meio do século XX já ocupavam todo o comércio da 25 de março.

“Estávamos no centro, aqui era a coqueluche da cidade, tudo acontecia no centro. Os comerciantes começaram a chegar na região porque aqui podíamos atender as pessoas com um preço mais acessível do que em outras regiões do centro da cidade”, fala Elias Ambar.

O êxito nos negócios antes dominados por alemães e portugueses na região pode ser explicado pela familiaridade que tinham com o comércio, já que, vieram de uma rota comercial tradicional entre o Oriente Médio e Ocidente. Desse modo, em algum momento de suas vidas, eles já tinham praticado esse trabalho no país de origem e aplicaram novos métodos para vender o seu produto aqui. A introdução da venda a prazo e a dinamização das atividades comerciais foram umas das contribuições para o comércio da cidade. “Eles vão colocar algumas práticas comerciais inovadoras, como a venda a crédito e fiado. Essas práticas de comércio são inseridas na sociedade por meio da mascateação, depois pelo comércio e no atacado”, afirma Juliana.

Contudo, o talento no comércio não foi apenas no começo da inserção desse grupo no Brasil. Os imigrantes recém-chegados no país logo são apresentados ao ofício do comércio por parentes e/ou amigos da comunidade árabe — como era feito no século XX -, e em um curto espaço de tempo já estão crescendo na área. O lojista Rami Hanoun está aqui apenas há 4 anos e, além de já ter aprendido a língua, já tem uma loja de artigos eletrônicos na região.

Ao ser questionado o porquê do sucesso de sírios e libaneses no segmento, ele explica que é a forma que eles veem a importância do trabalho. “Para mim o trabalho é tudo, a partir dele conseguimos tudo. Não importa no que vamos trabalhar, iremos nos dedicar ao máximo nessa função. Eu, ao menos, coloco o trabalho como prioridade em minha vida”, diz Rami Hanoun.

Um pedaço do Oriente presente no Ocidente

O alto fluxo migratório no final do século XIX e a primeira metade do XX fez com que a 25 de Março fosse um ponto de encontro dos recém chegados aos já estabelecidos na região. Naquela época já existia uma predominância de pessoas e comércios sírios e libaneses no local, ou seja, o primeiro contato com a nova cidade era feito por intermédio do trabalho na 25. Assim, os imigrantes eram ensinados a praticar a arte de vender, seja em lojas já estabelecidas, ou a mascateação, ainda comum no período.

Desta forma, a unidade desse grupo na área pode ser explicada pela migração espontânea, que se deu pelas histórias de sucesso financeiro dos primeiros a virem ao Brasil. “A 25 era um verdadeiro polo de recepção, pois o português era difícil e a cultura muito diferente. Então, ao chegarem foram se estabelecendo no local em que estava seus amigos e parentes, pois era uma maneira de aprender a língua, a trabalhar, poder cozinhar e manter a sua cultura viva”, explica a pesquisadora.

As maneiras que o grupo criou para manter uma socialização mais afetiva no local foram a partir da gastronomia, religião e comércio. A pesquisadora conta que no início do século havia uma rua em que todos se reuniam para cozinhar. “Existia uma viela onde eles acendiam um forno para fazer kibe todos juntos, conversar e comer”.

A prática ajudou a tornar a região um núcleo de cultura do Oriente Médio, pois além da forte presença da comunidade, que permeou todo o século passado na famosa rua 25 de Março e suas adjacentes, a construção de instrumentos culturais ajudaram a caracterizar a área. As primeiras igrejas cristãs — como a Marionita que não existe mais -, a igreja ortodoxa e logo depois os restaurantes sírios e libaneses trouxeram toda uma estrutura para a fixação da cultura árabe.

A comunicação também foi um elo forte entre os sírios e libaneses nessa época, porque ao falarem a mesma língua, conseguiam receber notícias dos recém-chegados de como estava o país e parentes, além de ouvir as lembranças de fatos contados por meio de histórias da Síria e do Líbano — uma maneira de matar a saudade do país natal.

O apogeu desse grupo na região foi entre 1925 e 1945, época em que trabalhavam e moravam no mesmo local. Como chegavam sem muito dinheiro e por conta própria, eles alugavam imóveis em que podiam trabalhar na parte inferior e morar na parte superior — a maioria das estruturas dos imóveis se mantém a mesma ainda hoje.

Então, como a 25 de março recebia pessoas de todos os lugares do Brasil, da América Latina e até de algumas outras partes do mundo — era um grande polo comercial -, eles tinham a sensação de estar em um pedacinho do Oriente Médio. “ A 25 era um centro muito atraente. As pessoas chegavam aqui e ficavam encantadas, é um lugar cheio de coisas. Parecia que estavam fora do Brasil”, conta Ambar.

A presença de sírios e libaneses nas ruas era algo nítido pela língua — na época era comum se comunicarem entre eles apenas em árabe. O formato da loja também deixava clara a presença deles lá. As vitrines dos comércios mostravam uma grande quantidade de produtos, eram bem coloridas e tinham bastantes produtos pendurados na porta, que dava um estilo ou lembrança dos mercados souks árabes. O número de lojas vendendo tempero, especiaria e de restaurantes também davam essa identidade síria e libanesa para o local.

“Para você perceber a presença forte deles na região, meu tio reaprendeu o árabe na 25 de Março. Ele veio da Síria ainda pequeno, mas meus avós não usavam o árabe para falar com os filhos para eles se adaptarem mais rápido com o português, então ele esqueceu a língua e reaprendeu na 25”, relembra a pesquisadora e descendente sírio e libanesa Juliana.

A pesquisadora também conta que em seu trabalho de campo encontrou vendedores que não tinham descendência nem síria e libanesa, mas que, apenas em contato com clientes da região aprenderam o árabe. “Entre eles, conheci um senhor brasileiro que na época de tanto que vendia para clientes árabes ele acabou aprendendo a língua.”

Entretanto, a partir de 1945 começou uma leve dispersão na parte domiciliar para o Paraíso e, posteriormente, comercialmente para a área do Brás. No começo do século XXI, é a forte presença de asiáticos no comércio na região que começa a se destacar…mas isso fica para uma outra reportagem.

De nome de rua para data comemorativa

Apesar da dispersão do grupo para outras áreas de São Paulo e da predominância de chineses e coreanos no comércio, a 25 de Março ainda mantêm as suas raízes. Os nomes de suas adjacentes, antes todos brasileiros, são agora em referência a árabes que viveram e tiveram comércio na região, como a rua Basílio Jafet.

Há também a presença muito forte de restaurantes árabes e de aspectos menos perceptíveis, como as vitrines das lojas, que ainda mostram uma grande quantidade de produtos e são bem coloridas; e a predominância árabe no imobiliário, pois os donos de imóveis na região são sírios, libaneses ou descendentes que optaram por outro segmento.

No comércio, a maioria da comunidade da região trabalha com tecidos, armarinhos, fantasias e brinquedos, como é o caso de Elias, comerciante de tecidos, que relembra memórias marcantes da rua na sua vida: “Eu tinha uma freguesa na década de 80 da Costa do Marfim que vinha apenas para comprar ombreira. Ela saia do país dela pra cá apenas para comprar e levar de navio de 30 a 40 mil pares de ombreiras. Era impressionante. ”

Essas memórias presentes na população sírio e libanesa na região estão sendo cristalizadas em forma de instrumentos culturais. Os nomes das ruas e a data comemorativa da comunidade árabe — o dia 25 de março foi escolhido no ano 2000 pela própria comunidade — são umas das formas realizadas para manter presente esse lugar de memória: a 25 de março.

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Sofia Lisboa
Sofia Lisboa

Uma Jornalista que se aventura no mundo tech e que busca contar histórias vividas fora da frente da tela do computador