A morte do “Agilismo” e o que isso pode significar pra você

Alisson Vale
Software Zen
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11 min readJan 3, 2017

Chegamos a 2017 e a virada de ano me parece ser uma ótima oportunidade para escrever sobre um dos aprendizados mais significativos que tive nos últimos anos. Aprendizado esse que afetou profundamente o entendimento das coisas que faço e as decisões sobre a forma como vivo a vida. Algo que eu já vivenciava como experiência há pelo menos uns três anos, mas que finalmente consegui estruturar em ideias e palavras nesse ano de 2016.

Esse foi o ano em que mergulhei fundo no estudo de assuntos transversais à área de software como filosofia, psicologia e sociologia. É nessa transversalidade dos temas que você vai achar as explicações mais fundas sobre os problemas e dilemas que vivemos. Um dos autores que estudei com profundidade esse ano foi Nietzsche.

À partir de Nietzsche me aproximei da escola existencialista da filosofia e da psicologia e, graças a uma sugestão despretenciosa do Youtube, ao professor de psicologia da Universidade de Toronto, no Canadá, Jordan Peterson. Tomei a liberdade de legendar um trechinho de 1 min de uma de suas aulas para que eu possa dar o ponto de partida a esse artigo. Assista antes de continuar a leitura:

Prof. Jordan Peterson da Universidade de Toronto fala sobre a relação que temos com as ideias que defendemos.

“People don’t have ideas. Ideas have people.” Carl Jung

Esse conceito do Jung me explicou muito da minha própria trajetória depois de me associar aos movimentos Ágil, Lean e a negócios Startups. Não é fácil perceber o processo de ser tomado por uma ideia. Boas ideias vem acompanhadas não só de uma causa a qual se agarrar, mas também do vislumbramento de um mundo melhor. Todos esse movimentos trazem consigo todos os componentes que buscamos depois de ir ao fundo do poço com o uso de processos tradicionais ineficazes: inovação, disrupção, coolness, empoderamento e, claro, o fato de funcionarem muito bem.

Entretanto, haverá sempre uma serpente em todo Jardim do Éden. Todas as ideias tem seus limites. E a pior coisa que podemos fazer é nos apaixonar por nossas ideias, especialmente por aquelas que não são nossas. O que eu estou chamando de “Agilismo” para o propósito desse artigo é a transmutação de um bom conjunto de ideias para desenvolvimento de software em ideologia. Ele converte o meio no fim. Redireciona o vetor do esforço humano de “gerar valor” para “ser Ágil”. Durante muitos anos vivi o “Agilismo”. Mas não só ele. Vivi o “Toyotismo”, o “Startupismo” e outras boas bandeiras que também se tornaram ideológicas. Estava pronto para viver o próximo “ismo” quando a sabedoria e a reflexão me ajudaram a perceber o padrão e seus efeitos colaterais danosos para minha vida e meus projetos. Nesse artigo, eu vou te explicar todo esse processo.

Como chegar a um “não lugar”

Na década de 80, você sentia na alma quando o Cazuza cantava: “Meus heróis morreram de overdose e meus inimigos estão no poder (..) Ideologia, eu quero uma pra viver.”. Sim, é verdade… Ele, e muitos de nós, queríamos uma ideologia pra viver, mesmo aquelas reconhecidamente utópicas. De fato, o ser humano não consegue viver sem algum tipo de utopia. Precisamos pintar um quadro com a visão de um futuro melhor e depois correr atrás pra ver essa pintura se converter em realidade.

Thomas More foi genial quando batizou de Utopia a ilha que criou para hospedar sua ideia de sociedade perfeita. Em grego “u” é um advérbio de negação (não) e “topos” significa lugar, formando assim um “não lugar” ou um lugar inexistente. O próprio nome revela esse paradoxo no desejo humano: as idealidades residem em um não-lugar, e , muitas vezes, é ali que lutamos todos os dias para chegar.

Nesse sentido, somos uma sociedade platônica em essência. Vivemos em uma constante batalha dicotômica entre dois mundos. Há o mundo real, onde há todas as imperfeições com as quais interagimos todos os dias; e há o mundo ideal, o mundo das ideias e idealidades, onde a perfeição reside, onde queremos chegar, mesmo sabendo, às vezes, que é só mais um “não lugar”.

Hoje, mais de 20 anos depois, os versos do Cazuza fazem sentido pra mim de uma forma completamente diferente. Hoje eu cantaria: “Meus heróis morreram de overdose ideológica. E os meus inimigos… ah, esses perderam o poder exatamente quando eu descobri isso”. Ao definirem uma visão de mundo ideal, acompanhada de uma única forma para se chegar lá, os ideólogos dividem o mundo entre nós e eles. Estabelecem vítimas, inimigos e opressores. Lutam para forçar a implementação de sua visão de mundo sobre os outros.

Olhando pra trás, consigo lembrar dos vários momentos na minha história na qual fui subjugado pelas ideias. Dominado mesmo por elas. Lembro como muitas vezes forcei a barra para levar as pessoas a “serem Ágeis”, empresas a “serem Lean” ou negócios a serem “Startups”. Lembro como deixei de resolver problemas reais em nome da ideia mais recente que eu havia comprado. Lutava muito mais para que a ideia fosse implementada, do que para que o problema realmente fosse resolvido.

Eu não tinha ideia nenhuma, eram as ideias que me possuíam.

Convém dizer e reforçar que não vejo nada de errado nos métodos Ágeis, no Lean, nas startups ou nas outras estruturações de ideias, métodos ou ideologias que acredito. Muito pelo contrário, continuo promovendo essas abordagens porque minha experiência demonstra que são o que há de melhor dentro do panorama de mundo em que vivemos hoje. Entretanto, é inevitável dizer que acho que há algo a ser pensado cuidadosamente no que diz respeito à relação que estabelecemos com essas ideias. Quem está a serviço de quem? É você que está a serviço das ideias ou são elas que estão a seu serviço?

Felizmente o entendimento dessa sutileza me fez mudar de abordagem nos últimos 3 anos, melhorando muito tudo o que eu faço. E o que eu coloquei no seu lugar foi algo muito maior. Custou muito pra eu entender o que Nietzsche quis dizer quando escreveu:

"Quanto mais alto me elevo, menor fico aos olhos de quem não sabe voar." Nietzsche

As ideologias de dois mundos

Nietzsche foi um grande crítico das ideologias de dois mundos. Ideias ou posturas que nos levam à concepção de uma espécie de “mundo verdadeiro” que existe fora de onde a vida é vivida. Esse mundo projetado é verdadeiro no sentido em que trata o mundo em que vivemos como falso, ilusório ou inferior. É difícil achar um “ismo” que não estabeleça essa divisão: socialismo, liberalismo, capitalismo, comunismo, libertarianismo, feminismo, ambientalismo, nacionalismo, racionalismo; e, porque não? agilismo, toyotismo e startupismo.

As ideologias estabelecem valores, critérios de conduta e princípios auto-contidos que pairam por cima do mundo real, especialmente do “seu” mundo, do “seu” contexto de vida. Como não estamos satisfeitos com o mundo em que vivemos, a ideologia surge pra nós com uma bela fotografia de um mundo muito melhor a se conquistar, onde não haveria mais os problemas do real. No livro “The Death of God and the Meaning of Life”, Julian Young explica o conceito do mundo verdadeiro.

Um mundo verdadeiro é um destino — um destino que alcançá-lo é entrar (ou talvez reentrar) em um estado de eterna benção, um céu, paraíso ou utopia. Filosofias de mundo verdadeiro dão sentido à vida representando-a como uma jornada — uma jornada em direção a redenção, em direção a uma chegada que compensa mais do que o stress e desconforto da viagem.

Os “mundos verdadeiros” podem ser idealidades referenciais perigosas quando, em nome do mundo verdadeiro, vivemos sua filosofia de tal maneira a abandonar as questões concretas do mundo real. O que Nietzsche explica é que fazemos isso quando nos falta um sentido ou significado criado por nós e para nós. Por que não vemos sentido no que fazemos, nos agarramos aos ideais de algum tipo de movimento de massa, de tribo, que ofereça uma resposta idealizada para as dores que temos ou tivemos. O eixo de conduta se desvia do real para o ideal. Ao fazer isso você deixa de construir e adaptar os termos que precisa para viver e passa a encaixar sua vida nos termos da idealidade. Ao invés de usar as ideias para elevar-se diante dos problemas e situações do real, tudo gira em torno de o quão conforme você está a esse ideal. Se sua conduta se encaixa ou não na idealidade.

Que atire a primeira pedra quem nunca pensou: “ — Mas será que estarei sendo Ágil se agir dessa maneira?”. Como se, “ser Ágil”, se encaixar nos valores da tribo, fosse mais importante do que fazer o que precisa ser feito; experimentar o que precisa ser experimentado. Quantas vezes não vi pessoas dizendo “Quero ser Ágil” ou membros de equipe questionando decisões óbvias de design de processo com o argumento: “hey, mas se fizermos isso não estaremos fazendo Scrum”. Como se a meta fosse “ser Ágil” ou “fazer Scrum”.

Os perigos da busca pela conformidade com o método

O que acaba acontecendo é que a busca pela conformidade com o meio, com o método, com a filosofia, se torna o fim, o objetivo, a meta. O mundo verdadeiro, o fim da jornada explicada por Julian Young, é o próximo projeto onde tudo se fez para que nos tornássemos incrivelmente Ágeis.

Nada pode ser mais perigoso do que transformar o meio na meta. A ex-professora de Harvard e especialista em Systems Thinking, Donella Meadows, ilustra bem o potencial destrutivo desse fenômeno quando explica que “nada tem maior poder de alavancagem do que mexer no propósito de um sistema”. Só que, nesse caso, a alavanca está sendo puxada na direção contrária. Acreditando que o sucesso está na conformidade com o meio (com o método), ou seja na verdade revelada pela idealidade, deixamos para segundo plano o que de fato precisa ser feito: resolver os problemas concretos da empresa e de seus clientes. Desviamos o propósito do sistema de “resolver o problema” para “provar que o método funciona”. Por que? Como disse o Jung no início desse artigo, porque não estamos usando a ideia, estamos possuídos por ela.

O sucesso não está na conformidade com o método, com o meio. Está no seu entendimento, na sua adequação à realidade que se pretende melhorar e no seu uso como ferramenta para se alcançar o que se quer.

“Seja Ágil!”, “Adote o Lean”, “Crie sua startup”. São todos lemas de bandeiras ideológicas que assumem o pressuposto de que há ”verdades objetivas” que você ainda não entendeu e para as quais precisa se conformar. Verdades essas normalmente acompanhadas de destinos idealizados a serem buscados em “mundos verdadeiros”. As verdades objetivas trazem com elas receitas de uso, normas de conduta e padrões de comportamento que pairam sobre sua realidade. Sim, elas nem sempre representam sua realidade, mas pairam sobre ela já que não necessariamente foram criadas pra lidar com os problemas específicos que você precisa ter resolvido.

Na década de 90, a verdade objetiva oferecida se chamava RUP. Era a plena expressão da universalidade do processo de desenvolver software. O sonho dos gestores de TI que queriam um manual pronto para construção de suas linhas de montagem para produtos de software. A fotografia de onde podemos chegar quando o objetivo é se conformar a uma verdade definida por outros pra você. O esforço de busca por essa conformidade a esse processo universal foi gigantesco na indústria de software (ainda é). A pergunta que você precisa se fazer é: a quem interessa? quem se beneficia dessa imensa busca pela conformidade a uma verdade estabelecida pra você, ao invés de por você? A pergunta continua válida agora em 2017. Mas tem muito mais a ver com entender o inconsciente coletivo desse processo todo, do que denunciar qualquer tipo de teoria da conspiração.

Isso não quer dizer que as verdades objetivas não sejam boas, ou úteis. Que não haja um imenso valor ali. Mas as verdades objetivas não são suas. Para lidar com o mundo complexo que você vive é preciso um outro tipo de relação com a verdade. Para entender isso, é preciso entender o conceito de “verdade pragmática”.

A verdade não precisa ser revelada, precisa ser construída.

William James foi um dos maiores filósofos e psicólogos americanos e grande influenciador do pensamento ocidental na segunda metade do século XIX. Ele era um filósofo pragmático e sua definição de verdade contrastava com a ideia de verdade objetiva oferecida pela ciência. Para ele, a verdade era a qualidade do valor que damos a ideias e ações confirmada pela sua eficácia quando as aplicamos. Em outras palavras, o valor da verdade está muito em o quanto ela é útil para uma função em particular enquanto a seu serviço. Isso é bem diferente da verdade objetiva, que implica em sua validade a despeito do uso que você faz dela.

Essa definição é especialmente importante para nós desenvolvedores de software. Quando você começa um projeto ou enquanto está tocando o seu, você nunca sabe se vai chegar ao resultado que espera. Você confia que sabe o que está fazendo por que já fez no passado e sabe, por experiência, como obter os resultados que precisa. Mas estamos sempre acompanhados da ignorância a cada passo, pois trabalhamos em um mundo onde a informação é sempre parcial e revelada ao longo do caminho. Toda vez que você define um plano de ação para qualquer coisa que faça (codificar, testar, planejar o projeto, estabelecer cronograma, etc), você define com esse plano de ação uma hipotética teoria de verdade, uma teoria sua, única, válida apenas para aquela dada situação naquele dado momento. Você implicitamente embute tal teoria no seu plano a cada passo que dá. Se, no final, você chegar aonde quis ou próximo do que quis, diz-se que a teoria definida foi suficientemente verdadeira.

Assim, a comprovação de uma verdade pragmática é medida pela eficácia do resultado e não pelo modelo científico tradicional gerador de verdades objetivas (repetição do experimento sob as mesmas condições gerando sempre o mesmo resultado).

“Verdades objetivas vão te dizer do que o mundo é feito. Verdades pragmáticas vão te dizer o que fazer dado que o mundo é feito do que é feito.” Jordan Peterson

Assim, o método não pode ser a meta, pois assim o trataríamos como verdade objetiva. E, em projetos de software, precisamos de verdades pragmáticas. O processo de melhoria da nossa forma de trabalhar passa por uma abordagem muito mais Darwiniana do que Newtoniana. Repare que a teoria definida pela verdade pragmática aconteceu ao longo, em torno, e embutida no seu contexto. Ela é, portanto, unicamente sua. Você pode então se perguntar… Onde entra o método nesse caso (Scrum, Kanban, Lean, Lean Startup, etc), já que não fui eu quem o definiu? Nesse caso, os métodos entram como parte do seu repertório.

As verdades pragmáticas são construídas à partir da aplicação do seu repertório conceitual em situações reais. Assim, você não tem que implantar um método na sua empresa. Você tem que construir o método enquanto o implanta na sua empresa. Para isso, você precisa de repertório prático e conceitual, não de receitas ou de enquadramentos ideológicos.

Esse repertório prático e conceitual vem não só dos métodos e de suas ideologias, mas principalmente, das suas interações com o mundo, com pessoas, com temas transversais. Vem de saber mais sobre o seu negócio, sobre pessoas e como elas se relacionam, sobre sistemas, economia, psicologia, sociologia, etc. Seu repertório é único. E essa multiplicidade de repertório oferecida por cada pessoa com a qual você interage é que torna o mundo mais eficaz.

O caminho é ‘obter repertório’

Aprender cada vez mais sobre o que está dentro dos frames de ideias só estará alinhado com o modelo pragmático se, e somente se, tais ideias estiverem a seu serviço para a solução do problema específico que você tem em mãos. Em outras palavras, as ideias de métodos, técnicas e práticas devem ser puxadas pela necessidade e nunca empurradas pela vontade de enquadramento ideológico.

Quando você puxa as ideias de acordo com a necessidade, você entra no domínio de “design de processo” e não de “implantação de processo”. Nesse domínio, método, técnicas e práticas serão úteis como um grande repertório disponível para a construção de um design único, um design que se encaixe de forma específica no seu contexto. Com esse tipo de postura, você será senhor das ideias e não escravo delas. Abandonará a jornada rumo a um “não lugar”, a um mundo verdadeiro e utópico, e começará a resolver problemas reais, no mundo real.

Talvez agora você entenda melhor porque Nietzsche diz que aqueles que não sabem voar o verão cada vez menor na medida em que ele se eleva. Quanto maior o seu repertório, mais alto você se elevará. Quanto mais alto você subir, de mais alto verá o mundo em todas as suas perspectivas. Mais problemas conseguirá resolver e menor ficará para aqueles que terão seus pés amarrados as suas ideologias.

Alisson Vale fundou o Software Zen para aumentar o seu repertório em temas que vão contribuir para te ajudar a lidar com os problemas mais complexos na arte da gestão de software. Conheça nosso programa de treinamento online nessa página.

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