Alisson Vale
Software Zen
Published in
7 min readNov 14, 2016

--

Não empurra não, porque aqui é puxado!

Essa é uma frase que eu gostaria de colocar em um monte de camisetas e distribuir para o máximo de pessoas possível. Para mim, ela define uma filosofia de vida. Como você vai ler nesse post, a simbologia desse conceito pode transformar a forma como você interage com o mundo ou como você deixa o mundo interagir com você.

O filósofo Baruch Spinoza dizia, ainda no Século XVII, que a vida é formada por um fluxo ininterrupto de interações com o mundo. Em alguns momentos, tais interações contribuem para aumentar sua potência de agir, em outros para diminui-la. Aqui, eu quero fazer uma reflexão de como essas interações podem contribuir ou não para um vida mais construtiva, onde suas escolhas emergem do que você quer (ou do que é preciso ser feito), ao invés do que os outros querem (ou precisam) de você.

Na vida, o mundo quer coisas de nós o tempo todo. Ao mesmo tempo, buscamos atrair coisas que estão no mundo para nós. Quando somos levados a privilegiar o interesse de outros, dizemos que há algo sendo empurrado.

Por outro lado, quando o que fazemos é movido ou pelo nosso interesse ou pelo interesse do todo onde estamos inseridos então dizemos que há algo sendo puxado. Essa é uma definição útil para começarmos aqui, mas ainda incompleta. Vou elaborar mais nos próximos parágrafos.

Esses fenômenos de relação acontecem o tempo todo nas nossas vidas. Há inúmeros exemplos de uma relação empurrada: você é empurrado quando alguém interfere no seu planejamento te pedindo para fazer algo; quando é chamado para conversar em um chat sem combinação prévia; ou quando é cobrado a responder de forma imediata as mensagens no seu smartphone. Exemplos vão ao infinito.

Eventualmente, ser empurrado pode ter uma dinâmica mais sutil. Somos empurrados a escolher uma carreira quando ainda não estamos prontos pra isso; somos empurrados a estudar assuntos pelos quais não nos interessamos e que nunca iremos usar; somos empurrados a acumular títulos que nos ajudem a conquistar um trabalho que, em pouco tempo, odiaremos fazer; ou a fazer um concurso público quando o que realmente queríamos era atuar no mercado que de fato nos preparamos para exercer.

Ser empurrado parece ser uma dinâmica natural da vida. Afinal, não é possível vivermos uma vida nesse planeta sem sermos empurrados em um maior ou menor grau. O ponto é: precisa mesmo ser assim?

No trabalho, por exemplo… Ali, as tarefas são normalmente empurradas para nós. Recebemos trabalho pra fazer de nossos chefes, gerentes, de nossos clientes, de usuários, do colega ao lado. Não há nada ilegítimo em receber trabalho para fazer. O problema se torna crítico quando percebemos que nos tornamos seres autômatos que se alimentam de tarefas pra fazer e que dejetam tarefas realizadas.

Nessa vida de máquina, quando o trabalho é constantemente empurrado pra você, você vive em um estado de constante reatividade. Você vive em função do que o outro quer. Ao invés de proativo, você se vê reativo ao desejo do outro. Em tal estado, você não se constrói; não expande o conhecimento sobre si mesmo; não testa seus limites; não exerce sua criatividade; não exercita as atividades humanas mais nobres. Quanto mais você trabalha, maior é a sensação de que as coisas não saem do lugar. Você apenas faz… e faz… e faz.

Quando falamos de puxar ou empurrar, estamos falando da dinâmica de colocar algo em movimento, de transferir algo de uma posição A para uma posição B. Ao ato de empurrar está associado o afastamento do objeto de interesse. Se você puxa, você traz esse objeto de interesse para próximo de você. No ato de empurrar, você não é o agente do movimento. Alguém sempre empurra pra você.

Empurrar é uma atividade onde quem empurra não tem visão sobre o que se tem à frente. “Quando você empurra, você está irracionalmente empurrando sua intenção pra frente” dizem Jim Benson e Tonianne Barry no livro “Personal Kanban: mapping work, navigating life”. Ao empurrar, sua intenção é movida pelo desejo. Um desejo que não considera o terreno em que ela vai ser trabalhada.

A saída é puxar. Quando você puxa, você é o agente do movimento, você traz para si baseado em algum tipo de critério que não a mera relação de poder. Jim e Tonianne descrevem isso em uma analogia interessante. Um garçom pode levar pratos, copos e talheres em um carrinho de restaurante empurrando o carrinho ou puxando o carrinho. A melhor prática é sempre puxar o carrinho. Como você não conhece o terreno a sua frente, o encontro com uma fresta entre pisos pode resultar em acidente. “Puxar é um ato racional. Quem o inicia é familiar com o terreno que se desdobra a sua frente, e pode mensurar o espaço de manobra”.

Puxar é a resultante de uma relação de interesse mútuo, enquanto empurrar é a resultante de uma relação de poder.

A pergunta que você deve estar se fazendo nesse momento é:

— Legal, gostei desse negócio de puxar, mas como eu faço?

Não é tão simples assim. As estratégias mudam muito de acordo com seu contexto ou seu papel na relação: se você é um empreendedor, ou um intrapreneur; ou se é um colaborador, funcionário, membro de time, etc.

Se você executa demandas diretas do seu chefe, cliente ou gerente, apóie-se em um mapa de atividades. Esse mapa representa o terreno da relação de vocês. Você deve desdobrá-lo a sua frente toda vez a realidade que ele representa muda; ou seja, quando seu chefe/cliente te pede algo, quando você termina algo, quando abandona algo, etc. Por exemplo, quando seu chefe te pede alguma coisa, use o mapa para conversar sobre o terreno. Mostre o que está fazendo, o que já foi feito e peça ajuda pra ele te dizer como esse novo pedido será encaixado dentro dos pedidos anteriores que ainda não foram atendidos (o famoso “a fazer”). Assim, quando você terminar a tarefa que está em andamento, você poderá “puxar” aquilo que é o mais importante para se fazer de um lista priorizada e pré-acordada com ele de forma que o critério por trás dessa seleção seja claro.

Exemplo de um mapa pessoal portátil com post-its e folha A4 pra você levar com você aonde for.

Sempre combine o que precisa ser feito diante de uma visão tangível do todo. Entenda os problemas que estão sendo resolvidos por trás das tarefas e atue proativamente para sugerir caminhos mais curtos ou novas possibilidades. Reorganize constantemente o mapa de forma colaborativa com seu interlocutor. Busque sempre manter conectado o que está sendo feito com o propósito do que precisa ser feito.

Fazendo dessa forma, você se protegerá da tirania da máquina de pedidos e poderá trabalhar junto com o seu interlocutor para que você esteja sempre fazendo a coisa certa na hora certa.

Se você é um empreendedor ou intrapreneur, a ferramenta é semelhante, mas o foco é outro. O foco é proteger o seu tempo das distrações e se manter concentrado em viabilizar as soluções para os problemas e oportunidades do empreendimento. Defina o grande problema — ou business value — que merece sua atenção e depois quebre-o em problemas menores. “Puxe” as tarefas necessárias para lidar com tais problemas e projete-as no seu mapa. Use-o como referência para o seu planejamento. Use-o para exercer o seu poder de escolha sobre o que é mais importante para ser feito agora. Trabalhe com um, ou no máximo dois, problemas por vez. Quando o problema atual for endereçado, puxe o próximo, e então, puxe novas tarefas deste. É você quem deve definir o caminho de evolução do seu empreendimento. Não deixe que os outros te tirem desse caminho lhe empurrando tarefas com suposto interesse comum, quando na verdade são meras distrações para a realização do seu objetivo.

O mesmo vale para a forma como você se comunica com o mundo. Por que você interrompe sua rotina para atender a uma requisição de chat? ou a um telefonema de origem desconhecida? Estruture-se para trabalhar com comunicação assíncrona! Puxe! Comunique-se muito, interaja muito, mas apenas nos momentos que você estiver preparado para isso. Liberte-se da escravidão da sincronicidade empurrada. Seu projeto de vida agradece, seja ele qual for.

A arte de puxar não é apenas uma técnica de gestão para seu fluxo de atividades ou para a forma como você interage com o mundo.

Puxar é um grito de autonomia! Uma filosofia de vida. Já pensou, por exemplo, em como você se educa? A sua educação é puxada pelos seus interesses e anseios? Você puxa os temas, cursos e livros de acordo com seu próprio plano de evolução? Você descobre e define quais são as habilidades que precisa para chegar onde quer chegar? ou você é empurrado para se educar de acordo com os desejos ou interesses de outros?

A grande questão é: quando você se libertará de um mundo que te empurra de um lado para o outro? Quando você vai se posicionar de acordo com o que você quer ou com o que você precisa para construir um futuro nos seus próprios termos? A hora é agora.

Alisson Vale é desenvolvedor de produtos de software, educador e empreendedor. Com mais de 20 anos de experiência em desenvolvimento e liderança de projetos de software, tem sido um praticante e divulgador de métodos modernos de gestão desde 2003 com uma grande participação em congressos e fóruns de debate no Brasil e no exterior. Em 2008, implementou o primeiro estudo de caso do método Kanban no Brasil e, logo depois, ganhou o prêmio internacional Brickel Key Award por essa implementação. Em 2014, fundou o Software Zen, um empreendimento de educação digital que tem levado conteúdo inovador sobre gestão a milhares de pessoas.

--

--

Alisson Vale
Software Zen

Ajudo líderes de projetos de software a superarem os desafios organizacionais e a conquistarem uma carreira de significado e de realizações.