Resgatando o Propósito da Agilidade

Alisson Vale
Software Zen

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Para muitos, a semana começa no domingo à noite. Caindo exaustos rumo a inconsciência do sono, frases repetitivas que começam com ‘tenho que…’ circulam na nossa mente. "Tenho que, tenho que, tenho que…" Nem todos reconhecem o processo em andamento, mas os que o fazem, vêem, na inesgotável lista de tarefas que precisam ser movidas para ‘done’, a profundeza existencial da pergunta que há muitas centenas de anos fora apresentada a Sísifo, um dos grandes mártires existenciais da mitologia grega: ‘Pra quê?’.

Apesar de central para o ser humano, a pergunta do propósito é normalmente a última a ser feita. Como o rio que leva o galho incapaz de por si só vencer a correnteza e se libertar, a vida naturalmente leva também nosso foco e esforço para o resultado do trabalho que desempenhamos. Não só para o resultado, mas para o melhor resultado. Aquele gerador de aplausos e honrarias, aquele que massageia o ego, e assim nos anestesia para evitarmos o confronto com uma realidade existencial aparentemente inalcançável.

A modernidade definiu o propósito do trabalho em termos de seu resultado. O mundo contemporâneo cada vez mais frequentemente nos lembra que há algo importante faltando nessa proposta. Se o propósito do trabalho está em seu mero resultado, o que nos resta quando este é alcançado? O próximo, depois o próximo, e o próximo… Como o Sísifo que carrega a pedra até o topo da montanha só para vê-la cair, movemos o próximo ticket para ‘done’ para reviver, mesmo que sem muita atenção, a história e o significado que o mito carrega. Como dizia Gaius Sallustius, um antigo historiador romano: o mito nada mais é do que aquilo que nunca aconteceu, mas que, ao mesmo tempo, está sempre acontecendo.

Alimentando o espírito humano

O mito do Sísifo nos lembra que o problema do propósito está sempre acontecendo. O espírito da modernidade tem nos levado a uma vida que se orienta pelo trabalho, que se pauta pela coluna ‘a fazer’ do nosso quadro kanban. E como o trabalho é o que dá suporte a nossa vida prática, nos vemos em um loop sem condição de saída. O que se alcança é esgotamento de memória, crash de cpu ou, dependendo do seu sistema operacional, tela azul. Como escapar desse loop é talvez um dos grandes desafios do profissional desse século.

Embora o resultado seja importante e necessário, ele por si só não é capaz de alimentar o espírito humano. Alguma outra componente no trabalho precisa direcioná-lo, limitá-lo em sua necessidade de expansão incessante. Sabemos sim, que é no resultado que encontramos o atendimento às nossas necessidades. Mas e se essas necessidades não forem de fato reais, mas induzidas por um jogo inconsciente de crescimento ilimitado? E quando o prazo é arbitrário? E quando o escopo é arbitrário? E quando o jogo em si, que está sendo jogado, é arbitrário? Nessa hora, o resultado, mesmo quando alcançado, torna-se sem sentido, sem propósito, sem condições de sustentar uma vida que clama por mais do que os boletos pagos no fim do mês.

Se o propósito não está no resultado, onde está?

Embora o resultado do nosso trabalho seja importante e necessário, ele só é legítimo quando está sendo direcionado por algo essencialmente significativo. Para mim, esse algo tem a ver com “experiência”.

O ser só ‘é’ porque é capaz de experienciar. Da mesma forma, o ser só 'é humano’ porque sabe, porque avalia o que está experienciando. Toda experiência é, no fim, de natureza subjetiva: a sensação de ordem que o salário em dia nos dá, as contas pagas, o tratamento respeitoso dos colegas, a empatia quando diante de problemas e dificuldades, a excitação diante da inovação, o preenchimento com a satisfação do cliente, o sentimento de pertencimento a um grupo, a percepção de ter feito a diferença na vida do outro, o impacto do bom trabalho realizado e, sem dúvida, o bom resultado alcançado no final.

O trabalho sujeita as pessoas a um certo conjunto de experiências que moldam a relação com seu significado. Quando respeitamos e orientamos as experiências que nos fazem humanos, o trabalho ganha o carimbo de ‘significativo’. Significado é para onde um símbolo aponta. Neste caso, como símbolo, o trabalho significativo aponta para sentimentos, como o amor na ajuda ao outro, a realização da vida bem vivida, a paz que se desenvolve no espírito, ou a satisfação com o dever cumprido.

O resultado, claro, determina a capacidade de sobrevivência de um grupo ou iniciativa. Entretanto, o trabalho significativo não é encontrado no seu resultado, mas nas experiências que ele molda. Os resultados mantêm as contas pagas, eles criam a robustez para a vida ser vivida em seu aspecto material. Mas só podemos atribuir sentido a eles por meio das experiências que produzem.

Assim, embora todo o foco em resultado seja gerador de frutos nas camadas inferiores da Hierarquia de Maslow, para que o ápice da pirâmide esteja disponível para todos, é preciso que a organização seja repensada como local de acolhimento e produção de experiências capazes de enaltecer a vida humana. Também é preciso que o indivíduo se desenvolva a ponto de saber construir e direcionar as experiências para a mesma direção. Experiências capazes de sustentar primeiramente o interesse, a motivação e o bem estar das pessoas em uma organização. Dado que essa pré-condição se apresente, surge então o resultado como premiador da elevação humana. E assim o fluxo de experiências que chamamos de vida assume sua perspectiva mais concreta.

A Agilidade como integradora entre o resultado e a experiência

De certa forma, os profissionais do desenvolvimento de software começaram a encarar de frente esse problema há um pouco mais de vinte anos. O Movimento Ágil surgiu como um movimento de foco nos indivíduos e suas interações, e de recuperação da sustentabilidade na relação humana com o trabalho de desenvolvimento de produtos. Em sua essência, o manifesto foi um grande compromisso técnico, social e ético para integração entre experiência e resultado no âmbito organizacional. Intrínsecas à Agilidade estão as ideias de colaboração, de busca por excelência e simplicidade, de auto-superação por meio da melhoria contínua, e de um olhar mais atento ao valor que se produz. O convite é se submeter a tais experiências a priori, de forma que elas nos orientem rumo ao resultado que virá a posteriori. Por isso, valores como confiança e coragem são tão importantes. Confiança nas experiências que guiarão os resultados, e coragem para ‘sermos’ uma experiência primeiro, para depois ‘termos’ um resultado. Assim, ao invés de um conflito entre o ‘ser’ e o ‘ter’, a Agilidade sugere a integração entre esses dois modos existenciais rumo a melhores projetos e organizações. Rumo a um futuro melhor.

Desde o surgimento desse movimento, um imenso repertório de técnicas, práticas e métodos se estabeleceu para apoiá-lo, mas algo saiu dos trilhos. Viramos aplicadores de técnicas. Enquanto defensores de modelos, substituímos o território pelo mapa. Objetificamos o outro. Instrumentalizamos as relações. Nos perdemos na necessidade de convencer as pessoas “a serem Ágeis” enquanto usuárias de métodos e práticas específicas. O Manifesto Ágil acertou a direção, mas a forma como o aplicamos errou o alvo. Processos em si não promovem a sustentabilidade, pessoas conscientes sim. E esta talvez seja a grande chave: o grau de consciência das pessoas.

A consciência de si e do outro, a perspectiva empática, o pensamento sistêmico, a modulação de comportamentos orientados a boas experiências. Estes são bons pontos de partida. Todos esses são atributos das pessoas e do seu grau de consciência, não dos processos. Processos são hábitos e estes são inerentemente inconscientes. O jogo só muda quando o indivíduo consciente se eleva acima de seus hábitos e reações inconscientes, percebendo a si mesmo e ao outro em relação enquanto compartilham o presente vivo. É neste prisma que ‘indivíduos e interações mais do que processos e ferramentas’ pode ser adequadamente compreendido.

Temos problemas para resolver, oportunidades para aproveitar, esses são bons objetivos. Para atingi-los, precisamos de ambos, resultados e experiências, um conjunto que, bem integrado, define uma finalidade, um propósito interior e exterior. A Agilidade tem assim, um papel talvez mais importante do que supomos. Trazer de volta a experiência humana para o centro do trabalho, deixando que o resultado seja construído a partir dela, ao invés de cairmos na tentação de, por meio de processos, moldarmos a experiência em torno de resultados arbitrários e ausentes de qualquer significado.

A estratégia que resgata o ser e o seu propósito

Mas o problema é sutil, e o quadro, complexo. Há cada vez menos solidez no certo e no errado. Somos únicos, vivendo situações únicas, com limites e restrições. Também não podemos fazer o que queremos. E, na verdade, isso é ótimo. Somente o nosso ego é tolo o suficiente para nos fazer acreditar que sabemos a verdade por trás de alguma coisa.

O que podemos fazer então? No fim, é o personagem Waymond do filme ‘Tudo, em todo lugar, ao mesmo tempo’ que nos dá a dica do que pode ser feito agora mesmo, neste e no próximo instante, nesta e na próxima interação social:

— “Seja gentil!”, diz Waymond.
— “Especialmente quando não sabemos o que está acontecendo”.

Seja gentil consigo mesmo e com os outros. Busque a compreensão empática mais do que o convencimento, o diálogo mais do que a disputa por quem está certo sobre algo. Daí pra frente, o resultado, seja ele qual for, será o melhor que poderia ter acontecido.

Confiança e coragem para ser gentil, mesmo com quem discordamos. Talvez esteja aí uma boa maneira de exercermos o dia a dia em alinhamento com o propósito da Agilidade.

PARA SABER MAIS

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Alisson Vale

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Alisson Vale
Software Zen

Ajudo líderes de projetos de software a superarem os desafios organizacionais e a conquistarem uma carreira de significado e de realizações.