A Cidadania oferecendo o balé sensorial de Stravinsky

Daniel Muñoz
Soixante-huit
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3 min readApr 10, 2019
Fachada do belo Theatro Municipal de São Paulo. Foto da minha companheira Ariana Lackshmi

O público tem a cara do local, assim como o evento. Um pouco mais de um ano depois da última apresentação, o Balé da Cidade de São Paulo volta ao Theatro Municipal da capital paulistana para apresentar A Sagração da Primavera, de Igor Stravinsky. A última vez que a composição do russo tinha sido apresentada neste local foi para comemorar os cinquenta anos do grupo de balé, em 2018.

A temporada, que ainda está acontecendo no Theatro, foi planejada para oito apresentações, começando na quinta-feira, dia 4 de abril, e finalizando no domingo, 14. Além do grupo de balé, a tradicional Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo, OSM, oferece a música para o espetáculo, com a regência de seu maestro Roberto Minczuk.

Chocante desde a sua estreia original em 1913, no Théâtre des Champs-Elysées, em Paris, a apresentação é realmente intensa, mas não causa um choque visível na plateia. Pode-se assumir que isto tem a ver com os costumes tradicionais de quem frequenta o Theatro, já que o sucesso pode ser medido pelos estrondosos aplausos que ocorreram ao final da curta performance.

A casa estava completamente cheia, não sendo visíveis cadeiras vazias em nenhum setor do grande teatro. Sob a música com compassos que trazem a mente uma sensação de guerra, os bailarinos realizam a performance que destaca profundamente características corporais.

Leigos do balé, que fique claro que não sou nenhum especialista também, notam rapidamente como os bailarinos precisam estar em uma condição física perfeita para executar a apresentação. Seus corpos não perdem em nenhum aspecto para os de atletas de esportes de alta performance.

Foto de divulgação do Balé da Cidade de São Paulo, apresentando A Sagração da Primavera. Cortesia do Instituto Odeon

Além das coreografias tribais, a obra de Stravinsky oferece uma visão interessante da relação entre o masculino e feminino, que são tratados como mundos separados em um conflito territorial. Em uma atuação impecável, os bailarinos nos oferecem uma visão que poderia remeter ao encontro entre um primordial encontro entre o primeiro grupo de homens, e o primeiro grupo de mulheres.

Com o andar da apresentação, a dança ganha um caráter que remete a uma sensualidade profana, de uma maneira que seria vista como explícita por uma audiência mais antiga, ou mais conservadora.

É interessante perceber que a audiência em São Paulo não reagiu negativamente a esta situação, mesmo com o momento político pelo qual o país passa, onde a cultura é vista como inimiga, em especial quando fatores de sexualidade são referenciados, como Stravinsky fez em sua composição, com grande maestria.

O público que ali estava não se incomodou com a apresentação daqueles bailarinos, mas isso não significa que não estavam presentes muitos dos que condenam a sensualidade em outras expressões culturais. Além de que se valores estatísticos valem de algo, grande parte daquela plateia pode ter votado pelo atual governo, que é tão inimigo da cultura que fechou o seu ministério.

Referente à apresentação, é uma experiência única e altamente recomendada a todos, mesmo àqueles que nunca foram ou não estão acostumados a ir a este tipo de evento. Para mim foi uma experiência memorável e um dia que guardarei com enorme carinho. O valor do que se vê em uma performance como aquela, não é facilmente medido, e é quase impossível de ser fielmente definido em palavras.

Mas também fica impossível ignorar um desconforto que se causa ao falar que o Ministério que apresenta aquela expressão cultural é o da Cidadania.

Em aparência, parece que o forte Theatro Municipal não sente ainda os cortes feitos nos investimentos para a cultura, em todos os níveis de governo. Mas pode ser realmente apenas uma questão de aparência. Com a situação atual, todos deveríamos ir assistir Stravinsky, não apenas para saudar a primavera, mas porque não saberemos quanto tempo o inverno da guerra contra a cultura vai durar.

Trecho importante do folheto da apresentação…

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Daniel Muñoz
Soixante-huit

Um dia jornalista, hoje historiador. Escrevo só sobre o que quero e quando acho que tenho algo a dizer. Para mim é importante a diferença entre Ochs e Dylan