A solidão das composições musicais

Daniel Muñoz
Soixante-huit
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5 min readMay 17, 2019

Podemos ler nas biografias, ou até ver nos cinemas, as histórias de bandas que criaram músicas que se tornaram clássicos e marcaram gerações. Sabemos que isso é o sinal de que chegou a hora de ouro para estes velhos rockers, que escreveram tantas canções juntos, colherem os louros por toda a produção artística que deixaram. O que as pessoas acostumadas com estas histórias não sabem, é que este hábito de compor em grupo é algo profundamente incomum.

Se formos olhar bem longe no passado, vemos que a música como conhecemos nasceu das trovas e do teatro, que eram sim atividades em grupo, mas a criação de peças que eram reproduzidas por vários, costumava ser feita por um ser solitário. Tente buscar óperas que foram compostas por grupos de pessoas, verá que não é fácil.

O processo de composição musical se assemelhava muito à criação literária, e a solidão era um componente que ambos os trabalhos compartilhavam. Mesmo sem ir tão longe, vemos que até o próprio rock ’n’ roll nasceu de compositores solitários, Chuck Berry que o diga, já que ele o inventou. Alguns grandes nomes, inclusive, praticamente nunca escreveram música, como Elvis Presley.

Elvis cantou músicas de muitos compositores que já eram inclusive famosos com suas canções, como neste caso o clássico de Simon & Garfunkel, Bridge Over Trouble Water. Ele chegou a cantar canções dos próprios Beatles e do Bob Dylan.

O que possivelmente passou a mudar esta história foi aquele grupo de garotos de Liverpool, que queriam ser como Elvis. The Beatles, era o aparecimento de nomes de grupos entre o que mais se ouvia nos rádios do mundo. Obviamente existiram alguns grupos antes, mas eles não quebraram tanto o status quo quanto aqueles meninos ingleses.

Os universos de Lennon e McCartney, separados, não se assemelham em nada ao que se pensa do universo dos Beatles.

E foi nesta época que se criou a mágica por trás das músicas assinadas como Lennon/McCartney. Se olharmos a quantidade de músicas do grupo que recebe esta assinatura conjunta nos assustamos, as únicas exceções são realmente as composições de George Harrison. Mas hoje sabemos que na realidade não é verdade que todas estas músicas foram compostas em dupla.

Dizer que estes grandes parceiros escreveram muitos dos clássicos sozinhos não apaga o trabalho que fizeram juntos. A Day in the Life, por exemplo, é uma autêntica canção Lennon/McCartney e uma das mais belas produções musicais dos Beatles.

Como já contou Bob Spitz, junto com tantos outros biógrafos dos fab four, tanto John Lennon como Paul McCartney escreveram muitas das icônicas canções sozinhos, mas eram creditadas sempre para a dupla, como uma forma de sedimentar esta magia que se criava em volta de seus nomes. Segundo conta a história, a primeira vez em que este acordo quase foi quebrado foi quando Paul compôs Yesterday, música gravada originalmente apenas com Paul e um quarteto de cordas, fazendo com que se cogitasse que fosse creditada apenas a McCartney. Mas isto não aconteceu e se manteve o início do imaginário das composições feitas em conjunto.

George Harrison não se preocupa em dizer que a canção era de Lennon também, porque afinal nunca foi, a música foi escrita somente por Paul McCartney.

Aos mais atentos, é possível perceber nos álbuns que os créditos pelas músicas indicam composições. Em algumas bandas é bem claro que o processo criativo original das canções é solitário, como no Queen por exemplo. Mas omito da composição em conjunto, ou até mesmo do eterno protagonismo dos vocalistas, faz as pessoas continuarem acreditando que a canção I Want to Break Free, escrita pelo baixista John Deacon, tem alguma a ver com a opção sexual de Freddie Mercury.

A capa do álbum Hot Space já deixa estes tão diferentes senhores, separados cada um em sua cor.

O Queen é um bom exemplo para diferenciar através das próprias músicas o estilo de composição de cada pessoa. Quem ouve com mais carinho os álbuns percebem uma concentração de músicas mais tristes escritas por Brian May, a maioria das músicas motivacionais serem de Mercury e um grande número de músicas com batida mais presente, terem sido escritas por Roger Taylor.

Esta canção é o estilo mais próprio das composições melancólicas de May, que escreveu Who Wants to Live Forever após perder seu pai.
Uma das canções mais motivacionais já escritas, com a cara de Freddie Mercury.
Anthony Kiedis explica o processo de construção da canção The Longest Wave, composta em uma mescla de influências com o guitarrista Josh Klinghoffer.

Mas de fato existiu um conjunto de bandas que fez composições realmente em grupo. Talvez o maior exemplo seja os Red Hot Chili Peppers. Já de cara notamos isso por ver que as músicas são sempre creditadas aos quatro integrantes da banda, em todos as formações que a banda já teve. No caso dos Peppers, isso acontece também pela composição ser feita sempre em formato de ir lapidando e melhorando o que começa como um jam, um improviso no estúdio, que posteriormente Anthony Kiedis adicionaria apenas a letra e a melodia.

Jack White expandiu profundamente a sua experimentação musical quando passou a trabalhar realmente sozinho, como nesta peça que fez de uma releitura das clássicas canções chamadas Humoresque.
A título de comparação…

Em alguns casos, percebemos que não só é o trabalho em equipe, mas a influência de uma estrutura que afeta a composição de músicos, e notamos isto quase sempre pela perda, quando as bandas acabam. Vale o destaque do caso do White Stripes, banda que o seu frontman Jack White não manteve quase nada do seu estilo para suas aventuras solo, até o tradicional vermelho da banda virou azul nos álbuns de White.

Falo isso não para dizer que não se nota sinais de Jack nas músicas dos Stripes, mas pela diferença na estrutura da banda. As músicas que escreveu para sua nova carreira acabam tendo uma interpretação diferente das suas mesmas influências, que já apareciam enquanto tocava com sua irmã Meg.

Chris Cornell também é um bom exemplo de um compositor que deixa suas marcas, mas é altamente adaptável à situação em que está escrevendo. Basta compararmos as músicas do Soundgarden, Temple of the Dog, Audioslave e seus álbuns solo.

Um sinal que costuma ser comum em músicos que iniciaram a carreira em bandas, e depois migraram para um trabalho solitário, é a diminuição dos seus fãs fiéis. Isto acontece porque o processo de composição, quanto mais intensamente solitário, mais se torna pessoal. Ouvindo músicas das carreiras solo de todos estes que exemplifiquei, notamos uma presença muito maior de canções mais existencialistas e tristes, que vem do fato de serem muito mais relacionadas à especificidades das vidas deles, e menos abrangentes para receberem vários rostos reproduzindo-as.

Isto explica também porque as óperas não tinham tanto esta questão de excesso de introspecção, embora na prática seja impossível fazer um estudo sério sobre isso, já que não existe um conjunto de óperas composto por bandas, para fazer uma comparação justa.

O ato de criar leva muito do ímpeto emocional de alguém, por isso é tão complicado fazer em conjunto, a sintonia deve ser perfeita e a intimidade precisa ser enorme.

A era das bandas foi propícia, mas foi uma anomalia na história da produção musical, e os sinais indicam que este tempo passou, com a música voltando a ser majoritariamente dominada por artistas solitários. Podemos então sempre lembrar da mágica do momento em que a criação foi coletiva, pois não sabemos se um dia este tipo de anormalidade será mainstream novamente.

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Daniel Muñoz
Soixante-huit

Um dia jornalista, hoje historiador. Escrevo só sobre o que quero e quando acho que tenho algo a dizer. Para mim é importante a diferença entre Ochs e Dylan