Cuba nua em O Tradutor

Daniel Muñoz
Soixante-huit
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5 min readApr 24, 2019
Foto de divulgação: Malin (Rodrigo Santoro) e Gladys (Maricel Álvarez) observam o mar em cena d’O Tradutor.

Três salas em três cinemas e não conseguimos um lugar para assistir este filme, que já estava em cartaz há quase quinze dias. O ar sobre ele, no entanto era de uma tremenda novidade, por isso talvez as salas se mostraram tão cheias, o que não é normal para este tipo de filme. Depois de desistirmos, topamos com um quarto cinema da região da Paulista, perto da Consolação, que tínhamos esquecido que existia.

Já conformados com a derrota da nossa empreitada, paramos na frente do totem animado que anunciava os escassos horários daquele pequeno cinema. Eis que então aparece uma sessão, para duas horas depois do nosso horário planejado, do filme que tanto queríamos ver. Antes de comemorar fomos ao guichê checar. Sim, tinham cadeiras livres, praticamente todas ainda, enfim o filme seria visto hoje mesmo.

Ressaltar que foram duas horas de espera até o início da sessão é sim muito importante, pois demonstra o estado de consciência que estávamos depois de uma espera tamanha, até podermos entrar na sala. Era um feriado nacional, ou seja, nada se manteria aberto para nos entretermos até o horário que o filme iria começar, tarde da noite.

Depois de tomarmos dois cafés em dois locais diferentes, chegou o momento de entrarmos na sala, e logo vimos que as tantas outras cadeiras que estavam vagas quando compramos ingressos, teriam sim donos naquela sessão. Iria ser mais uma sessão cheia do novo filme que veio da velha ilha cubana ao Brasil, naquela sexta-feira da Paixão de Cristo.

Agora que já estão situados, posso falar que o filme é Un Traductor, em português tendo a simples tradução para O Tradutor. Logo de cara já se destaca o protagonismo do ator brasileiro, consagrado já internacionalmente, Rodrigo Santoro.

Trailer oficial de O Tradutor

A história é de um professor de literatura russa em Havana, Malin, que recebe a intimação para ajudar em uma necessidade que seu país absorveu dos seus então aliados de regime. Este senhor que discutia livros é levado para ser o tradutor das crianças doentes que foram a Cuba serem tratadas, por causa do acidente nuclear de Chernobyl, na então União Soviética.

O trailer já revela todos estes twists da história deste filme, este que aparentemente dificultou a classificação dos críticos, mas que tem um consenso mínimo em volta do gênero drama histórico. Talvez por esta natureza a narrativa não possa sofrer muito com o conhecimento do público destes spoilers. E o belo desta narrativa está no fato de que não sofre em nada mesmo, por isso não temo revelar esta parte da história.

Foto de divulgação: Yoandra Suárez interpreta Isona, a esposa do protagonista Malin.

O filme, dirigido pelos irmãos Rodrigo e Sebastián Barriuso, desenha um cenário autêntico e corajoso do país e das realidades que estes cineastas conheceram tão bem na velha ilha. Não há muito como traçar retratos daquela época, muito menos de Cuba, sem envolver política. São poucos que conseguiram fazer um retrato tão bom de tantas faces de uma mesma política, em um único filme. Somente aqui já temos um motivo mais do que suficiente para incentivar as pessoas a irem ao cinema pelo filme.

E a verdade é que a história se torna ainda melhor justamente por ser uma caixinha que reserva ao menos alguma surpresa para qualquer pessoa que possa ir assistir a ela. Pois nem mesmo os mais entendidos e interessados pela política ou história cubana, e eu me considero alguém que já passou muito tempo da vida absorvendo muitos livros e histórias da ilha de Fidel, podem estar totalmente preparados para a autenticidade do retrato. O filme mostra uma visão nua e crua do que significa Cuba, para quaisquer olhos, sem se importar com o nível de socialismo que neles habitam.

Não é uma peça propagandística para nenhum lado, e ele existir assim como é, mantendo-se cubano, é algo que por si só deve ser levado como um fator de extrema importância. Apenas por este motivo já vale também a recomendação do filme para todos os que são críticos assíduos e fervorosos do regime Castro e da Revolução Cubana.

Além da narrativa, a história é uma lição de pontos de vistas, já que o protagonista mesmo passa pela situação de ser obrigado a ver o mundo com olhos diferentes daquilo que ele tanto está acostumado a ver. A narrativa é autenticamente cubana também no sentido de trazer uma visão tão a parte do que se teria como natural em todas as outras culturas das Américas, para situações do contexto social que obriga as pessoas a reagirem àquilo que o mundo joga nelas.

Tudo isso acontece com o brilho e a riqueza cultural de se brincar com diferentes línguas, o que melhora qualquer situação. E você pode falar que eu falo isso apenas por ser um entusiasta de idiomas e seus estudos, tudo bem, não me importo de lidar com a desconfiança de alguns leitores aqui, mas destaco em especial este ponto até para dar os devidos créditos ao realismo do filme

Santoro, mesmo brasileiro, fala um espanhol com sotaque de Cuba de uma maneira excepcional. Desculpem-me, mas não consigo evitar a comparação em dizer: é infinitamente melhor do que fez Wagner Moura ao interpretar o narcotraficante Pablo Escobar, na série de José Padilha, do Netflix, Narcos.

Foto de divulgação: Maricel Álvarez interpretando a enfermeira Gladys.

A coadjuvante essencial do filme, a enfermeira Gladys, interpretada pela renomada atriz argentina Maricel Álvarez, traz mais um grau de história e autenticidade para a narrativa. A personagem é argentina e por isso a perfeição ocorre em uma atriz com autêntico sotaque e traços culturais argentinos, incorporando o papel.

Uma pílula de história e política argentina também aparecem no filme graças a esta personagem. Ainda mais importante, esta parte da narrativa revela a proximidade que Cuba tinha e ainda tem com latinos americanos de diversos outros países, em especial com pessoas que sofreram as mazelas e dores dos regimes ditatoriais militares que aconteceram nesta parte do mundo.

Além da política, o cenário bem delimitado aqui é o cultural, que aproxima a realidade de povos que por motivos geopolíticos, tiveram esses pontos de convergência em seus destinos.

O filme te prende por todos os segundos que você estiver na sala, e garanto o que estou dizendo te lembrando que eu havia esperado ansiosamente por duas horas, em mais de um café, numa cidade toda fechada pelo feriado, pela chance de assisti-lo. É um pedaço da História que se transformou em narrativa, e te leva à realidade de um país e de uma cultura tão taxada com mil adjetivos, mas que quase ninguém conhece como realmente é.

O Tradutor ajuda nesta ponte para trazer as pessoas para o que é a realidade cubana. Por este motivo, fechamos aqui com a terceira recomendação para irem ao cinema, com tempo hábil, para pleitear e ganhar uma sala e terem esta experiência única e notável que é: apreciar esta linda história, neste belo filme.

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Daniel Muñoz
Soixante-huit

Um dia jornalista, hoje historiador. Escrevo só sobre o que quero e quando acho que tenho algo a dizer. Para mim é importante a diferença entre Ochs e Dylan