Incômodos bem estruturados por J. M. Coetzee
Por quantos caminhos uma pessoa pode vir a comprar um livro? Com certeza é difícil colocar um número exato nas possibilidades, embora não se imagina que sejam tantas assim. Além das clássicas recomendações de amigos, muitas pessoas utilizam o motivo de já conhecer o autor para se aventurar em adquirir uma nova história para ler.
Existe um outro grupo de pessoas que se arrisca um pouco mais e confia totalmente no trabalho do designer das editoras, ou seja, compram um livro pela capa. Conto essa pequena anedota para falar sobre um livro que escolhi por uma combinação entre estes dois impulsos. Neste caso ainda temos mais um diferencial na história, de ter sido um autor que eu conhecia apenas uma obra, e nunca havia a terminado ela.
Estou falando de John Maxwell Coetzee, autor sul-africano consagrado com o Prêmio Nobel de Literatura em 2003. A obra que eu conhecia dele é uma das suas mais famosas, intitulada na sua língua original como Disgrace, traduzido para o português como Desonra. Este livro adquiri pela recomendação de um doutorando que deu uma aula para mim na graduação.
O momento pede que eu esclareça que nunca abandonei esta obra por não ter me apaixonado pela narrativa. Abandonei a leitura de Desonra porque a história exigia mais da minha vitalidade que eu podia oferecer para ela. A crueza da narrativa de Coetzee ao retratar uma situação terrível por natureza foi tamanha, que ler este livro nos trazia uma sensação incontrolável de desconsolo, asco e vergonha por toda a humanidade.
A grande característica do autor é que sua forma de descrever e narrar as cenas é de tamanha naturalidade e simplicidade, não importando a força ou o peso da cena, que qualquer narrativa com o estilo Coetzee se torna uma leitura muito dinâmica e sem dificuldades.
Mas que fique muito claro, isso não significa que é uma leitura ininterruptamente prazerosa. Mais uma vez destaco, ler Desonra é um teste de força vital para qualquer um. Inclusive roubo aqui uma frase de uma pequena resenha que li deste livro na internet, em que a resenhista afirma que o livro a deu vontade de ler Twilight (Crepúsculo), apenas para se desintoxicar com uma narrativa mais leve.
Por todos estes detalhes, tinha em minha mente uma visão positiva sobre o trabalho de Coetzee, embora não havia mais me aventurado em suas histórias. Pois então que me deparei com a capa e o título da sua nova obra na livraria, que eram chamativos ao ponto que causavam um interesse imediato de se iniciar a leitura.
O livro chamava The Schooldays of Jesus, traduzido como A Vida Escolar de Jesus. Sua capa é uma brilhante construção fotográfica de um jovem bailarino, com cara de extremamente raivoso, dançando. A infinidade de possibilidades imaginativas que esta combinação título/capa abriu na minha mente, em especial por já conhecer um pouco a obra Coetzee, me fez ter a vontade incontrolável de fazer deste livro minha próxima história.
E meu desejo foi tamanho que eu não me dei ao trabalho de ler as orelhas da publicação antes de adquiri-la (nem a minha esposa que também se apaixonou pela ideia de ler este livro, e queria muito comprá-lo, leu as orelhas da publicação). Foi então que somente em casa, com tempo, enquanto buscava um lugar na estante para guardar a obra, que descobri que na verdade esta obra era a segunda parte de uma narrativa maior.
O primeiro livro tinha sido lançado três anos antes, e chamava-se The Childhood of Jesus, traduzido como A Infância de Jesus. Como minha vontade de embarcar naquele livro era tanta, busquei ter também esta primeira parte, para poder começar a ler esta história da maneira correta. Localizei o livro, que também se utilizava da mesma técnica de uma combinação capa/título hipnotizante.
Em A Infância de Jesus, na capa figura uma criança muito jovem, com um lençol amarrado no pescoço, como um super-herói, e grandes e brilhantes óculos escuros. Mais uma vez, Coetzee permitiu um punhado enorme de opções para as possíveis narrativas que se podiam construir com este conjunto de informações.
E já que teria que embarcar numa viagem de dois pequenos livros para ter a totalidade deste romance, resolvi que deveria dar uma nova chance a Desonra antes de conhecer o que Coetzee reservava para Jesus. Rapidamente reli e terminei o curto livro do sul-africano, sobre um conjunto de acontecimentos do seu país. Então carregando todo o incômodo daquela narrativa brilhante e profundamente sombria e indigesta, comecei o meu caminho pelos caminhos de Jesus.
Não tardou para que eu reconhecesse o estilo Coetzee. O autor dá vida àquela velha máxima de usar uma simplicidade rica para contar suas histórias. Suas descrições e narrativas são extremamente simples, porém de uma plenitude e força ímpar. Talvez por isso consiga tratar de assuntos de tamanha delicadeza e problemática, sem fazer com que os leitores oficialmente desistam ou se repulsem a tal ponto que criem ódio pelo escritor.
Porém na história de Jesus, que na verdade é a história de uma pequena criança chamada David, o nível de perturbação é profundamente menor. Para ser mais justo, a perturbação é apenas em uma veia bem menos dolorosa para pessoas encararem, em comparação com a história do professor Lurie, em Desonra.
Nos dois livros de Jesus, Coetzee faz um convite para uma narrativa de cunho filosófico e reflexivo, onde o pensamento humano é o cerne de tudo na história. Os pontos de destaque na escrita são sempre questões de profundo pensamento e questionamento interno dos personagens, em especial do protagonista, que não é a criança David, mas o seu cuidador, Simón.
Para não dar spoilers de nenhum dos três livros citados neste texto, evito dizer os porquês, mas o fato é que Coetzee constrói uma estrutura onde o conceito de inícios, meios e finais se transformam em algo muito diferente. Tudo isso com a naturalidade de uma narrativa que continua num alto nível de simplicidade.
Nota-se o lado acadêmico do autor, que também é pesquisador e professor, por suas inúmeras e bem documentadas referências literárias e de outras formas de expressão artística nas suas narrativas. Um ponto bastante interessante na história do menino David são as constantes referências à obra-prima de Cervantes, El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha, o famoso Dom Quixote.
A história se passa na Espanha, com uma descrição de personagens que é tão provinciana que herda um pouco do tom debochado do clássico escritor espanhol. Coetzee, no entanto, adiciona um valor de estrangeiro a uma situação narrativa semelhante à quixotesca, como se quisesse provar que a grande obra em língua espanhola poderia ser reescrita por um não falante da língua, desconhecedor da cultura espanhola.
O autor revela, intencionalmente ou não, o seu grande apreço pela literatura como leitor. Embora possa se imaginar que isto seja muito normal entre escritores, não é algo que costuma ser muito explícito. O uso de metáforas e construções religiosas faz com a narrativa ganhe um ar de fábula alegórica, que permite com que momentos de desconforto emocional causados pelas ações dos imprevisíveis personagens, se tornem risos incontroláveis de nervoso por parte do leitor.
Coetzee reforça o seu estilo de personagem irreverentes e com formas de pensar completamente descoladas das normas social. O autor faz esta opção sem afetar de maneira alguma a verossimilhança de suas narrativas, talvez por uma tentativa de garantir uma humanidade mais íntima a seus personagens. Ler Coetzee é como ler uma história onde todos os lados mais obscuros de ação de um personagem darão um jeito de aparecer ao longo da narrativa.
O livro obviamente divide os gostos, entre aqueles que terminam com um enorme sorriso e os que terminam com vontade de arremessá-lo pela janela. Talvez seja este o grande diferencial das obras de Coetzee, não obstante a grandeza do valor literário, que não se discute muito. A satisfação ou não em terminar a história, acaba dizendo acima de tudo, muito sobre a personalidade do próprio leitor.