Jack White e o jovem velho repórter do Lollapalooza

Daniel Muñoz
Soixante-huit
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8 min readMar 13, 2019
Cores e mais cores, símbolo do Lollapalooza.

Em 2015, eu era um jovem repórter, com ênfase no jovem. Tinha a sorte de trabalhar já como repórter e ganhar coberturas importantes, coberturas que eu sabia que a maioria dos meus colegas de universidade gostariam demais de fazer. Eu trabalhava neste emprego fazia um tempo já e tinha acumulado horas extras o suficiente para tirar umas férias de dez dias de folgas seguidas em fevereiro.

Era março, ou seja, eu havia acabado de chegar de viagem, quando apareceu a pauta de fazer a cobertura de um festival de música. E não era qualquer festival, era um que eu já era fã, Lollapalooza. Na agência eu era o que tinha a pegada mais rock ’n’ roll, então, com os headliners anunciados, fez sentido que eu ficasse responsável pelo sábado. Era o dia de Jack White, mas tinha a presença ilustre de um show anterior de alguém com uma história maior, Robert Plant e sua banda The Sensational Space Shifters.

Por mais jovem que eu era, eu tinha experiência, já que havia em janeiro do mesmo ano feito a cobertura da vinda do Foo Fighters ao Brasil, junto com a banda britânica Kaiser Chiefs. Na minha cabeça isso não significava nada, afinal por mais confiante e petulante que eu era, como todo bom jovem repórter talvez, estava morrendo de medo da minha primeira cobertura de um autêntico festival.

Meu editor me pediu para eu tomar a iniciativa de dizer como a pauta deveria ser tocada, abençoado seja sempre ele por todas as oportunidades que me deu! Eu então pensei, ora, precisamos fazer uma cobertura do festival do jeito certo para quem ama essas coisas, precisa ser algo que possa ser vivido ao longo do dia.

Então chegamos à ideia de fazer mais de uma reportagem sobre o evento, sendo uma sobre o início do festival e a expectativa da fila para entrar, que sairia ainda pela tarde, e a principal que falaria do dia por completo, que sairia logo após o final da última apresentação. Vou mencionar mais uma vez minha juventude, daquelas que fazem pequenos meninos rockeiros endeusarem somente aquilo que era muito clássico, por isso a minha cabeça naquele dia estava quase 100% focada em Robert Plant.

Tinha um computador da agência comigo, que ficava na sala de imprensa, enquanto eu rondava por todos os cantos do Autódromo de Interlagos, em São Paulo, falando com todo mundo e pegando o máximo de informações que eu podia sobre tudo. Minha colega repórter que estava na agência de plantão para me auxiliar foi mais do que salvadora na produção do texto da primeira matéria, afinal foi muito mais fácil que eu ditasse informações para ela por telefone, enquanto ela mexia no conteúdo.

Admito que naquela época, as minhas habilidades para escrever estavam muito abaixo do que hoje, e muito abaixo do que eram as minhas habilidades de ser atrevido e sair perguntando e indagando todas as pessoas para ter as histórias que eu queria contar. Talvez todo repórter aprenda a perguntar, antes de aprender a escrever direito, não sei responder esta pergunta, mas foi certamente o meu caso.

O dia ia passando e eu rondava e rondava por todos os palcos, se havia um bom dia de trabalho, era este, eu não poderia estar fazendo algo que eu amava mais! O fotojornalista da agência também estava pelo evento e eventualmente o encontrei para falar quais fotos eu gostaria de ter para mencionar as bandas que eu queria destacar.

Uma foto completamente acidental que tirei de Robert Plant, onde o desfoque o fez quase um espectro musical, no seu palco iluminado em tons de rosa.

Então chegou o momento da lenda do Led Zeppelin entrar no palco, com sua banda mais do que alternativa. Baby I’m Gonna Leave You abriu o show, que já era um clássico antes de começar, mas foi muito contemporâneo, muito hipster, como o festival já era conhecido naquela época. Plant fez um show fantástico, poderoso e arrebatador como se esperava. O que inclusive me rendeu o título que pensei junto com o meu editor para a reportagem final.

Cruzamento geracional abraça o Lollapalooza no Brasil com o mito Robert Plant

A matéria foi escrita em espanhol, e nesta língua fazia muito mais sentido o título. Mas interrompo um pouco a história por aqui, porque quero desviar o foco para a atração principal do palco principal do festival, que naquele momento eu infantilmente tratei como secundária.

Chegamos então a Jack White

Ainda mais difícil para um repórter sozinho, com uma câmera de qualidade questionável, tirar boas fotos no show de Jack White, portanto o máximo que eu consegui foi esta foto também desfocada.

No auge da minha clássica juventude, eu conhecia mais de Led Zepellin que de White Stripes, a banda original da estrela da noite. Obviamente a sua maior canção já era um eco eterno na minha cabeça, afinal o mundo inteiro dançava, dança e dançará para sempre os sons de Seven Nation Army.

Mas meu conhecimento sobre Jack não se estendia muito além das suas músicas mais badaladas, portanto tinha feito como um bom jornalista deve, pesquisado a sua obra para conseguir acompanhar bem o show.

Minha primeira falha daquele dia for não ter pesquisado tão a fundo o quanto eu seria impactado por um fator que define Jack White, o fator live. Com a estridência e a violência de seus grooves, que tanto mostram as influências inclusive de Led Zeppelin na sua carreira, a abertura daquele show foi uma intensa Icky Thump.

Então logo evoluímos até um ponto de clímax com Lazaretto. Eu me martirizo até hoje por não ter na época tido a capacidade de destacar com tamanha veemência como era impossível não dançar com o groove desta música. O show te levava junto, não tinha como escapar, Jack é um mestre do romance em conduzir sua plateia no ritmo que prepara cuidadosamente, para cada uma de suas apresentações.

O videoclip de That Black Bat Licorice é uma manifestação ilustrativa das expressões da época blue de Jack White.

Black Math foi exorcizante. That Black Bat Licorice e suas cadências, já próximo do final, carregava os corpos cansados para os últimos passos da melhor dança de suas vidas. O fim era aquele clássico momento do rock ’n’ roll onde toda a plateia pula ao mesmo tempo, obviamente Seven Nation Army.

A sua música mais histórica, com certeza.

Minha juventude naquele momento não me permitiu valorizar a juventude de Jack, em comparação com o veterano Robert Plant, que inclusive havia feito inúmeras participações nos shows do Jack naquela turnê, mas resolveu que no Brasil não repetiria este ato. Jack foi o mestre da noite da minha primeira cobertura de um grande festival, e mesmo que não tenha sido o dono da minha reportagem, foi o responsável por desde aquele dia eu me tornar um assíduo e dedicado fã de White Stripes, The Raconteurs & Jack White.

As trovas de Jack White

Desde então, quatro anos depois de muitos estudos da obra de Jack, quero destacar o valor das narrativas de seu trabalho. A maestria dele vem do fato de que tudo conta uma história em seu trabalho, até as temáticas de suas roupas com a sua irmã mais velha Meg White, sendo sempre em tons de vermelho no White Stripes.

Em sua segunda banda, The Raconteurs, Jack e seus colegas padronizavam a imagem de suas roupas e fotos em tons enferrujados, trazendo a narrativa que gostariam para o seu trabalho. Ao final dos dois conjuntos, andando sozinho, Jack abraçou o azul como a sua cor e carrega a sua temática inteira nesta tonalidade, fazendo o show mais blue que você vai ver, mas com todo aquele punch de suas cores antigas.

Suas músicas carregam demais este conceito de histórias também, como podemos notar em clássicos de rock, misturado com um folk quase country do sul dos Estados Unidos, em Hotel Yorba.

Provocar uma certa sensação de desconforto em quem assiste com certeza é uma intenção destes dois irmãos.

Junto com sua voz estridente e as batidas de Meg, com o seu despojado violão, conseguimos enxergar Jack narrando uma história em que quase andamos ao seu lado como expectadores dos personagens. É uma velha técnica do folk americano que pouquíssimos fizeram com real qualidade, para mim os únicos que se equiparam em contar histórias em canções no mesmo nível são John Lennon, Paul McCartney, Phil Ochs e Cat Stevens.

Um trecho nessa música me rendeu um sorriso indescritível quando Jack o cantou em um quase silêncio de seus músicos naquele momento do show. Uma definição clara do que faz Jack White:

It might sound silly;
for me to think childish thoughts like these;
but I’m so tired of acting tough;
and I’m gonna do what I please.

(em tradução livre)

Pode soar bobo
eu ter pensamentos infantis assim
mas estou tão cansado de bancar o forte
e vou me comportar como eu quero

A inocência de uma infância com ares de tremendo sofrimento parece permear muitas de suas músicas com narrativas mais tristes, ou até aquelas com um bittersweet autêntico de sua autoria, como We Are Going to Be Friends. Jack canta como uma criança porque provavelmente escreveu essa música como uma criança, e isto é um enorme elogio.

Uma canção que não posso deixar de destacar, por ser extremamente cinematográfica, é Carolina Drama. A música evolui quase como uma opereta de uma tragicomédia violenta, em uma cena de abusos familiares comuns ao sul de seu país.

Acompanhar a canção junto com a letra, prestando muito atenção para não perder nenhum trecho da história é algo delicioso, para mim compara-se apenas com canções como Being for the Benefit of Mr. Kite dos Beatles, The Boy with the Moon & Star on his Head do Cat Stevens, ou The Highwayman de Phil Ochs.

As cadências de velhos instrumentos de cabaret, principalmente os violinos, se tornaram uma marca das composições de Jack, e são um destaque em praticamente todas as músicas que aparecem.

Sua banda é atualmente um reflexo dessa construção narrativa que ele produziu, mesmo no Lollapalooza já eram um conjunto de puro estilo, o que sozinho já trazia um enorme groove. Estas fotos de divulgação do próprio Jack White ilustrarão bem o que estou dizendo:

Sem espaço para uma alma nesta plateia.
O violino é talvez seu principal ponto de destaque nesta nova época de seus trabalhos.
Até um theremin foi tocado neste dia.

Sua crueza na composição traz um forte teor de verdade para as suas canções, o que nos permite acompanhar cada passo de suas histórias com arrepios e suspiros nos momentos precisamente pensados por Jack para acontecer. O seu trabalho é quase como um regente de uma plateia que acompanha a leitura de um jornal, e sabe pelo tom de voz do narrador, quando rir e quando chorar.

Belo dueto com Margo Price em sua talvez mais triste canção, I’m Lonely (But I Ain’t that Lonely Yet).

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Daniel Muñoz
Soixante-huit

Um dia jornalista, hoje historiador. Escrevo só sobre o que quero e quando acho que tenho algo a dizer. Para mim é importante a diferença entre Ochs e Dylan