Literatura Buarque de Hollanda

Daniel Muñoz
Soixante-huit
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11 min readMay 22, 2019
Entre palavras e partituras está a literatura de Chico Buarque.

Ontem, mais um brasileiro ganhou o prestigiado Prêmio Camões. Como o nome deve revelar, o Camões é uma premiação de literatura, considerada uma das mais importantes da língua portuguesa. O premiado deve ser uma pessoa que tenha “contribuído para o enriquecimento do patrimônio literário e cultural”.

Seguindo uma lista com nomes do peso de Rachel de Queiroz, Jorge Amado, José Saramago, Mia Couto e Raduan Nassar; o velho Francisco Buarque de Hollanda foi o escolhido neste ano. A premiação lhe foi dada principalmente por suas contribuições em modelos mais tradicionalmente ligados à literatura, como suas óperas e romances.

Chico escreve a tanto tempo que podemos comparar até as idades das suas obras pelo envelhecimento do papel.

Ópera do Malandro, Fazendo Modelo, Gota d’Água, Budapeste, Leite Derramado e o mais recente O Irmão Alemão são todos grandes exemplos da contribuição inegável de Chico para as palavras impressas entre capas duras de livros. Mas antes de escritor, Chico Buarque é músico, cantor e principalmente compositor.

Como este carioca leva a sério esta história que uma boa música deve ser acompanhada de uma bela poesia, sua contribuição literária pode ser contada muito antes de ter seu nome e fotografia deixada na orelha de um livro. Ser este poeta de canções, que é, foi algo que lhe caiu bem muito antes de escrever livros. Já em suas músicas Chico mostrava porque sabia fazer da língua portuguesa uma ferramenta inesgotável de contar as mais poderosas histórias.

Aproveito esta oportunidade para destacar algumas canções do Chico que oferecem uma notável contribuição para a literatura, já que recebeu uma honraria com o nome do maior escritor em língua portuguesa que já existiu.

O livro A Ópera do Malandro foi vendido com cópias das partituras originais nas últimas páginas.

Agora eu era o herói

João e Maria, aqui como música final do show Carioca Ao Vivo, gravado como um álbum por Chico.

Em um arranjo acompanhado por uma melodia de flauta, Chico conta a história profundamente delicada de crianças em um teatro de brincadeira. Como a inocência daqueles que descobrem pela primeira vez a imaginação, João e Maria é uma canção que fala de um amor infantil que se mostra entre frases de efeito cinematográfico, entre crianças que se passam pelos ídolos que assistem em filmes e suas televisões.

O compositor já confirmou em algumas entrevistas que não teve intenção alguma nesta canção de colocar nenhuma mensagem de crítica política embutida nos versos, embora muitos que analisaram a letra da canção insistem em referências vagas. Os versos evoluem de uma inocência profundamente feliz para uma melancolia leve, onde a eminência da separação daquelas crianças parece ser um sinal do final das suas infâncias.

Você dá para qualquer um!

Geni e o Zepelim na versão do show Na Carreira.

O cenário se constrói com riqueza de detalhes desde os primeiros versos. Os amantes são descritos com a mesma crueza que o cenário deplorável em que a personagem nasceu, cresceu e viveu. Assim é Geni e o Zepelim, canção que conta a história de uma mulher que é descrita com todos os adjetivos carregados de julgamento que uma sociedade pautada em conservadorismo poderia pensar.

O retrato pintado não é necessariamente um retrato do Brasil ou do Rio de Janeiro de Chico, Geni é uma personagem que vive no cenário da realidade humana. A cidade que Chico descreve, com seus personagens tão bem desenhados em torno de sua autoproclamada nobreza, são um reflexo do que a música acusa como uma reação humana comum a esta situação.

Mas Chico toma o cuidado de demonstrar, em vários pontos cuidadosamente escondidos entre as palavras de seus versos, os reais motivos que levam a personagem principal a ser rejeitada daquela maneira por aquele grupo social. O verso diz: ela é um poço de bondade/e é por isso que a cidade/vive sempre a repetir.

Então chegam conhecidas pedras para a Geni. Assim como muitas canções do Chico, Geni e o Zepelim permite que a história tenha um significado crítico diferente em cada um dos diversos pontos de vista em que podemos acompanhá-la. Afinal o tema não é claro entre ser uma canção sobre uma garota perseguida por um grupo de conservadores, ou ser uma canção sobre a natureza profundamente cruel e egocêntrica de qualquer sociedade humana.

Geni também pode ser uma forma delicada de mostrar como o mundo pune os ingênuos e os benevolentes, com a crueldade tradicional de uma construção quase selvagem, em uma competição por hegemonia social, onde pessoas como Geni atrapalham a disputa.

Se instalou como um poceiro

Aqui pode-se ouvir Teresinha, logo em seguida de O Meu Amor, no show Na Carreira, como um medley.

Como fez muito durante a sua carreira, Chico desenha a tristeza da valsa Teresinha (o nome aparece muitas vezes escrito também como Terezinha, com a letra Z) em volta de uma personagem feminina que narra a história em primeira pessoa. O cantor sofreu incontáveis críticas e represálias por insistir em escrever canções em vozes femininas, mas atualmente é impossível estudar sua obra sem considerar esta parte tão grande e importante dela.

Na valsa em questão, o sofrimento da mulher que tanto tenta entender o amor é a linha narrativa, através da forma como a personagem interpreta em sinais dos mais diversos entre os diferentes, porém semelhantes, homens que cruzaram o seu caminho. Como quem enumera motivos para um resultado inesperado, Teresinha fala do primeiro que chegou, como quem vem do florista.

A história mostra como o amor não nasce no coração da personagem, mesmo com a sua cabeça lhe forçando a estar aberta a interpretações padronizadas, que justificam as maldades que os homens fazem com as mulheres. Além da história de Teresinha, a canção é um retrato de uma misoginia estrutural que todos os tipos de homens aplicam nas mulheres que se relacionam, já que o autor consegue mostrar o quão equiparados estão os dois primeiros, o que trouxe flores e o que veio do bar.

Só que um rosto do amor aparece nesta canção também, quando Chico delicadamente aplica uma definição de amar como gostar daquele que não trouxe nada/também nada perguntou. Mal sei como ele se chama/mas entendo o que ele quer/se deitou na minha cama/e me chama de mulher.

O único sinal de harmonia que transmite felicidade na canção acontece precisamente no final, quase como se o momento em que a personagem pudesse ser feliz, fosse o mesmo em que a valsa deixava de ter motivo para existir.

Início da partitura de Teresinha, aqui identificada como Terezinha, nos fundos do livro Ópera do Malandro.

Se nos amamos como dois pagãos

Eu Te Amo na versão do show Carioca Ao Vivo.

Eu Te Amo é uma canção que conta a evolução de uma relação que vai do amor à indiferença. Chico consegue na história, acompanhado pela harmonia que mistura felicidade e incômodo, mostrar como um amor pode nascer poderoso e fazer com que os personagens se recusem a acreditar no seu final.

A casa do casal é descrita em detalhes entre as palavras cuidadosamente escolhidas por Chico, quase como uma maneira de demonstrar que todo o cenário construído na história era propenso ao amor, que deixou de existir sem nenhuma explicação. O título da canção reflete uma frase falada, e provavelmente pensada pelos personagens também, refletindo em suas insistências em salvar o amor morto.

Não se afobe não, que nada é pra já

Futuros Amantes no show Carioca Ao Vivo.

Em uma imaginação da imaginação, Futuros Amantes conta a história de um possível casal, que não se sabe se existe ao certo, imaginando um cenário na imaginação da relação. Com uma descrição bastante caricata de um Rio de Janeiro do futuro, Chico utiliza de recursos de uma narrativa de escape para falar de amor.

A personagem fala do seu amor como quem ao mesmo tempo revela desejo e falta de vontade, amores serão sempre amáveis indica que o amor que ela carrega possa talvez esperar o futuro, seja lá como ele possa ser, para se materializar.

Te perdoo porque choras quando eu choro de rir

Mil Perdões em uma linda versão no show Carioca Ao Vivo.

A lenta e calma canção Mil Perdões pode ser vista como uma versão mais leve da clássica Olhos nos Olhos. A personagem é mais uma vez uma mulher que consegue enxergar além da relação abusiva em que ela está, porém desta vez com um toque de uma vingança menos triste.

Ao invés de um agressivo controlador, o personagem masculino aqui é descrito como uma figura verdadeiramente patética, como aquele que utiliza de um ciúmes desesperado para manter contigo uma mulher que claramente não está feliz mais na relação. A imagem pintada na canção é muito forte, oferecendo todos os detalhes de uma libertação feminina e de uma abertura para uma nova vida.

Chico Buarque canta Olhos nos Olhos com Maria Bethânia. Com comentários dos músicos.

Filha do medo, a raiva é mãe da covardia

Vídeo oficial d’As Caravanas.

As Caravanas é uma daquelas canções que é tão realista que incomoda, e Chico conseguiu ter algumas destas em seu repertório. O cenário que ele descreve realmente acontece pelas praias do Rio de Janeiro, mas as nuances que a maioria das pessoas escolhia ignorar, por não querer lidar com seus próprios preconceitos, são escancaradas na narrativa da canção de um jeito único.

As referências escolhidas, mais uma vez a dedo por Chico, mostram cada detalhe de uma construção social doente, que permite que situações deste tipo de loucura tremenda, continuem acontecendo com toda a normalidade pelas praias cariocas. Chico mostra na sua história toda a hipocrisia das versões oficiais que justificam as ações de higienização que os governos cariocas vêm tentando fazer de suas chamadas áreas nobres.

O retrato da escravatura brasileira que a canção mostra causa um desconforto providencial, trazendo um lado diferente para uma narrativa social viciada em interpretações que preservam as exclusões sociais. Assim como fez em Sinhá, canção que escreveu com João Bosco, Chico traz as histórias escondidas para tona com As Caravanas.

Vídeo oficial de Sinhá, com Chico Buarque e João Bosco.

Todo dia ela faz tudo sempre igual

Cotidiano de Chico Buarque.

Esta canção é uma daquelas que todo mundo conhece, mesmo que não consigam se lembrar do seu nome. Este fato só oferece um novo tom de ironia ao seu nome, Cotidiano. Chico descreve uma família trabalhadora brasileira que pode ser dita como comum, porém fugindo de estereótipos que reduzem pessoas deste tipo a um tipo de homens simples.

A personagem feminina se mostra com uma personalidade forte e profundamente marcante para o protagonista, que canta em primeira pessoa. O cotidiano desta família é desenhado como se o samba tocasse em um eterno loop durante suas vidas. A tristeza de uma situação desfavorável é mitigada por uma sensação de felicidade natural naquele casal comum.

Chico deixa pequenas críticas sociais jogadas como migalhas de pão que mostram um caminho interpretativo, por toda esta letra. Desde a sacodida as seis horas da manhã, até o meio-dia em que o personagem trabalhador só pensa em dizer não para a exploração que sofre. Então ele se lembra da vida para levar/e me calo com a boca de feijão.

Catando a poesia que entornas no chão

As Vitrines no show Carioca Ao Vivo.

A solidão se torna não só real como sensível nesta poesia de Chico. As Vitrines é um melancólico retrato de uma realidade vazia. Entre todas as metáforas, as vitrines trazem o reflexo do que se mostra, mas não se vê. A cidade é mostrada aqui como aquilo que a tristeza interior engole, num ato de introspecção forte.

O grande diferencial é que se trata de uma canção existencialista tratada como um diálogo, com um segundo personagem que não tem rosto e nem história, mas que se coloca como apenas um ser ausente. A poesia que reflete a poesia como um ato solitário é quase um apelo de um artista contra a chamada vida de artista, que o traz aonde ele está.

Acho que fui deputado, acho que tudo acabou

Início do show Na Carreira, com Velho Francisco.

Uma digna música de introdução, Velho Francisco é a música da banda chegando em um trem. O cenário se constrói na nossa cabeça com a ajuda do instrumental, dependendo menos das referências na letra. Com essa toada, Chico monta um cenário de um mundo inacabável de possibilidades.

É fácil de enxergar o personagem como um viajante entusiasmado que pelas janelas de um trem observa as tantas possibilidades da vida. Porém este cenário não é de um personagem sozinho, é quase como uma evolução contínua de muitos personagens semelhantes, ao longo do tempo, que vem e voltam, com a única certeza: vida veio e me levou.

Oh Bela, faz da besta, fera, um príncipe cristão

A Bela e a Fera no show Carioca Ao Vivo.

Embora não seja conhecido por isso, Chico fez excelentes músicas com insinuações mais explícitas. A Bela e a Fera é uma canção que consegue transmitir o ritmo de uma relação intensa entre tantas metáforas, das mais finas às mais clichês, arranjadas com toda a certeza propositalmente pelos autores.

O personagem galanteador é um poeta que parece ser brilhante e ridículo no flerte ao mesmo tempo. Parte da peça O Grande Circo Místico, a música foi uma parceria entre Chico e Edu Lobo, ilustrando a história da paixão que um aristocrata austríaco tem por uma jovem acrobata.

Sempre que esta valsa toca, fecho os olhos, bebo alguma vodca, e vou…

Vídeo ofícial de Nina.

Escolho a música Nina como uma forma de ilustrar o quanto Chico se aventurou em diversos estilos musicais. Pode-se pensar que se trata de só mais uma valsa, algo que não é novidade nas obras do velho Francisco, mas é uma valsa tão russa que se sente uma melancolia digna de um inverno triste de São Petersburgo.

A personagem ganha uma vida que evolui com as cadências da canção, porém sem se perder a sensação forte de tratar-se na verdade de uma idealização do protagonista apaixonado, que conta a história de Nina no poema da música. As descrições da cidade russa são vívidas como as de um bom filme, fazendo com que o ouvinte se situe em um mundo que fica entre um carioca e uma russa.

Um cenário bastante complexo que Chico conseguiu desenhar com uma construção musical das mais clássicas que se pode imaginar.

E quando nosso tempo passar

Tua Cantiga deixa um assombroso tom de despedida, que assusta os fãs mais fieis do velho Francisco.

Termino com a canção que inaugurou o seu último álbum de músicas inéditas, que com tão pouco tempo de vida já tinha recebido todo o tipo de críticas que se poderia imaginar. Falo de Tua Cantiga, uma bossa com fortes tons de jazz que conta uma antiquada história de amor.

Acusado de velhice justamente por atingir seu objetivo, Chico conseguiu nesta canção pintar uma narrativa perfeita de um velho senhor apaixonado que é obrigado a conviver com o mundo que já não é como conhecia, e vislumbra a possibilidade de realizar o último amor de sua vida, antes de morrer.

Chico desenhou um cenário impecável de uma relação antiga, um adjetivo melhor que antiquada, nesta canção. Mais uma vez, Chico pôde demonstrar que se enganam aqueles que não conseguem ver as narrativas em suas canções, insistindo em sempre imaginar que o cantor deve apenas cantar sobre a sua própria vida.

O mais belo da literatura Buarque, é que seu trabalho poético é tão vasto e suas referências tão abrangentes, que não se pode fazer interpretações definitivas de sua obra. Ouvir uma música do Chico é sempre correr o risco de se deparar com um detalhe narrativo ignorado, e por isso reimaginar completamente a história da canção.

Afinal, nenhuma das interpretações que deixei acima tem a força para se declararem como verdades absolutas sobre os significados das canções. Salve raras exceções quando o próprio Chico explicou suas canções, o trabalho de compreender suas obras continua vindo do esforço interpretativo de seus fãs.

Se pudesse perguntar ao Chico o significado real por trás da composição de cada uma destas canções que citei, poderia ter informações mais críveis das intenções do compositor ao escrever. Mas a beleza da literatura está justamente no fato de não haver monopólio interpretativo para ninguém, nem mesmo para quem cria uma obra.

E as obras de Chico são uma fonte inesgotável de histórias de todos os tipos, que parecem conseguir se mostrar diferentes a cada vez que as observamos e escutamos. Também por isso entendemos o motivo de ter ganho o Prêmio Camões, pois somente nas oportunidades de discussões em interpretação de texto, vemos mais do que justificativas plausíveis para se dizer que Chico realmente contribuiu para o enriquecimento da língua portuguesa.

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Daniel Muñoz
Soixante-huit

Um dia jornalista, hoje historiador. Escrevo só sobre o que quero e quando acho que tenho algo a dizer. Para mim é importante a diferença entre Ochs e Dylan