Personagens como máscaras do criador

Daniel Muñoz
Soixante-huit
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5 min readMay 31, 2019

Criações tendem sempre a carregar algo do seu criador, talvez por isso o mundo continue teimando a crer que se tudo foi criado por algum Deus, ele deve ser semelhante àqueles que se julgam as suas mais primorosas criaturas. Esta relação não é muito diferente entre pessoas e as suas obras. Personagens refletem pessoas, mas também refletem aquele que os dá a vida.

Este deve ser um dos fatores que mais se coloca contra qualquer história contada que se diga totalmente não-ficcional. Por outro lado, há muitas histórias profundamente verídicas que recebem um banho de ficção em nome de esconder e preservar alguém que possa ser lesado de alguma maneira com a história a ser contada.

E isso não é uma exclusividade das narrativas literárias, outros formatos exploram muito bem a criação de personagens que agem como substitutos do real protagonista, que prefere se manter escondido.

Ao contrário do que comentei na resenha sobre a obra de Chico Buarque, que soube construir personagens que não necessariamente tinham alguma ligação com a sua pessoa, gostaria de destacar como alguns artistas utilizaram de ferramentas narrativas para falar sobre sentimentos pessoais de uma maneira mais indireta, em suas canções.

Sad Lisa — Cat Stevens

Álbum Tea for the Tillerman, de Cat Stevens, que inclui a canção Sad Lisa.

A amiga chamada Lisa existia, assim como Stevens descreveu na época, mas a música era muito mais sobre o que ele sentia, do que sobre sua amiga. A tristeza que ele colocou em Lisa era uma que morava nele. O compositor materializou toda a sua subjetividade na personagem que se tornou protagonista desta triste música de piano e voz.

Pela forma como o músico conta, não parece ser uma ação deliberada refletir os seus sentimentos na sua personagem, mas algo natural do ser humano. A música no final se torna uma representação de como cada visão que podemos ter do próximo sempre carrega junto aquilo que temos em nós.

Stevens observa Lisa triste porque seu olhar estava carregado de tristeza, não é à toa que escreveu a canção de uma forma profundamente melancólica.

Versão de Sad Lisa do show Majikat de Cat Stevens, em 1976.

Eleanor Rigby — Paul McCartney

Ao contrário da Lisa de Cat Stevens, Eleanor Rigby não existiu como pessoa, ao menos Paul McCartney não tinha ciência de alguém com este nome quando escreveu esta música. Conforme ele mesmo conta, a história é baseada nas velhas senhoras solitárias que viviam próximo de sua casa, quando ele morou, ainda criança, nos velhos alojamentos do Reino Unido, construídos para dar refúgio às pessoas que não tinham residência depois da Segunda Guerra Mundial.

Estas velhas senhoras eram na verdade as viúvas da guerra, que Paul ainda menino convivia com e ouvia as histórias que elas tinham para contar. Quando criança também se incomodava com a solidão que sentia, talvez por isso tinha tanta empatia com aquelas velhas senhoras. Ao resolver contar esta história, Paul acaba se baseando em lembranças do seu passado para construir a narrativa, ao invés de uma personagem realmente construída sobre a imagem de uma senhora específica.

Outros sinais podem aparecer pela maneira com o Beatle tinha, e ainda tem ao que tudo indica, de pensar em nomes para os personagens de sua canção. Como conta o biógrafo Bob Spitz, McCartney constrói as melodias das canções primeiro, com quaisquer palavras que sirvam, e depois pensa nas letras (algo dito bastante comum entre músicos, porém não existe uma pesquisa real sobre isso, para confirmar este palpite bastante popular).

Eleanor Bron com George Harrison no filme Help! Foto de Divulgação.

Esta forma de compor foi o que rendeu o fato do primeiro nome da icônica canção Yesterday ser na realidade Scrambled Eggs, ovos mexidos em tradução literal. No caso de Eleanor Rigby, Paul buscava um nome para encaixar na melodia e gostou do nome Eleanor por ser o nome de uma atriz que trabalhava com os Beatles naquele período, Eleanor Bron.

Paul com seu pai Jim McCartney em Liverpool. Foto de Mirrorpix, reproduzida do livro The Beatles — A Biografia, de Bob Spitz.
Lennon e McCartney em 1963. Foto de Jane Brown, Camera Press de Londres, reproduzida do livro The Beatles — A Biografia, de Bob Spitz.

O sobrenome veio de uma coincidência ainda maior, que era o fato de o músico estar na época na região de Bristol, na Inglaterra, e ver uma loja chamada Rigby. Segundo ele também conta, originalmente o segundo personagem da canção chegou a ser Father McCartney, mas foi trocado porque Paul não quis que o personagem se tornasse o seu pai. Então com a ajuda de Lennon, buscando em uma lista telefônica, chegaram ao nome que ficou na canção, Father McKenzie.

Esta história mostra em quantos fatores a história e a vida pessoal de McCartney permeia a narrativa de sua personagem. Afinal a canção é além de uma pequena história, quase um sinônimo da solidão de uma vida em que nenhum dos objetivos e sonhos se realizam.

Murderer of Blue Skies — Chris Cornell

Chris explica a canção Murderer of Blue Skies para Cameron Crowe.

Esta canção de Chris Cornell não tem personagens com nomes, mas como é a linha da maior parte do seu álbum Higher Truth, trata-se de uma história ficcional contada em forma de canção. Cornell não viveu uma situação em sua vida como aquela descrita na canção, porém a construção da história está intimamente ligada à vida do músico grunge.

Famoso por ser um exímio contador de histórias tristes, Cornell batalhou durante toda a sua vida com uma forte depressão. A figura do amor aparece demais com um ar de derrota em suas músicas, como podemos notar em Like a Stone e Arms Around Your Love, por exemplo.

Explicando a composição desta música, Cornell conta que provavelmente é um reflexo de uma forma de ver o mundo que o acompanhou por ter crescido em um ambiente com pessoas adultas em relações que não funcionavam. Como uma criança que se culpa, Cornell leva esta música ao ápice deste sentimento, como uma tentativa frustrada de se desvencilhar de uma paixão, porém sem conseguir fazer isso por sempre enxergar a culpa em si, sendo incapaz de culpar o próximo.

Pode parecer estranho que estas canções tenham sido construídas desta maneira, para depois os próprios artistas revelarem seus caráteres autobiográficos ocultos, porém ainda existe um motivo para falar através de personagens. Podemos ver que por mais que saibamos que existe o criador falando, a sensação do ouvinte, ou leitor, não é a de uma pessoa admitindo sentimentos, mas de um teatro de emoções, atrás de máscaras protetoras.

Este recurso deve ser um dos mais velhos que as pessoas têm acesso, para falar sobre suas vidas sem se expor demais. Afinal uma história, por mais triste que seja, acaba sendo sempre mais interessante de ser ouvida até o final, do que um simples lamento de alguém que sofre.

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Daniel Muñoz
Soixante-huit

Um dia jornalista, hoje historiador. Escrevo só sobre o que quero e quando acho que tenho algo a dizer. Para mim é importante a diferença entre Ochs e Dylan