Relato sobre o incêndio no Museu Nacional e como isso foi noticiado por jornais e pessoas

Daniel Muñoz
Soixante-huit
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10 min readSep 7, 2018

No começo da noite do último domingo, segundo dia do mês de setembro do nosso presente ano, um incêndio iniciou-se, se alastrou e consumiu o Museu Nacional, que fica na região norte da capital carioca. As imagens captadas mostram a magnitude do fogo e com isso, já antes mesmo da averiguação do local, presumia-se corretamente que o acervo ali contido, que era de cerca de vinte milhões de peças e artefatos, seria destruído em sua totalidade.

Pelo horário do ocorrido, cerca de dezenove horas e trinta minutos, sabe-se que o Museu estava fora do seu horário de funcionamento ao público. Nas premissas estavam, como previsto, apenas os vigias do local, estes que eram quatro, e saíram todos a tempo sem registrar ferimentos.

Esta informação fez com que muitas publicações e reportagens sobre o ocorrido utilizassem da seguinte frase no teor do seu relato: não houveram vítimas registradas. Obviamente a frase se mostrou dentro de variações e paráfrases, mesmo que tenha sido repetida literalmente em várias publicações, o sentido aqui previsto é o uso destas palavras de maneira semântica, não literal.

Para preservar a compreensão chega o momento em que julgo necessário revelar minha intenção por trás deste texto. Quero aqui tentar, fora do âmbito de um jornal ou publicação jornalística, fazer uma pequena reportagem sobre o ocorrido e também sobre a relação da imprensa com este e outros casos que ilustram o ponto a ser defendido como tese aqui.

Essa honestidade, ao meu ver, cabe ao jornalista para preservar a relação de confiança que o leitor precisa ter para assimilar informações que são reveladas nos relatos que chamamos comumente de reportagens. Ainda sobre uma honestidade de escrita, avalio que mais corretas foram publicações que evitaram o uso da frase citada dois parágrafos acima.

É um fato dizer que não houveram vítimas no que ocorreu no Museu Nacional? Sim, mas, sob uma perspectiva apenas. O que isso significa? Que pontos de interpretação bastante razoáveis e previsíveis pediriam para um uso diferente da palavra que blindariam a reportagem de uma indesejada interpretação diversa.

É possível sempre se resguardar de interpretações diversas? Por definição, não. A língua por mais bem definida que seja nunca foi e nunca será uma ferramenta exata, com o acréscimo de influências culturais e figuras de linguagem, ela perde ainda mais exatidão.

Levanto esse ponto para simplesmente dizer, não cabia ao jornalista que escreveu uma nota ou reportagem sobre o caso pesar o uso da frase e avaliar se ela não poderia causar uma distorção? Porque? Pelo fato de uma leitura mais desconfiada pensar que poderia existir uma intenção do autor do texto em afirmar que não houve ali naquela situação perdas que causassem reais vítimas.

Essa interpretação seria de um grande perigo, pois quando evoluímos na análise do ocorrido vemos que as vítimas do acontecido são inúmeras. Em princípio, a perda de um acervo de peças que, quase pelo motivo de ocuparem o local que ocupavam, eram inestimáveis e insubstituíveis.

Isso é um fator que aponta vítimas no caso? Sim, afinal muitos pesquisadores dedicaram anos de suas vidas e trabalhos ao que foi perdido ali naquele incêndio. A queima de uma instituição como aquela não perde apenas o que é histórico, mas toda ciência que encima daquelas peças criava pensamentos originais e futuros.

Não me estenderei explicando o por que deste fator já que fugiria demais do assunto inicial e faria deste texto muito grande e desfocado para a intenção que tenho como autor. Eu como jornalista acredito que a intenção do autor, principalmente dos jornalistas, deve ser a mais clara desde o princípio.

Por isso o questionamento sobre o uso da frase citada é de tamanha importância, já que minha inclinação pessoal e um bom senso vigente me dizem que os repórteres que escrevem tais frases em suas matérias não tinham intenção de possibilitar tais pontos de vista. Também é importante lembrar, o que sei de fato pois já fui repórter e conheço o meio de produção de notícias, que tais notas iniciais sobre o ocorrido foram feitas com extrema velocidade, como manda o ofício jornalístico, e por isso os profissionais não tiveram sequer tempo hábil para avaliar construções frasais e seus variados sentidos, como podemos fazer quando escrevemos artigos longos ou livros.

Porém a atenção para este tipo de escrita, para aqueles jornalistas que procuraram diferentes construções de texto, é uma enorme qualidade. Afinal, ela mostra que no calor de um momento trágico e no alto estresse de uma produção urgente, puderam ainda aplicar o melhor uso da língua e do seu ofício para oferecer o relato que ofereceram à população.

Voltando ao ocorrido, perdeu-se quase a totalidade das vinte milhões de peças que ali estavam, conforma já falei neste texto, dentre esse material haviam fósseis, entre estes o primeiro fóssil humano das Américas, a chamada Luzia, porém até o momento em que escrevia este texto, ainda existia a possibilidade de seu crânio ser uma das poucas peças recuperadas e salvas do incêndio.

Haviam também múmias e artefatos egípcios coletados e colecionados pela antiga família imperial brasileira, uma extensa coleção de peças indígenas e livros raros. O Museu tinha recentemente completado duzentos anos de existência e havia sido casa dos monarcas brasileiros e palco de vários importantes eventos para a história brasileira, ao menos àquela contada como principal vertente da história deste país.

Relatos de pessoas que trabalhavam no Museu e algumas que inclusive estavam presentes quando ocorreu o fogo que veio a consumir o prédio falam sobre grandes perdas científicas em estudos de antropologia e linguística nacionais, tanto para a evolução da língua portuguesa no Brasil como, e talvez com maior importância pela impossibilidade de recuperação, para línguas indígenas dos nativos brasileiros de antes da colonização lusitana.

Até a escrita deste texto a causa do incêndio foi dada como desconhecida, tendo como uma de duas hipóteses: um grande curto circuito elétrico ou a queda de um balão. A primeira possibilidade guarda maior probabilidade de veracidade até então, já que logo após do ocorrido, voltaram à tona notícias que alertavam que o Museu já sofria com muitos problemas de gestão financeira e operava sem o alvará do corpo dos bombeiros.

Aqui existe mais uma frase que muitas reportagens utilizaram para falar do ocorrido, que o Museu tinha problemas de gestão. Note que eu fiz questão de utilizar-me do adjetivo financeira quando escrevi, mas a maioria dos reportes não fez como eu. Pode-se atribuir isso ao fato de muitos associarem a credibilidade de um bom jornalismo ao não uso de adjetivos, pois estes carregariam muito juízo sobre os fatos.

Eu julgo essa posição muito comum dos jornalistas como equivocada, já que adjetivos são um instrumento da língua apenas e sozinhos não definem se um texto foi bem ou mal traçado e se ele tinha boas ou más intenções. Nesse caso inclusive, avalio que o não uso do adjetivo acaba fazendo com que interpretações de críticas à gestão direta do Museu ganhem mais força do que intepretações de críticas ao financiamento público que, ao reduzir drasticamente nos últimos anos, tenha tido a possibilidade de causar o ocorrido.

Aqui temos um ponto de enorme importância, pois antes mesmo do que julgava ser adequado, devido ao respeito à comoção que ocorreu pelo incêndio e todas as perdas que isso causou ao país como um todo, muitas pessoas entraram em discussões sobre a política de cortes da atual gestão federal ter ajudado a causar o acidente que resultou na tragédia.

Por opção de revelar as minhas inclinações como autor, é necessário que aqui eu diga, ou reitere para quem já me conhece, que sou e sempre fui da opinião de que o atual governo brasileiro é fruto de um golpe de Estado, não foi eleito e é, portanto, ilegítimo para tudo que fez durante sua gestão. Porém não quero me estender nesse assunto para novamente não divagar demais no ponto principal.

Existe um fato com o qual não se discute, a gigante queda do dinheiro repassado para manutenção do Museu. Dados da Consultoria de Orçamento da Câmara dos Deputados apontam que entre 2013 e 2014 os valores variaram entre 940 e 980 mil reais, em 2015 houve uma grande queda, chegando à cifra de 638 mil reais.

Em 2016 houve um incremento para cerca de 840 mil reais novamente. 2017 registrou o retorno à escala de 640 mil e em 2018, até o mês de agosto, havia sido repassado valores da baixa escala de 98 mil reais. Como todo bom repórter, mostrei a priori minha fonte, para que o bom leitor possa conferir o que estou dizendo, se julgar que deve desconfiar (e espero que julgue, sempre devemos desconfiar).

Esses números dizem muito e mostram que cortes que ocorreram desde o segundo mandato da então presidenta Dilma Rousseff são apontados como um potencial sintoma da doença que foi a queima do Museu. Falar isso é um fato, o reinvestimento em 2017 pode ser visto como uma tentativa de revalorização do Museu, isso também é um fato, porém claramente condicional.

A cifra do ano de 2018, no entanto, é tão baixa que gera o principal choque nas análises destes números. Jornalistas com intenção de atacar a atual gestão adorariam fazer disso manchete. Seria factual? Sim. Justo? Depende.

Por que? Porque a justiça de fatos interpretativos vem da possibilidade de você permitir que o leitor chegue às suas próprias conclusões. Claro que como já falamos várias vezes aqui, o autor tem intenções, o jornalista também, sempre têm e sempre terão.

Mas cabe a interpretação final sempre ao leitor. O que mais posso fazer como autor é ressaltar mais informações que julgo pertinentes ao caso, como por exemplo a desestabilidade política intencional causada pela oposição que veio a apoiar o processo de impeachment que culminou no golpe de Estado que empossou Michel Temer.

Essa desestabilização começou justamente no ano de 2015, primeiro ano do segundo mandato de Dilma. Posso dizer que isso diretamente afetou o orçamento do Museu? Não. Posso inferir uma relação? Posso. Deve acreditar em mim? Cabe o seu julgamento.

Afinal o que eu escrevo carrega meus juízos de valor e o que você lê, como leitor potencial, deve carregar os seus juízos. Várias outras informações concernem esta história, é textualmente impossível falar de todas em um único material, por isso repórteres sempre trabalham com recortes da realidade.

Seria isso um erro? Não, pois o público não só pode como deve sempre procurar mais fontes e fontes alternativas, quando deseja ter uma posição realmente embasada sobre um acontecimento.

Opinião do escritor repórter

Saindo um pouco do decoro do jornalismo, como pessoa, amante da ciência e dos estudos humanos, e brasileiro com mais apreço por este país do que muitos que me conhecem julgam, sinto que a queima do Museu Nacional foi uma perda mais do que terrível.

A simbologia por trás do que houve, para falar de um fator de menor importância, reflete o quanto se apaga da história de um país uma sucessão de atos egocêntricos que culminam na exclusão e extermínio do povo, chegando potencialmente ao fim de sua história e identidade de nação.

Concordo que o Museu não representava uma identidade completa e que engloba com plenitude o diverso país que é o Brasil, mas este fazia parte com grande valor e sua perda não pode ser julgada pequena.

A ciência e a produção de pensamento brasileiras também sofrem um golpe de difícil recuperação, em um momento em que infelizmente já estavam sendo atacadas cruelmente pelos já citados cortes do atual governo.

O sentimento humano de indignação faz com que no ápice da raiva procuremos culpados, eu como todo outro ser humano que com lágrimas nos olhos assistiu às chamas em sua festa infernal, procurei culpados. Minhas inclinações políticas e meus valores influenciaram na minha escolha de culpados? Mas claro!

Obviamente fariam isso, que ridículo tornou-se esse hábito de cobrar imparcialidade, especialmente de pessoas do âmbito progressista, quando conservadores podem se esconder em seus imorais símbolos de repressão, sejam de cunho religioso ou de sistemas econômicos/sociais, para destilar suas opiniões tão enviesadas que mal mantêm-se de pé.

Como jornalista sou justo com o que escrevo, como pessoa sou sentimental com o que falo, porém ainda mantenho-me justo com o que falo. Não destilo inverdades para defender meu ponto e isso me faz jornalista, mesmo quando passionalmente e com raiva clamo por justiça pela história do meu país arder em chamas de descaso.

Em um jornal existe um decoro de fala, na fala de uma pessoa não. A língua assim como nós tem muitas faces que permitem diversos usos. Sejamos justos com o direito das pessoas em se expressarem conforme desejam, principalmente em momentos de tragédia.

Pois a abertura para crítica deve nascer quando nascem as mentiras e manipulações, não quando nascem as opiniões. Se justo falei que era um ponto de vista, conteste-o, não julgue seu valor de existência. Pois julgar valor não retira sua força, mas contestar e comprovar a contrariedade de um ponto de vista, isso sim muda opiniões, e aí sim, você convence.

E quando a fala passa dos limites e ataca, ataque de volta, porque ela terá liberdade de gritar, mas terá que arcar com o tanto que escutará. Se todos formos um pouco mais adultos, veremos que falar de maneira justa, correta e respeitosa, não é tão difícil.

Além de que pessoas que saem destilando ódios, preconceitos, enaltecendo seus privilégios ou atacando minorias, podem até parecer que estão tendo opiniões, mas estão apenas revelando o quão rasas são, e merecem ser destruídas no campo das palavras, pois este sim, convence, já que não há argumentos quando se é desmentido na frente de toda a praça.

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Daniel Muñoz
Soixante-huit

Um dia jornalista, hoje historiador. Escrevo só sobre o que quero e quando acho que tenho algo a dizer. Para mim é importante a diferença entre Ochs e Dylan