Tiros importados por votos

Daniel Muñoz
Soixante-huit
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5 min readMar 15, 2019
Quais os limites das liberdades dos liberais que querem tudo proibir, ao mesmo tempo que amplificam as suas liberdades de ceifar a humanidade alheia?

A primeira reação das pessoas é: pegar os efeitos e transformar em causas. Não foi diferente nesta última quarta-feira, dia treze de março de 2019, quando o Brasil resolveu importar de vez o modelo do partido republicano dos EUA. Já tínhamos quase todos os tipos de violência, agora teremos também o recém adquirido modelo de assassinatos em massa em escolas.

Importamos também com muito sucesso todos os discursos prontos, fabricados naquele país pela fundação com o patético nome National Rifle Association (NRA), que literalmente significa Associação Nacional dos Rifles, mas o nome prático para entendermos o que se trata deveria ser: lobby da indústria de armas.

E como toda boa indústria, ela quer dinheiro. Ah, mas ela também defende os princípios tal e tal e tal… Na verdade não, ela só quer dinheiro, assim é a lógica do capital e não são discursos amenizadores que vão mudar isso. Então você vai usar da tragédia das mortes de crianças para discutir um modelo político? Na verdade, não, vou discutir a hipocrisia daqueles que não admitem os reais motivos por trás de seus desejos incontroláveis em alimentar o monstro que é esta indústria.

Afinal não serei pedante de encampar discursos antiempresariais radicais, obviamente o modelo de competição e fomento de produção funciona em vários setores. Acontece que cabe a representantes políticos minimamente sensíveis, regular os interesses particulares de grupos de empresários, que ameaçam o bem comum da população.

É por isso que temos leis que obrigam embalagens de cigarro a sinalizar que aquele produto mata quem o consome. Era por isso também que tínhamos boas regulamentações contra armas e a permissão de cidadãos adquiri-las e carregá-las por aí.

Então entre em cena o salva-pátria do último processo eleitoral, com seu moralismo afiado e seu discurso alinhado com todos os ódios que esta sociedade que adora ser mesquinha, gosta de carregar. A panaceia prometida contra a violência urbana do Brasil, surpresa, armar a população.

Mas ele nem teve chance de modificar a legislação ainda! Vão dizer. Só que assim como os vazios discursos importados da NRA, o discurso de ódio e de fomento ao armamento do nosso presidente já pegou. Pegou tanto que dois adolescentes resolverem armar-se e entrar em uma escola, deixando para trás dez mortos e muitos feridos. Ao final assassinaram um ao outro.

Então chegam os discursos prontos: o sargento que estava no local de prontidão já soltou: é um atentado de alguém que não tem o domínio de suas faculdades. Pouco tempo depois começam a pipocar os comentários de integrantes do governo, dizendo que não era bem um problema das armas, mas de quem as estava usando.

Afinal a NRA os ensinou a dizer:

Guns don’t kill people, people kill people.

(tradução livre)

Armas não matam pessoas, pessoas matam pessoas.

Eles só esqueceram de mencionar neste velho slogan que a maioria daqueles que matam, ao menos com esta verdadeira escala industrial, utilizam sempre armas de fogo. E mesmo que utilizassem facas de cozinha, ao menos uma faca de cozinha serve para fazer outras coisas, como cortar um pão ou uma comida. Uma arma serve para matar, somente, sem nenhuma exceção.

Ao mesmo estilo do empresário mais ridículo do planeta, que ocupa a cadeira de presidente dos EUA, o nosso presidente mandou apenas uma mensagem vazia de significado, prestando condolências. Vale destacar o erro de escrita em sua mensagem, cuidadosamente colocado para que ele não perca a imagem de do povão, que tanto quer ter.

A mídia televisiva, com fome por audiência, fez absolutamente tudo errado, dando espaço e destaque para as histórias dos assassinos que cometeram tal barbaridade, assim como eles desejavam. A maioria dos meios deu pouco destaque para quem eram as vítimas, infelizmente.

Então começaram as boas e velhas teorias que tudo explicam: o vice-presidente brasileiro culpou os videogames violentos, muitas pessoas falaram sobre bullying. A realidade é que estes garotos são o resultado exato de tudo que o neofascismo que cresce tanto, prega.

Não é uma exclusão social eles serem incels, como chamam um novo grupo de homens que se dizem celibatários involuntários, pois nenhuma mulher quer dar o valor que eles merecem. É no mínimo injusto comparar o que meninos nessa condição sofrem de exclusão, com a exclusão histórica de todos os grupos minorizados que são perseguidos no Brasil.

Mas se desejamos achar um motivo pelo qual estes meninos estão ficando desta maneira, devemos buscar dentro deste movimento que prega a força, a virilidade, a imposição de ideias, a violência, ou seja, todos os valores desta masculinidade tóxica. Aqui sim está aquela que está destruindo as mentes de jovens meninos, desde berço, em quase todos os cantos deste país e do mundo.

É a mesma masculinidade tão defendida por estes frágeis e estourados novos grupos políticos, que reúnem gente com tanto ódio das diferenças que não sabemos como conseguem se relacionar com qualquer pessoa que não queira se submeter a ser seus escravos. O mais interessante é que também importamos a hipocrisia destas figuras patéticas continuarem bradando com tanta vontade que são cristãos, para a desgraça de Cristo, que assiste a sua história ser cada vez mais arrastada pela lama, pelo seu fã-clube.

O mínimo de decência que se espera de pessoas que são honestas com os seus espelhos é reconhecer a origem desta desgraça, saber o que é causa e o que efeito nesta situação. A propaganda armamentista aqui no Brasil visa o mesmo objetivo da norte-americana, vender mais armas para agradar esta indústria, que aqui estava quase morta.

A vida de crianças fica em segundo plano, como sempre ficaram e continuarão ficando. Neste canto também fica a educação, destruída, afinal já até treinamos as pessoas a odiar qualquer um que possa ser um pouco inteligente. O legal mesmo é ser simplão, estar afinado com tudo que é popular no momento, e pensar o mínimo possível. Questionadores são muito chatos afinal.

As crianças, funcionários e professores que perderam a vida, morreram alvejadas por votos de indiferença e ódio, antes mesmo das balas.

Pelo menos vamos importar também as sensatas críticas de alguns americanos:

O apresentador Jimmy Kimmel fez este monólogo para criticar as respostas vazias do presidente Donald Trump ao oitavo massacre, em um ano, que já tinha ocorrido nos EUA, isso no dia 15 de fevereiro de 2018.

O apresentador John Oliver fez esta peça sobre o lobby armamentista nos EUA e as formas que a NRA utiliza para manipular as políticas públicas do país em prol da indústria armamentista. Este programa foi ao ar em outubro de 2017.

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Daniel Muñoz
Soixante-huit

Um dia jornalista, hoje historiador. Escrevo só sobre o que quero e quando acho que tenho algo a dizer. Para mim é importante a diferença entre Ochs e Dylan