A internet ficou velha, mas já existe uma nova internet.

Quando falamos de transformação digital tendemos a acreditar que tudo que a cerca é absolutamente novo. Muitas vezes esquecemos de considerar que, dentro do digital, já existe um velho e um novo mundo.

Leandro Herrera
Somos Tera
8 min readMar 26, 2019

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Gosto da concepção de Benedict Evans, sócio da Andreessen Horowitz (um dos principais fundos de investimento do Vale do Silício), sobre a transição entre eras dentro do digital. Para Evans, estamos chegando ao começo do fim do mundo criado pela internet nos últimos 20 anos.

Lembrei dele na semana passada, quando estive em Austin (EUA) durante o SXSW, um dos maiores festivais de música, filme e tecnologia do mundo. Entre as 6 mil sessões disponíveis, talvez inconscientemente, tenha escolhido aquelas que dialogam com as ideias de Evans – e apontam para transformações ainda mais significativas na forma de interagirmos com o mundo.

O mundo está conectado: o que acontece agora?

A internet, que nasceu quase com um ideário libertário de conectar pessoas em uma grande aldeia global, provou-se uma tecnologia não só viável, como fundamental. No início, houve até quem duvidasse se a tecnologia ganharia adoção massiva.

Um dos palestrantes contou que escreveu um livro sobre a internet em 1992, com a expectativa de publicar em 1993, mas a editora cancelou o projeto porque tinha receio da internet não existir mais. Difícil de acreditar, né?

Tudo virou em 1997 quando Wall Street decidiu apostar na rede e financiou a expansão de empresas digitais. Naquele ano, uma capa da Wired apontava para o longo período de transformação que viria adiante. Hoje sabemos, eles estavam certos.

Mas tinha um problema, que perdurou por algum tempo. Ao longo de muitos anos, empresas promissoras foram criadas para um mundo com poucos indivíduos conectados. Era difícil ganhar escala porque, embora o acesso tenha aumentado, não ocorreu na velocidade esperada pelos investidores e necessária para manter o negócio. Muitas empresas ficaram pelo caminho.

Grande parte do movimento dos primeiros 20 anos da internet, segundo Evans, exigiu relativamente pouco capital, baixa penetração e o mínimo de dados. As empresas que sobreviveram foram aquelas que aproveitaram o digital para entregar valor na forma de informação e serviços. Este foi o velho digital.

Número de usuários de acordo com o relatório Internet Trends. Veja resumo aqui: https://techcrunch.com/gallery/mary-meeker-internet-trends-2018/

Corta para 2019. Grande parte da população mundial já é conectada, seja por smartphones ou redes de wi-fi, e quem ainda não está conectado estará nos próximos 5 a 10 anos. Soma-se a isso o aumento do poder computacional e capacidade de processamento, computação na nuvem e diminuição dos custos de armazenagem de dados, e a internet dos próximos 20 anos começa a se desenhar.

Inteligência artificial não é uma tendência — é a terceira onda computacional e o maior avanço tecnológico da história da humanidade — Amy Webb

Inteligência artificial é o pano de fundo de tudo que vamos experimentar e consumir. E esqueça aqui robôs ou máquinas superinteligentes. A IA já se expressa de forma sutil no dia a dia das pessoas e dos negócios.

Pense que, no “velho digital”, o Yelp fornecia informação para o cliente decidir onde iria almoçar. Hoje, o DeliveryHero – uma espécie de iFood alemão – prevê a decisão e já entrega a comida. Ou, aqui no Brasil, vemos a ascensão do Rappi e o conceito de superapp, que agrega uma série de serviços de conveniência. Entregar a informação não será o bastante — na nova internet, as empresas precisarão resolver o problema que motiva a busca pela informação.

Se antes comprávamos bilhetes para transporte, em breve seremos guiados por veículos autônomos, carros que usam capacidade computacional inimaginável na velha internet para transportar nesta nova era as pessoas de maneira mais segura. Foi incrível ver a apresentação de Ryan Powell, Head de Design da Waymo (empresa de carros autônomos da Alphabet), sobre como toda a experiência (visual, sonora, tátil) da Waymo foi pensada detalhadamente para garantir que o passageiro tenha confiança em andar em um carro sem motorista (veja uma conversa com ele).

Na área de saúde, estivemos focados nos últimos 20 anos em identificar sintomas com maior rapidez. A nova era digital move-se através do mapeamento e manipulação dos dados genéticos. O SXSW estava cheio de empresas vendendo sua concepção de negócio sobre como podem te ajudar a prevenir doenças, a partir da análise do seu DNA.

No setor financeiro, as criptomoedas e o próprio blockchain iniciaram a descentralização dos meios de pagamentos. Depois do boom, da especulação e da desconfiança nessas tecnologias, em qual momento chegamos? Para os irmãos Winklevoss (os famosos primeiros bilionários do bitcoin), fundadores da Gemini, estamos na hora da regulação. A campanha deles, que vai contra as ideias iniciais do movimento Crypto e do qual foram protagonistas, gerou polêmica: “Crypto Needs Rules”.

Inclusive, regulação parece ser parte da nova internet. Em diversas partes do mundo, governantes, organizações sociais e movimentos ativistas tem questionado as grandes corporações, seja por práticas monopolistas ou por falta de ética no uso dos dados. O problema é que cada país ou região pode ter um determinado tipo de regulação (como é o caso da China, hoje) o que abre espaço para que no futuro tenhamos não apenas uma, mas várias internets. Este fenômeno é conhecido como splinternets.

A nova internet será menos centrada no telefone

Outra concepção que o festival me trouxe foi a de que, nesta nova era digital, o grande avanço será a integração completa do mundo digital e do físico.

O futuro, longe de ser isolado nos smartphones, é muito mais integrado com o mundo físico ao nosso redor. A China, aliás, está à frente nesta transição. Milhões de chineses só fazem pagamentos através do celular, já que lojas, estabelecimentos, táxis e comerciantes têm QR Codes, dispensando que o consumidor saque dinheiro ou utilize cartões.

Diversas outras experiências do mundo físico podem ser ativadas por leituras de códigos, o que explica o aumento do interesse por QR Codes no mundo.

Não duvide também do potencial de sistemas de inteligências de voz influenciarem nosso comportamento cotidiano. O mercado dos Estados Unidos indica essa tendência. Só a Alexa, assistente da Amazon, está instalada em 100 milhões de casas. Há 5 anos, apenas 13% das residências americanas tinham algum tipo de assistente. Em 2018, já eram 41%. Estima-se que até 2021, 50% das nossas interações serão por voz.

É difícil imaginar vivermos sem smartphones, mas a nova era digital indica que as nossas interações mais relevantes se darão por meio de uma combinação entre wearables de áudio e outros novos dispositivos.

Crescimento de skills da Alexa (habilidades que podem ser acionadas por voz)

Um dos produtos de destaque no SXSW, que gerou bastante conversa, foi o Bose Frames. Trata-se de um óculos de sol com sistema de áudio integrado, que promete criar experiências de realidade aumentada, a partir da audição. Em uma das palestras mais concorridas, a futurista Amy Webb defendeu o protagonismo desses “dispositivos vestíveis” nos próximos anos.

Minha reflexão é que já evoluímos de um total descolamento do computador (que marcou o início da internet) para um mundo de toque e sem teclas (mobile). O protagonista do presente é a tecnologia que vestimos (wearables) e no futuro será aquela definida como “inside” (colada ou dentro de nós). No velho digital, humanos e máquinas eram facilmente discerníveis. No futuro, elas serão parte de quem nós somos.

O futuro da internet exigirá mais pensamento crítico

Os cenários para esta nova internet estão longe de ser inofensivos. Amy, que acaba de lançar um livro sobre o papel das grandes empresas de tecnologia no futuro da humanidade(The Big Nine), defende que vivemos hoje o fim da ideia de privacidade. Estamos abrindo mão de nossos dados privados pela possibilidade de termos experiências cada vez mais customizadas. E já podemos avistar a próxima fronteira.

O corpo humano será a principal plataforma de inovação tecnológica da nova internet.

Há uma corrida atual para armazenar dados genéticos e melhorar a eficiência de tecnologias de reconhecimento facial e devices que utilizam nossa biometria. Pense que, hoje, nossos dados pessoais já são vendidos para gerar publicidade personalizada. Quase semanalmente vemos notícias sobre dados hackeados ou expostos indevidamente, e quase todos os dias o Mark pede desculpas.

Mas o que acontecerá quando dados biométricos puderem ser incorporados por terceiros? Quem será responsável pela gestão do nosso “personal data record”?

Voltei do SXSW mais crítico, refletindo sobre estas e tantas outras questões — que tentarei trazer insights nos próximos posts:

· Qual relação adequada entre capital e tecnologia para evitar que interesses econômicos estejam acima dos interesses humanos?

· Como podemos criar produtos inclusivos, que incentivem a relação saudável com tecnologia?

· Como a tecnologia pode fortalecer a relação entre as pessoas, em termos de profundidade, e contribuir para não aumentar o sentimento de polaridade e de não pertencimento?

· Qual o uso adequado de dados pessoais para que não cerceiam as liberdades individuais, ao mesmo tempo que não trave a evolução dos negócios?

Como empreendedor, fica claro que os próximos 20 anos nos reservam infinitas possibilidades. O novo digital é melhor que o velho – temos mais ferramentas, mais pessoas conectadas, maior poder computacional, mais chances de criar soluções que impactem as pessoas e a humanidade.

Ao mesmo tempo, precisamos ter consciência sobre o que estamos desenvolvendo. A nova era da internet exige uma postura mais crítica diante dos benefícios e malefícios das novas tecnologias.

Esta é a lição que vou levar para o time e comunidade da Tera e que gostaria de compartilhar com vocês. Vamos celebrar a inovação tecnológica e seguir pelos caminhos abertos pela velha internet. Mas vamos também ter o compromisso de refletir criticamente sobre o tempo em que vivemos – para que a nova internet não se transforme, no final dos próximos 20 anos, na maior distopia que nunca conseguimos imaginar.

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