A psicologia por trás da liderança efetiva em tempos de crise

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9 min readAug 9, 2020

Entenda o que faz líderes terem sucesso em tempos de crise.

Photo by Quino Al on Unsplash

(Adaptação do artigo originalmente publicado aqui, em inglês).

Quando pergunto a grupos de gerentes o que faz um bom líder (ou uma boa líder), raramente tenho que esperar muito antes que alguém diga: “visão!” e todo mundo concorde.

Eu fiz essa pergunta inúmeras vezes nos últimos 20 anos ao falar com diversas pessoas, dentre elas: executivos(as) seniores, gerentes de nível médio e jovens estudantes de diversos setores, indústrias, formações e países.

A resposta é sempre a mesma: “uma boa visão inspira e move as pessoas”. Causa uma sensação de liberdade, de igualdade, de inovação, de salvação — seja o que for, se a visão da pessoa líder nos oferecer direção e esperança, nós seguiremos. “Se você não tem essa visão, não pode se intitular como líder”.

Eu discordo. Acredito que esse encantamento com a visão de líder é problemático. E vou além, acho que ele é a manifestação de um problema maior: a concepção desencarnada de liderança.

As grandes visões mantêm nossa imaginação cativa, mas raramente têm um efeito positivo em nossos corpos. De fato, muitas vezes acabamos sacrificando nosso corpo em busca de diferentes tipos de visão — morrendo como soldados por nossos países ou trabalhando até a exaustão por nossas empresas, por exemplo.

Todas as visões funcionam da mesma maneira, sejam elas de cunho místico ou cotidiano: elas prometem um futuro legal, mas, em troca, exigem a nossa vida.

Em alguns casos, esse sacrifício vale a pena. Em outros, não. Assim como podem nos engrandecer, as grandes visões podem nos derrubar.

Por isso acredito que, quando o apelo de uma pessoa líder se baseia apenas em uma visão, a liderança não é completa.

E as limitações dessa liderança visionária ficam dolorosamente óbvias em tempos de crise, de incertezas ou de mudanças radicais. Vamos usar a pandemia do coronavírus como exemplo. Tenho certeza que ninguém anotou o que estamos vivendo em seu caderno de visões para 2020.

As crises testam as visões constantemente, e as visões simplesmente não sobrevivem em tempos difíceis.

Quando há um incêndio em uma fábrica, uma queda repentina nas vendas, um desastre natural, uma crise econômica; nós não precisamos de uma boa visão com uma chamada à ação. Nos casos de emergência, nós geralmente nos motivamos a agir por conta própria e acabamos “metendo os pés pelas mãos” — por falta de preparo para lidar com desafios ou por qualquer outro motivo.

Em um cenário de crise, nós primeiramente precisamos de um porto seguro para nos apoiar na recuperação do baque. Só assim ficamos seguros para propor soluções e continuar com nossos projetos.

O termo “holding” é muito usado por profissionais da Psicologia. A expressão descreve a maneira como uma pessoa, geralmente uma figura de autoridade, mantém a calma e faz a interpretação racional da situação de risco para si mesma e para as demais envolvidas. O termo “holding” descreve justamente a capacidade de ajudar outras pessoas a compreender uma situação confusa, acolhendo-as.

Pense em uma CEO que, em uma crise severa, prioriza a tranquilidade de seus funcionários. Essa líder confirma que a empresa tem recursos para enfrentar a tempestade e que todos os empregos serão protegidos. Ela ajuda os responsáveis a interpretar os dados de receita da empresa e fornece instruções claras sobre o que deve ser feito, tanto para atender os clientes já existentes quanto para desenvolver novos negócios…

Essa líder está praticando o “holding”. Ela está pensando com clareza, está vibrando tranquilidade e acolhendo pessoas, está orientando os colaboradores e está unindo a equipe por meio de um mindset positivo, mesmo em meio ao caos. E esse trabalho é tão importante quanto inspirar os outros. É uma condição prévia para realmente inspirar outras pessoas.

Ser porto seguro e praticar o “holding” é ser líder. Esta é uma faceta profunda da liderança. É pouco celebrada, mas é essencial em tempos de crise.

Em grupos cujos líderes são confiantes, portos seguros, o apoio mútuo é abundante; o trabalho continua firme e uma nova visão de como “tocar o barco” sempre acaba surgindo. Quando os líderes não conseguem se manter estáveis e solícitos, a equipe também não consegue: todos sentem ansiedade, raiva e frustração.

A crise vivida pela empresa BP durante o derramamento de óleo no Golfo do México, por exemplo, fez com que a minha colega do INSEAD (e esposa!) Jennifer Petriglieri observasse os dois cenários. Ela percebeu que os talentos da BP tiveram reações bem distintas: alguns realmente perderam a fé na empresa e em seus líderes, enquanto outros dobraram seu esforço e comprometimento.

A diferença entre os dois grupos?

O primeiro grupo recebeu mensagens otimistas em nome da empresa, enquanto o segundo grupo recebeu a notícia de que seus chefes iriam recrutá-los para solucionar o problema. Apesar do estresse da situação, foi fácil perceber que o trabalho colaborativo tranquilizou essas pessoas; todos estavam seguros de que a empresa era íntegra e estava fazendo o possível para se reerguer de forma digna.

Oferecer apoio e acolhimento, concluímos, é bem mais útil do que oferecer discursos de esperança em um futuro melhor.

Foi Donald Winnicott, psicanalista britânico, o primeiro profissional a conceituar o “holding” dessa maneira. Ele observou que um bebê precisava ser carregado no colo para crescer e se desenvolver de forma realmente saudável.

Os pais que eram disponíveis, mas não eram exigentes, eram tranquilizadores, mas não eram não intrusivos, eram receptivos, mas não eram reativos, e eram presentes mesmo que não fossem perfeitos, observou Winnicott, proporcionavam um “ambiente de acolhimento” que mantinha os bebês ​felizes.

O acolhimento abriu espaço para que essas crianças aprendessem a entender e a administrar seus mundos (interno e social), desenvolvendo o senso de si mesmas.

Ou seja, é pelo acolhimento que os bebês se entendem como um “eu” e começam a notar suas habilidades e limitações. Nesse momento em que eles passam a perceber que podem brincar, aprender, trabalhar, enfrentar dificuldades e ainda manter o otimismo.

Os cuidadores que ofereceram acolhimento, observou Winnicott, não protegeram as crianças das angústias da vida, mas eles as resguardaram o suficiente para que pudessem aprender a processar o sofrimento. Eles falaram as palavras certas para nomear as suas experiências. Disseram coisas como: “você está com raiva, filho? Foi por isso que você chutou? Venha aqui. Que tal dizer ao seu irmão para deixar seu urso em paz, em vez disso?”.

Winnicott descobriu que as crianças mais acolhidas se tornaram mais sociáveis ​​e independentes quando adultas. Elas não ficavam paralisadas ​​quando enfrentavam desafios, nem pediam por seus pais. Elas procuravam ajuda quando era necessário e faziam bom uso dela.

O médico então começou a considerar as crianças acolhidas como “true”, o que significava que elas eram verdadeiramente livres para traçar o seu caminho no mundo. Ele concluiu que o amor oferecido pelo acolhimento tinha tanta força que classificou esse amor como um tipo competente de amor.

Ele também observou que as crianças acolhidas eram capazes de oferecer um ambiente de acolhimento para outras pessoas.

A sensação de apoio e segurança, em suma, não apenas nos torna mais confortáveis ​​e corajosos. Ela nos faz ser quem somos. Essa foi a principal visão de Winnicott, uma visão tão revolucionária agora quanto era na época.

O trabalho de Winnicott refinou a ideia de Freud de que a socialização nos doma e pode nos tornar neuróticos. Isso só acontece, observou Winnicott, quando o social impõe uma visão tão específica de quem devemos ser que ficamos sem tempo para descobrir quem podemos nos tornar. A neurose, ele sustentou, não é o produto do que a socialização faz com nossos instintos, mas do que ela deixa de fazer com nosso potencial. Saúde mental e liberdade, então, passam a ter que andar lado a lado.

E as crianças não são as únicas que precisam de apoio para sobreviver e crescer. Os adultos também precisam. Precisamos nos sentir apoiados para enfrentar circunstâncias difíceis, para dominar novas situações e lidar com condições.

Quando expandimos a definição de “holding” para além do desenvolvimento infantil, percebemos com facilidade que existem diversos tipos de acolhimento.

Em seus trabalhos posteriores, Winnicott sugeriu que o “holding” funciona melhor quando ocorre em um contexto mais amplo de uma sociedade que é segura e livre o suficiente para tornar menos necessária a participação interpessoal. Essa era uma das funções de uma sociedade democrática, argumentou Winnicott: “tornar menos indispensável que os seus membros precisassem confiar uns nos outros”.

Em minha própria pesquisa, fiz uma distinção entre o “holding” interpessoal e o “holding” institucional, aquele do contexto mais amplo. Percebi que, idealmente, bons líderes fornecem ambos, em qualquer situação. E eu vou te contar como eles fazem isso.

Líderes fornecem acolhimento institucional quando fortalecem a estrutura e a cultura de uma organização ou grupo.

Essas pessoas fazem isso, por exemplo, quando implementam políticas e procedimentos que tranquilizam as pessoas sobre a sua segurança no trabalho; ou quando asseguram que a organização trata seus funcionários de forma justa. Elas o fazem quando promovem um diálogo que permite que diversas pessoas participem das decisões organizacionais; ou quando determinam que os novos desafios serão superados de forma colaborativa, em vez de incentivar facções polarizadas.

Para os(as) líderes em cargos executivos, essa é a maneira mais impactante de unir as pessoas em momentos de crise.

Deixar de agir com acolhimento faz com que as palavras de simpatia e compreensão ditas soem falsas. Fornecer o “holding” institucional, por outro lado, muitas vezes fará com que as pessoas perdoem até mesmo os(as) líderes que não gostam pessoalmente.

Para proporcionar esse acolhimento institucional, conte ao seu pessoal o que acontecerá com seus salários, seguro de saúde e condições de trabalho.

O que mudará sobre como eles fazem seu trabalho? Quais são as principais prioridades agora? Quem precisa fazer o que? Você pode não ser capaz de fazer previsões em alguns casos, mas ainda pode oferecer interpretações e pensamentos informados.

Explique porque certas medidas são sensatas e necessárias em vez de outras. Dissipe boatos. Incentive e zele pela participação de todos, mais do que você já costuma fazer. Faça essas coisas antes de recomendar que seus colaboradores façam intervalos regulares, meditação ou exercícios — caso contrário, você estará negligenciando seu dever de cuidar.

Depois de fornecer o acolhimento institucional, concentre sua atenção no acolhimento interpessoal, oferecendo-o a outros e modelando-o para eles. Para fazer isso bem, você deve se deixar estar no presente. Você pode sentir a vontade de voltar seu foco para o futuro, mas isso será apenas uma maneira de escapar da situação, uma vez que você não vai poder testemunhar ou entender a experiência e as preocupações das pessoas que são relevantes para o agora.

Você precisa se manter atento(a), disponível e persistente para que os outros possam “continuar a fazer o que estavam fazendo”, como Winnicott colocou.

Isso é mais do que estar por perto e dar apoio quando necessário; é uma mistura de oferecimento de permissão para sentir (aval para sentir o que estamos sentindo sem sermos envergonhados ou oprimidos) e curiosidade (criatividade para considerar maneiras diferentes de entender as circunstâncias e, eventualmente, imaginar o futuro). Lembre-se, como Winnicott descreveu, “o core do acolhimento é reconhecer a angústia e a dificuldade sem ceder à impotência”.

Mas as pessoas que são líderes não são as únicas fontes de apoio.

Há muito que podemos oferecer um ao outro, no trabalho e em outros lugares.

Em um estudo sobre a vida de trabalhadores independentes e bem-sucedidos, Sue Ashford, Amy Wrzesniewski e eu descobrimos que essas pessoas intencionalmente investiam no cultivo de um ambiente positivo de convívio com os seus colegas de trabalho.

Em outro estudo sobre casais que trabalhavam juntos, Jennifer Petriglieri descobriu que os casais mais bem-sucedidos eram formados por pessoas que se apoiavam reciprocamente. Cada parceiro ajudava o outro a enfrentar suas lutas de carreira e a crescer profissionalmente.

Quando revisei o conteúdo sobre luto no local de trabalho que escrevi com Sally Maitlis, novamente identifiquei o poder de uma postura de acolhimento entre líder e colaborador — capaz, primeiro, de testemunhar a dor de outra pessoa e depois de ajudá-la a encontrar um novo propósito para sua vida. Esse é presente mais valioso que uma pessoa pode oferecer para outra, seu apoio, sua empatia.

As pessoas nunca se esquecem de como os(as) gerentes as trataram enquanto elas enfrentaram perdas. E nós também nos lembraremos de como as nossas instituições, líderes e colegas nos trataram durante os tempos de crise.

Quando peço aos gerentes que pensem um pouco mais sobre os(as) líderes cujas visões consideram mais convincentes e duradouras, eles geralmente percebem que nenhum deles iniciou a sua jornada por uma visão (ou parou por aí).

A boa liderança começa com uma sincera preocupação com um grupo de pessoas. E enquanto o(a) líder apoia essas pessoas e alivia suas preocupações, ele(a) tem uma visão.

Essas pessoas então acolhem outras por meio da mudança necessária para realizar essa visão, juntas.

A visão dos líderes pode ser como nos lembramos deles, porque ela nos mantém por perto.

Mas é o acolhimento e apoio que realmente nos liberta.

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