Co-Web Summit 2019: Uma perspectiva coletiva sobre o evento de tecnologia

Claudio Yamaguchi
Somos Tera
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11 min readDec 4, 2019

Não é festival de música, mas reuniu mais de 70 mil pessoas, em 4 dias — como Edward Snowden, pessoas do mundo todo do Wikipedia, dois humanóides e robôs da Boston Dynamics, empreendedores do Kickstarter — para discutir, compartilhar, criticar o que tem hoje e que vem por aí em tecnologia para os próximos anos.

Altice Arena, local da Web Summit 2019 em Lisboa, Portugal

Entre os dias 4 e 7 de novembro de 2019 aconteceu a Web Summit 2019 em Lisboa, Portugal, reunindo mais de 70 mil pessoas de mais de 160 países. Para se ter uma ideia, em torno de 1.200 pessoas se apresentaram, 2.500 jornalistas cobriram e, curiosamente, 46% do público era do sexo feminino. Um recorde para o evento, viva! Todas essas perspectivas reunidas em um lugar com pessoas expondo, interagindo e aprendendo.

Foi preciso se organizar e planejar a atenção para os 5 grandes espaços divididos entre exposição de empresas de tecnologia, startups, scale-ups, investidores, mentorias e, também, palcos com debates, palestras e apresentações.

Todos os dias foi preciso enfrentar filas e ser revistado pela polícia portuguesa para segurança

Consciência e ação: a equação para o futuro no presente

Quem deu o tom de abertura do evento foram duas figuras públicas de exposição na mídia. O primeiro foi Edward Snowden, analista de sistemas americano que atuou na CIA, famoso por ter denunciado casos abusivos de espionagem e quebra de privacidade por video-vigilância do governo americano. Ele disse que as leis sobre privacidade desenvolvidas recentemente (GDPR — General Data Protection Regulation, no Brasil será adaptada como LGPD — Lei Geral de Proteção de Dados) ainda são apenas formas de regular e muito frágeis porque abordam pouco sobre os métodos de coleta dos dados e, ainda, há alto interesse de quem está manipulando os dados.

Snowden direto da Rússia em uma transmissão em tempo real

Foi bem crítico sobre o cenário de mercado e a necessidade de fazer as mudanças necessárias que beneficiem a todas as pessoas, não apenas as empresas e os reguladores, o que no ponto de vista dele ainda está distante de acontecer.

Ainda há muitos intermediários entre uma empresa e uma pessoa. É nessa transação de dados que podem acontecer muitas falhas de segurança e desvios de dados sensíveis.

Snowden falou direto da Rússia (onde está exilado) da necessidade de atuação sobre a ética e a privacidade, motivos que o fez denunciar o que vivenciou. Uma reflexão aqui além desses temas é: a tecnologia supera limitações, torna invisível a distância física entre interlocutores no mundo e a comunicação direta pode ser usada para o bem ou para o mal. No caso, Snowden deu um alerta geral para conscientização e mudança positiva.

Já Jaden Smith, ator, rapper, ativista e filho do ator Will Smith, anunciou seu documentário sobre a água no mundo: Brave Blue World, fazendo um chamado de protagonismo para os temas relacionados ao planeta. Alvo de muitas críticas, ele persevera com a causa de levar água para comunidades sem acesso ou com acesso muito precário, reforçando a importância de conscientizar tanto as pessoas que recebem benefícios de seus projetos quanto aquelas que têm a água como um recurso básico comum.

Hoje ele tem duas iniciativas: o 501cThree, máquina para tratamento de águas impróprias, removendo metais pesados e bactérias malignas; e o Just Water que melhora a eficiência do tratamento de água potável, minimizando despedícios desde a extração até a entrega de água em embalagem 82% biodegradável. Interrompido pelo tempo do evento, não pode concluir sua fala, mas deixou o recado para jovens se importarem mais com os recursos do planeta. Aqui a reflexão é sobre o mindset (mentalidade) de quem trabalha com tecnologia: hoje não estamos só falando de hardwares e softwares, de inteligência artificial ou robôs que substituem trabalhos manuais. Estamos falando de consciência, de fazer de fato produtos, serviços e negócios para o bem coletivo. Vou aprofundar mais sobre esses temas a seguir.

O evento retrata a realidade do mercado?!

Mais colaboração do que competição. O que está acontecendo com a polarização do mundo?

Muitos painéis do evento giraram em torno de construir soluções a partir da perspectiva das pessoas, fazendo pesquisas, coletando opiniões, desenvolvendo junto, ou seja, co-construir com quem se beneficia com oferta da empresa é parte fundamental. Porém, algumas falas chamaram a atenção para o tema comunidade. A partir do momento em que os negócios entendem que as pessoas que utilizam suas soluções formam uma comunidade, o envolvimento e o engajamento dessas pessoas com a empresa se potencializam, porque de alguma forma elas se conectam com marcas pelo propósito e pelas relações. Não são apenas clientes unicamente.

Katherine Mahel, CEO do Wikipedia

Katherine Mahel, CEO do Wikipedia (a maior enciclopédia colaborativa do mundo), começou sua apresentação perguntando para a plateia quantas pessoas já tinham usado o site. Foi difícil identificar uma pessoa que não levantou a mão. Nesse momento, ela trouxe a reflexão que somos sedentos por conhecimento. Assim como há muita gente querendo aprender, há muitas pessoas dedicadas no mundo na construção de conteúdo das páginas com as informações sobre os diversos temas, em múltiplas línguas e culturas. De forma autorregulada, a própria comunidade altera e corrige o que for necessário, num ciclo de mudança contínua. É um negócio sem fins lucrativos, então, precisa do open source (fonte aberta) para prosperar como empresa.

A reflexão de Mahel foi sobre as vertentes políticas atuais evidentes no mundo que têm trazido violência e excessiva visão crítica sobre o lado considerado oposto, em vez de atuar em conjunto. É briga ideológica, política, religiosa, entre outras que causam divisão de pessoas até povos, trazendo impactos drásticos ao meio ambiente, à segurança, integridade das pessoas e ao conhecimento que fica polarizado. A separação das pessoas prejudica a busca da solução de problemas complexos do mundo porque falta ação conjunta enquanto sobram dedos apontados para os problemas.

Nessa mesma vertente, Chris Slowe, CTO — Chief Technology Officer da Reddit (uma dos maiores redes sociais de links por interesse do mundo com 400 milhões de usuários ativos por mês) e Craig Donato, CBO — Chief Business Officer da Roblox (game de simulação e comunidade virtual colaborativa para crianças) trouxeram perspectivas similares quando se fala de desenvolvimento de comunidades. Usar o poder do efeito da rede (network effect) para crescer e nutrir a comunidade, removendo as barreiras de entrada para manutenção das pessoas, colaborando para que elas consigam fazer o que esperam dentro da plataforma.

As pessoas querem se manter em comunidade por um propósito e querem produzir conteúdo, interagir, gerar conversas reais. Então, experiência, design, conteúdo, funcionalidade, tecnologia são importantes, mas, se não entregar a proposta de valor, pouco importará. Para saber se isso acontece de fato é preciso colaborar realmente com as pessoas na teoria e na prática. Slowe falou sobre não querer ditar como as pessoas devem se sentir e sim entender realmente o que elas estão sentindo para trabalhar funcionalidades e soluções que as ajudem. Tá aí uma bela dica sobre empatia: o que importa é como a outra pessoa se sente e menos como achamos que ela se sente.

Com a tecnologia a escala exponencial é uma realidade, mas a reflexão é como usamos essa oportunidade para fazer de fato aquilo que pode nos beneficiar como sociedade e não como uma parte binária de lados (A ou B), polarizada em extremos divisores.

Craig Donato, da Roblox, acredita que o papel da marca é viabilizar a auto organização da comunidade

Sejamos responsáveis pela mudança que queremos ver

Um dos motivos do surgimento de tantas startups é pela grande quantidade de problemas complexos que temos no mundo. Uma empresa só, por mais gigante, global e multiserviços que seja, não supre todas as necessidades das pessoas. É um bom sinal, dado o que vimos anteriormente, a polarização pode jogar contra a evolução da nossa sociedade. Percorrendo o evento, foi possível ver quanto o tema responsabilidade permeava os mais diversos painéis, apresentações e os stands expositores. Responsabilidade como mentalidade, mas também como atitude para fazer negócios.

Robô Sophia que foi ao palco para uma conversa com seus criadores

Num palco se falava sobre inteligência artificial como:

  • a Sophia que é uma humanóide (com perfil real no twitter e instagram @realsophiarobot) projetada para entender comportamentos humanos e no futuro ajudar em tarefas. Ela passeia de carro, por exemplo, para se colocar em contextos reais dos humanos.
  • os protótipos de robôs da Boston Dynamics que traduzem a física, os movimentos humanos e de animais, reagindo de forma bastante similar.

Em outro palco, a preocupação é sobre o tema aprendizado de máquina e a ciência de dados não tendenciar a algoritmos preconceituosos, racistas, com vieses que privilegiam apenas interesses. Qualquer tipo de inteligência artificial criada por seres humanos pode ser tendenciosa. Por exemplo, um algoritmo de reconhecimento de faces humanas pode distinguir facilmente pessoas de pele branca, mas diferenciar menos as pessoas de pele negra, se quem desenvolveu a solução treinar a máquina com estímulos maiores com pessoas de peles brancas do que negras.

Como citado, quase metade do público do evento foi do sexo feminino (46%), mostrando que o mercado de tecnologia está chegando em condições mais diversas. Um dos painéis sobre o futuro da sociedade criticou: a tecnologia impactou bastante no modo que trabalhamos, mas as regulamentações e legislações ainda são antigas que nem sempre refletem os dias de hoje. As adaptações que fazemos precisam atender as novas realidades, tornando o trabalho ágil, mas também inclusivo, diverso e em benefício do ser humano.

É interessante ver o robô em trabalhos operacionais e automatizáveis, mas é interessante aumentar o nível de literatura digital (digital literacy: algo como uma alfabetização sobre o mundo digital) da população para que as pessoas possam atuar em outros tipos de trabalho. Não podemos pensar no futuro da sociedade, tendo a produtividade como métrica e critério de sucesso no trabalho. Segundo um estudo da McKinsey Global Institute, mais de 800 milhões de pessoas vão perder suas posições de trabalho para robôs até 2030. Se as pessoas vão deixar de fazer o que fazem hoje, o papel de quem está no comando de grandes empresas ou empreendendo é construir um futuro possível de trabalho.

Yancey Strickler do Kickstarter e sua matriz: bentoism

Yancey Strickler, co-fundador do Kickstarter (uma das maiores plataformas de financiamento coletivo de projetos do mundo), foi enfático em dizer que temos ventos favoráveis para empreender na era do propósito, em que se busca melhor qualidade de vida, mas, muitas vezes, se traduz em abundância e riqueza de poucos ou financial maximization (maximização financeira, em tradução livre). Empreendedores fazem empresas para gerar riqueza, mas pagam salários baixos aos seus funcionários e dessa forma seus negócios não terão perpetuidade.

Apresentou o conceito de “bentoism” (obentô em japonês é a marmita levada ao trabalho). No Japão, a marmita é montada de forma equilibrada para ser diversa, cheia de nutrientes e saudável. Essa inspiração fez ele criar uma matriz:

  • hoje: o que você espera para si & para as outras pessoas
  • para o futuro: o que você espera para si & para as outras pessoas

Com isso, busca-se equilibrar interesses individuais com interesses coletivos, evitando excessos de um dos lados.

A mensagem que fica é para que a responsabilidade não seja apenas no cumprimento da ética ou da legislação, tampouco apenas como modelo mental. É muito mais uma perseguição de consistência entre pensar, falar e agir responsavelmente desde os interesses individuais aos impactos de todas as ações, as atividades da empresa e as pessoas que se relacionam com ela.

Stand do Booking.com e espaço para mulheres de tecnologia

Coexistência de empresas de tecnologia se faz mais que necessária

Há um altíssimo crescimento de empresas (startups) para resolver problemas sociais, ambientais, saúde, educação, ética, privacidade, legal, inteligência artificial, financeiras e, por outro lado, as grandes empresas melhorando suas soluções também apoiando as iniciativas de empreendedorismo.

O evento tinha espaço de exposição dividido entre as globais e as startups quase que numa proporção meio a meio com stands grandes e galerias lado a lado, lutando por atenção e espaço “ao Sol”.

Uma das alas de exposição de startups. Eram mais de 8 espalhadas por todo evento

Por exemplo, a Amazon levou sua marca AWS (Amazon Web Services), parte do modelo de negócio que entrega tecnologia para quem precisa de infraestrutura na nuvem como hospedagem, processamento de dados e inteligência artificial. O stand tinha um auditório com workshops lotados o dia todo, nos 4 dias de evento com apresentações de casos de uso e como usar as soluções. Em outro canto, um espaço para mentorias com especialistas e parceiros de negócios Amazon. A empresa precisa de mais gente usando recorrentemente suas soluções e empreendedores precisam de soluções robustas para escalar.

Hoje muitas startups em crescimento usam estruturas na nuvem da Microsoft, Google, Amazon, SAP, IBM em seus negócios. É uma coexistência necessária entre essas diferentes realidades de momento e tamanho de negócio para desenvolver o mercado. É gente querendo resolver os problemas complexos do mundo e tecnologias que podem potencializar os impactos exponencialmente.

Essa coexistência também leva a uma co-dependência. Grandes estruturas têm maior complexidade de inovar rapidamente, enquanto pequenas têm maior flexibilidade para fazer experimentos com mais controle em situações adversas. Há espaço para que haja um mundo ágil que entregue valor para ambas as realidades, sem necessariamente existir um caminho certo ou errado. A transformação digital é uma necessidade real em empresas tradicionais e a evolução digital é core (essência) de empresas novas. O digital as une.

Stand da edp (multinacional de energia elétrica) com diversas iniciativas para startups

O futuro acontece no presente quando se faz com e para as pessoas, reunindo mentalidade & ação

Como vimos, cada vez se faz mais necessário ponderar o lado negócio com o lado humano para impacto positivo para a sociedade. Crescimento exponencial, usando tecnologia sem pensar em responsabilidade e valor compartilhado pode levar a um colapso instantâneo de uma hora para a outra.

Esse foi o pano de fundo da Web Summit, um evento que reuniu pessoas do mundo para simular um micro ambiente do que acontece fora de lá.

Algumas reflexões para encerrar esse artigo:

  • Por que você acha importante a tecnologia para a mudança e a transformação da sociedade? Quais são os motivadores para automatizar trabalhos? Por que você tem estudado hoje em dia e como enxerga os robôs atuando no que faz?
  • Como está a cultura da empresa que você está hoje? Os temas de diversidade, inclusão e equidade existem ou são tratados como excessão? A colaboração faz parte das pessoas e da cultura ou depende de rituais e processos para que exista? Que tipo de influência você tem sobre a cultura da empresa?
  • O que você tem feito para tornar o uso da tecnologia como algo responsável, preservando ética, segurança, privacidade? As soluções que você desenvolve trazem o bem coletivo?

A nossa oportunidade é utilizar a tecnologia como viabilizadora e fazer desde hoje de forma diferente, pensando como isso pode ajudar a mudar e a transformar ambientes de negócio e de relações na nossa sociedade. Tudo começa no agora e pode ser por você.

Bate-papo ao vivo com comunidade Tera

Para consolidar esses aprendizados e trocar diferentes visões sobre tudo isso que pudemos conferir em Lisboa, convidamos algumas pessoas da comunidade Tera que também estiveram no Web Summit 2019 para discutir essa relação entre pessoas e tecnologia.

Confira abaixo o bate-papo entre Claudio Yamaguchi, Leo Brazão, Clarissa da Rosa e Carol Cardoso transmitido ao vivo no dia 12 de dezembro:

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Claudio Yamaguchi
Somos Tera

Designer pesquisador. Fale comigo sobre educação, aprendizagem, neurociência e experiências. Me convide para esportes, artes, música, cozinha e relacionados ;)