Como auxiliar motoristas de aplicativo a equilibrar jornada de trabalho e qualidade de vida? — case de estudo de UX.

Luisa Saraiva
Somos Tera
Published in
9 min readMay 6, 2020

Em janeiro de 2020 participei do Bootcamp de User Experience da Tera.

Foram 2 meses desenvolvendo uma solução para o desafio e tema “Qualidade de vida para motoristas de aplicativo” - um problema real de design, direcionado para o meu grupo, composto por mim e mais 3 integrantes.

De acordo com uma pesquisa do IBGE de dezembro de 2019, no Brasil, já são mais de 1.125.000 motoristas de aplicativo. É possível constatar que três estados brasileiros concentram mais da metade desse número total. São eles: São Paulo (263.600), Rio de Janeiro (188.406) e Minas Gerais (105.289).

As questões relacionadas a qualidade de vida desses profissionais tem gerado mobilizações em diversas esferas, tanto por parte dos motoristas quanto das próprias empresas de aplicativo. Questões quanto a jornada de trabalho, que para alguns chegam a 16 horas por dia (Brasil247), duplas jornadas, alimentação precária, problemas de saúde, segurança e disponibilidade de tempo. Uma problemática urgente que se relaciona com diversos outros trabalhadores informais, como entregadores de comida, por exemplo.

Nosso processo de entendimento desse problema e desenvolvimento do projeto teve como base o design thinking, seguindo as etapas de: empatizar, definir, idealizar, prototipar e testar.

Empatizar

Um dos passos iniciais do nosso estudo foi nos conectar com o usuário - os motoristas - por meio de muita empatia. Precisávamos entender o que significa qualidade de vida para eles. Pra isso, escolhemos postar a pergunta “O que é qualidade de vida pra você?” em um grupo de motoristas do Facebook. As respostas foram diversas, descontraídas e até mesmo curiosas. Veja:

Muitas das respostas eram insights e hipóteses que já havíamos levantado nas nossas conversas de matriz CSD e desk research. Menos, é claro, de que morar ao lado de Cristiano Ronaldo ou dançar forró seriam qualidade de vida, rs. Porém, isso nos ajudou a reforçar o quanto muitos conceitos são subjetivos e que para entender um problema ou necessidade plenamente é imprescindível escutá-lo sobre a perspectiva do usuário em questão.

E para nos aprofundarmos em quem são esses usuários em questão, utilizamos pesquisas qualitativas e quantitativas (através de formulário online).

Foram 35 interações em pesquisa no total, 8 qualitativas + 27 quantitativas.

As pesquisas qualitativas foram extremamente importantes e interessantes por ocorrerem de maneira bem orgânica: durante corridas reais solicitadas por cada membro do nosso grupo. Essa imersão na realidade nos ajudou a ter conversas muito abertas e fluidas com os motoristas que, por sorte, eram do tipo que gostavam mesmo de conversar! Através dessas pesquisas observamos alguns dados:

Queríamos entender também qual teria sido a principal motivação ao se cadastrarem como motoristas de aplicativo, e as respostas foram:

Desemprego & Dinheiro rápido — 47,6% considerou a perda do emprego; 42,9% considerou a necessidade de renda extra/dinheiro rápido; e 9,5% considerou a liberdade de horário.

Para entendermos melhor como esses motoristas se relacionavam com questões ligadas a qualidade de vida, fizemos algumas outras perguntas que nos trouxeram os seguintes dados:

Definir

Com os dados de todas as pesquisas qualitativas e quantitativas, nossa matriz CSD e benchmark realizados, partimos para desenhar as personas, jornada do usuário e mapear suas principais dores e necessidades.

Desenhamos duas personas:

Familiarizados com as personas, suas dores e necessidades, entendendo a jornada deles nesse processo, pudemos definir de maneira clara e objetiva o problema que iríamos atacar dentro da temática “Qualidade de vida para motoristas de aplicativo” e a definição foi:

Também definimos que adentraríamos nesse problema com o stakeholder sendo as empresas de aplicativo. Dessa forma, realizamos outra pesquisa. Dessa vez com passageiros de corridas e obtivemos a seguinte informação:

Comparamos essa pesquisa de passageiros e as reclamações que ouvimos diversas vezes nas conversas com os motoristas sobre a uma grande competitividade por um alto número de motoristas cadastrados, logo a necessidade de realizar jornadas exaustivas para conseguir uma renda considerável.

Conseguimos entender, então, que eram reais as vantagens que as empresas de aplicativo de motoristas poderiam ter a partir do momento que se atentassem ao problema da jornada de trabalho com qualidade de vida para os profissionais. E listamos algumas das principais vantagens:

- Aumento da satisfação por parte dos profissionais motoristas ao utilizar os aplicativos;

- Diminuição no número de churn de motoristas insatisfeitos com determinados aplicativos;

- Diminuição da percepção de insegurança por partes dos passageiros em relação a sonolência e cansaço dos motoristas;

- Por consequência, diminuição nas avaliações negativas de passageiros;

Idealizar

Uma das partes mais esperadas do processo, né non?! A hora de colocar todas as ideias nos post-its coloridos e viajarmos juntos na resolução desse problema.

Tivemos uma diversificação de áreas e sinergia muito boa no nosso grupo, resultando em escuta ativa e discussões construtivas com muita maturidade. O que ressaltou a importância do trabalho em equipe em resoluções de problemas e a relevância de ter profissionais com conhecimentos diversos trazendo riqueza nas percepções. Éramos: um designer, um advogado, um estudante de Letras e eu, uma estudante de Arquitetura e Urbanismo (sim! mas fica pra um próximo post explicar isso).

Então, segue de forma digital como ficaram os nossos post-its coloridos de ideias:

Elegemos as ideias mais interessantes e que faziam sentido para o negócio - as empresas - e então sintetizamos nas seguintes:

Prototipar

Prototipamos inicialmente no bom e velho papel. Cada um explorando suas habilidades manuais e desenhando a sua visão de como poderia se materializar as ideias:

E aí, enfim, chegou a hora de prototipar tudo no queridíssmo Figma! Como a nossa proposta de solução não era um novo produto ou serviço, mas sim features dentro dos aplicativos de motorista, escolhemos a UBER como empresa que seria redesenhada. Por isso procuramos representar com o máximo de fidelidade o design system deles.

E aqui está os primeiros momentos do nosso protótipo, abrindo os olhinhos e primeiros grunidos ao conhecer o mundo onde acabava de nascer:

[Tela anterior]: motorista offline clica em INICIAR para ficar online e receber corridas e clica em OBJETIVO DO DIA;

1ª tela: o motorista define o valor que gostaria de acumular no dia;

2ª tela: o sistema faz a estimativa da quantidade de viagens que ele precisa fazer e o tempo estimado para realizá-las, ou seja, sua carga horária do dia;

3ª tela: uma barra lateral acompanha e indica a performance do motorista de acordo com o objetivo definido;

4ª tela: artigos, dicas e instruções para auxiliar os motoristas a conquistar seus objetivos com qualidade de vida.

Testar

Mas é claro que nenhum filho é perfeito e por isso precisávamos deixar nosso protótipo crescer no mundo e permitir ser moldado por ele. Por isso, realizamos testes de usabilidade para entender quais eram os pontos que poderíamos evoluir na nossa solução e se ela realmente fazia sentido.

Assim, coletamos diversos feedbacks relacionados a: disposição dos componentes; tamanho da fonte nos artigos e quantidade de caracteres; confusão na hora de ver os ganhos totais acumulados do mês; mensagem de incentivo ao descanso ou outros compromissos; entre outros.

Então, nosso protótipo amadureceu e chegou em um resultado final:

Cique aqui para navegar na versão de teste no Figma.

Acreditamos que ao possibilitar que o motorista de aplicativo defina seu objetivo do dia, tenha as estimativas de corridas e tempo trabalhado em mãos e o acompanhamento da sua evolução, ele conseguirá ter maior controle e visualização da sua jornada de trabalho diária. E poderá, assim, fazê-la com qualidade de vida, planejando e julgando de acordo com suas preferências. E obtendo apoio e mensagens de incentivo sobre elas. Seja um forró numa quinta a noite, um curso de inglês ou ir a academia.

Parte da proposta de solução é que haja um mapeamento de perfil de cada motorista. Entendendo o seu perfil (estado civil, se possui filhos, preferências, objetivos e interesses) seria possível indicar artigos específicos para cada motorista e estruturar parcerias com instituições, estabelecimentos, clínicas e eventos afim de proporcionar uma cartela maior de benefícios que os auxiliem na busca de estabilidade financeira, emocional e mental.

Os trabalhos informais merecem uma jornada de dignidade e qualidade de vida!

Obervações:

Uma das propostas de solução que havíamos pensado era a limitação do tempo de trabalho do motorista. Chegando às 12 horas trabalhadas, o aplicativo colocaria o motorista em estado offline. Estávamos em processo de estruturação dessa ideia quando as águas de março chegavam fechando o verão e adivinha?

São Paulo, 4 de março de 2020 — “[…] A nova ferramenta vai fornecer notificações ao motorista quando ele se aproximar do limite de 12 horas online conduzindo o veículo em um único dia. Atingido esse limite, ele será automaticamente desconectado e não poderá utilizar o aplicativo pelas seis horas seguintes. Passado esse período, o motorista pode ficar online novamente para receber solicitações de viagem. A ferramenta mostra o tempo online e rodando, facilitando que o motorista tenha visibilidade do período de tempo que está dirigindo usando a plataforma da Uber.”

Ora, ora, que coincidência boa!

Aprendizados

Essa jornada prática e real exemplificou tantos ensinamentos teóricos que faço questão de reforçá-los:

  • Conceitos são subjetivos!
  • Logo, conceitos precisam ser estudados sob a ótica do usuário direto;
  • Imersão na realidade do usuário traz um sabor relevante pra entendê-lo;
  • Motivações, as pessoas são movidas por motivações;
  • Tem que fazer sentido pro usuário e também tem que fazer sentido pro business;
  • Diversidade importa, sempre! No mundo, nas salas, nas equipes, nos ministérios, no BBB.
  • Diferentes backgrounds geram diferentes pontos de vista e isso é rico demais!
  • Trabalho em equipe é crucial! E conceitos de escuta ativa, creative confidence e CNV não são mimimi, são reais, realíssimos;
  • Não se apegar a ideia, se apegar ao problema;
  • Feedback é presente;
  • Testar, testar, aprender, e testar de novo;
  • Mentorxs são luz raio estrela e luar. Obrigada Vivi DelvaUX e Malu Garcia!
  • Confiar no processo de aprendizado da Tera funciona mesmo. Valeu Tera!

Por fim, como aprendizado destaco aqui um agradecimento especial ao meu grupo: Pedro Mattatia von Gal, Gabriel Sanpêra, ou Pêra e Mateus Augusto. Mesmo sendo a única mulher no grupo e em um mundo onde o machismo no meio profissional infelizmente ainda prevalece, me deparei com colegas homens que sempre me trataram com muito respeito, respeitaram e ouviram a minha voz, com encorajamento mútuo e uma experiência muito especial e positiva, como deveria ser com qualquer mulher. Obrigada pela parceria, pessoal!

E assim nasceu o meu primeiro estudo de caso de UX :)

Estou aberta a qualquer feedback ou comentário!

Obrigada!

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Luisa Saraiva
Somos Tera

UX Researcher — e às vezes umas poesias, umas trilhas e umas teimosias