Não dá para falar de diversidade em tecnologia sem falar de racismo estrutural

Daniel Gonçalves De Sousa
Somos Tera
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12 min readDec 15, 2019

Entenda por que é importante encarar o racismo de frente e como isso pode ajudar na evolução de negócios e produtos de tecnologia.

Observe por alguns minutos: qual a porcentagem de pessoas negras que trabalham em sua empresa? Quantas delas estão trabalhando nos times de tecnologia e desenvolvimento de produtos digitais? Quantos negros você já ouviu palestrando sobre as chamadas profissões do futuro?

Passei boa parte de 2019 buscando entender qual a melhor forma de abordar Diversidade Racial na Tera. Dos 35 colaboradores aqui, neste momento (novembro/2019) sou um dos 3 que se identificam como negros (pretos ou pardos) e esta é minha primeira experiência trabalhando no setor de tecnologia.

Ao ver o time crescendo e a representatividade de negros estagnando, decidi que era hora de compartilhar o incômodo.

Ser uma escola referência em Produtos Digitais no Brasil coloca a Tera em uma posição privilegiada no debate sobre o futuro do trabalho — e nos permitiu observar como o debate sobre diversidade em tecnologia nas empresas não é racializado.

Em setembro de 2019, uma pesquisa da Tera com mais de 500 respondentes trouxe a constatação: pessoas negras são 17% dos mais de 2.500 estudantes em nossa comunidade.

O incômodo dos primeiros meses pensando sobre isso me levou a um lugar de pesquisa e estudo. Queria entender como trazer mais pessoas negras para a Tera e para a área de tecnologia.

Diversidade é rentabilidade?

Um estudo da consultoria McKinsey publicado em 2018 demonstra que:

Empresas que investem em diversidade racial e étnica são 35% mais propensas a obter retornos financeiros acima da média nacional de seu setor.

Dados como esse parecem fazer sentido: quanto maior a diversidade, maior a chance de ter novos pontos de vista sobre o negócio que ajudam a diminuir riscos e alavancar a performance. Descobri que esse estudo da McKinsey vem sendo o principal argumento para convencer empresas a tomar a decisão de criar programas de diversidade racial.

Nada contra quem usa esse argumento, mas o aumento da rentabilidade é apenas um resultado da ação. Imagino que ter isso como único foco gera expectativas difíceis de serem alcançadas e, talvez, até mesmo mensuradas numa relação direta de causa e consequência. Rentabilidade em quanto tempo? Em quais setores? Por quanto tempo a empresa continuará lucrando? Como medir esse aumento?

Quando falamos do futuro das pessoas no trabalho, essa questão ganha dimensões bem mais complexas do que a simples rentabilidade de um negócio.

Falar sobre futuro do trabalho é reconhecer que, por mais que o mundo se transforme e a inovação traga mais robôs e automações, o foco da evolução de todos nós estará cada vez mais na capacidade humana de aprender e se relacionar.

Mas o que acontece quando as relações estão estruturalmente corrompidas por um inimigo que, embora onipresente, é muitas vezes invisível? É nesse campo de reflexão que aportamos quando falamos de racismo estrutural.

E é para dar luz a isso que, na Tera, optamos por seguir outro caminho. Antes de pensar em resultados econômicos, entendemos que é fundamental mapear o problema, levantar informações e criar caminhos possíveis para a solução. Logo de cara, constatamos que a Tera não é um caso isolado — e o problema é muito mais profundo.

Skill Gap é uma oportunidade

O Brasil passa por um momento de crise econômica e não é segredo que temos 13,4 milhões de pessoas desempregadas. Desse total, cerca de 8 milhões (ou 65%) são negras.

De outro lado, o setor de tecnologia ignora a crise e estima-se que 75 mil novas vagas em tech poderiam ter sido abertas em 2019 caso houvesse mão de obra capacitada.

Enquanto isso, a pesquisa Quem coda o Brasil?, realizada pela Thoughtworks em parceria com a Pretalab, mostrou que em 32,7% das equipes de tecnologia do país não há sequer uma pessoa negra.

Onde estão as pessoas negras?

Foi para responder a essa pergunta que decidimos trazer a Suzane Jardim, professora de História e pesquisadora em questão racial no Brasil, para nos dar uma aula sobre Raça, Racismo e Educação no Brasil.

Suzane Jardim | Foto: Sofia Colucci

Suzane esteve conosco no dia 13/11 com a proposta de abrir uma conversa difícil e nos ajudar a entender as raízes históricas que nos trouxeram a este momento.

Falar sobre racismo é um tema espinhoso por si só.

É por isso pedimos ajuda para alguém que tem grande domínio no assunto — e ela, excelente comunicadora, nos ajudou a refletir coletivamente sobre as dimensões mais complexas dessa questão.

Por exemplo: quando ocorrem casos de injúria racial, com pessoas negras sendo barradas em algum estabelecimento ou xingadas com termos pejorativos, há em geral um sentimento forte de incômodo coletivo. Mas o racismo vai muito além de situações como essa — e muitas vezes não é compreendido e nem mesmo percebido. Parte disso começa pela confusão entre racismo, discriminação e preconceito.

Qual é a diferença entre preconceito, discriminação e racismo?

Preconceito

Preconceito é uma opinião feita de forma superficial em relação a determinada pessoa ou grupo, que não é baseada em uma experiência real ou na razão. Se manifesta como crença, e não é consciente. Seu impacto é psicológico, causa sofrimento psíquico. Um exemplo de preconceito é acreditar (opinião/crença) que uma pessoa obesa não emagrece porque é preguiçosa. Todas as pessoas estão sujeitas a sofrer e manifestar preconceitos.

Discriminação

Já a discriminação, mais que simplesmente uma opinião ou crença, é o preconceito tomando forma e causando impacto material. Discriminação são ações, conscientes ou não, determinadas pelo preconceito, que conduzem à rejeição e exclusão de um certo grupo de pessoas, impedindo que tenham avanços na vida econômica e material. Um exemplo de discriminação é um executivo que barra (ação) a contratação de mulheres porque elas podem engravidar.

Racismo

Antes de conceituar o que é racismo, é preciso entender o que é raça. Todos aprendemos que, biologicamente, raça só existe uma: a humana. Então, quando estamos falando de relações sociais, não estamos falando de um conceito biológico e sim social, uma vez que há impacto nas sociedades humanas.

Raça diz respeito à forma com que as pessoas enxergam e reconhecem umas às outras, ou seja, um conceito construído a partir da suposição de uma superioridade moral, cultural, política e econômica de um grupo sobre o outro.

Racismo é uma construção social que tem origem nesses conceitos.

É uma estrutura formada por preconceitos e discriminações que se fixam na sociedade promovendo hierarquias raciais.

Apesar de operar a partir de crenças, o racismo se manifesta em ações, construindo uma hierarquia onde determinado grupo racial é tido como superior moral, cultural, econômica ou politicamente diante dos demais.

Em cada parte do mundo, essa estrutura de hierarquização racial opera de maneiras diferentes. No Brasil, essa hierarquia se dá pela superioridade das pessoas brancas em relação, principalmente, às pessoas negras: um sistema que se arrasta há mais de 500 anos.

Visão Histórica

Pense no período do descobrimento. Países europeus, capitaneados por Portugal e Espanha, alcançam um território vastíssimo e pouco explorado.

Em um momento histórico onde ter terras (e extrair valor delas) determinava a riqueza, povoar esse “Novo Mundo” era o melhor investimento que um país europeu podia fazer. Mas a população desses países não era suficiente para habitar, cultivar e explorar as novas terras, e com isso inicia-se um longo ciclo de escravidão - primeiro com indígenas e depois com povos africanos.

É importante notar que o ciclo de escravismo acontece em um momento em que os povos europeus começam a ter contato com pessoas de outros continentes que possuíam outra cultura, religião, organização social e cor de pele. Essa diferença foi suficiente para estabelecer as fundações do que chamamos hoje de racismo estrutural.

Se formos observar, entre 1500 e 1888 (ano da Lei Áurea), há uma série de acontecimentos históricos que foram determinantes para a sociedade que conhecemos hoje: Renascimento, Humanismo, Criação dos estados-nação, Reforma Protestante, Invenção da imprensa, Iluminismo, Revolução Inglesa, Revolução Francesa, Revolução industrial. O que todos esses acontecimentos têm em comum? A concentração geográfica em alguns poucos países europeus e um impacto gigantesco na visão de mundo que molda nossa civilização até hoje.

Você já pensou que nunca estudamos o que estava acontecendo nas artes plásticas em Gana, no Congo ou em Angola durante o período do Renascimento, mas sabemos tudo sobre artistas que viviam em minúsculas cidades do norte da Itália?

O processo de apagamento da identidade de países não europeus foi um processo violento e consciente. Passamos a acreditar em uma visão única de mundo, que define o que é belo, o que é bom, o que é útil a partir de um ponto de vista restrito e racialmente hierarquizado.

Se os povos não europeus eram visto como inferiores, justificava-se a escravização. Em 350 anos, cerca de 10 milhões de africanos de diversos povos e etnias foram trazidos à força para as Américas, sendo que mais de 4,5 milhões foram destinados ao Brasil — quase a metade.

Ao contrário do que fomos ensinados a acreditar, o período de encerramento do tráfico negreiro é estimulado pelo perigo do que chamavam de africanização do Brasil. Ou seja, o negro africano era visto como responsável pelos desvios morais e éticos dos brancos que aqui viviam e eram também vistos como culpados pelo tratamento violento que recebiam de seus senhores.

Acabar com o tráfico de escravos era uma necessidade de salvar a raça branca. Como advertiu Evaristo da Veiga, redator do jornal Aurora Fluminense,

“A nossa civilização, e aperfeiçoamento moral se retarda com a introdução contínua destes bárbaros, que vem animar a inércia e estimular o despotismo e depravação de senhores injustos.”

A decisão de libertar gradualmente os escravizados, com leis como a do “ventre livre” e a “lei do sexagenário”, vem acompanhada de medidas que visam proteger o status social e a posição hierárquica adquirida pela população branca. Eles não poderiam ter seu poder ameaçado.

Duas medidas aqui são extremamente importantes para entendermos a estrutura racista que fundamenta as relações no Brasil: o estímulo à imigração europeia e a Lei de Terras de 1850.

Com o fim do escravismo, o mais lógico seria que os ex-escravos fossem indenizados, recebessem direitos de cidadão e pudessem trabalhar com remuneração. Entretanto, pelo perigo que representava colocar a população negra em pé de igualdade com a população branca, o governo brasileiro passa a estimular a vinda de imigrantes europeus ao Brasil, para suprir a mão de obra necessária.

A imigração em massa se inicia ainda no período imperial, começa a crescer em 1850 e tem seu pico a partir de 1880, próximo à abolição. Ao contrário dos negros, os imigrantes brancos recebem salário (repassando parte aos fazendeiros que os empregavam) e o Estado se encarrega de fornecer a infraestrutura básica de sobrevivência que era negada à população negra, como educação e saúde.

Em outra frente, a Lei de Terras de 1850 pretendia dificultar o acesso à terra por parte da população pobre e ex-escrava do Brasil. Até 1850, a propriedade de terras poderia ser garantida por doação ou pela simples posse de um “terreno sem dono”. A partir de 1850, ano da lei que proíbe definitivamente o tráfico transatlântico de escravos, a legislação passa a estabelecer que apenas pela compra poderiam as terras do Estado ser repassadas para particulares. Os preços extremamente altos de compra e regularização garantiam aos latifundiários a manutenção de seu domínio socioeconômico. Conservavam-se assim as raízes da exploração da raça dominante no Brasil e a reprodução de sua desigualdade racial.

A Redenção de Cam - Modesto Bronco (1895)

O incentivo à vinda dos europeus encontrava apoio na ideia racista de que era preciso “branquear” a população brasileira, formada majoritariamente por negros.

Era o caminho para forjar um “povo brasileiro” próximo ao das populações avançadas da Europa.

Essa ideia, chamada de eugenia, é suportada por intelectuais e autoridades da época como José Batista Lacerda, diretor do Museu Nacional no Rio de Janeiro, que, ao participar do I Congresso Internacional das Raças em julho de 1911, afirma:

“É lógico supor que, na entrada do novo século, os mestiços terão desaparecido no Brasil, fato que coincidirá com a extinção paralela da raça negra entre nós”.

Sem direito a possuir terras, sem reforma agrária e sem emprego no campo, a população até então escravizada migra para as crescentes áreas urbanas em busca de alguma renda para sua subsistência.

E seria no mínimo coincidência que, 2 anos após a Lei Áurea, um decreto presidencial alterasse o Código Penal tornando crime o fato de transitar pelas cidades estando desempregado, sem renda e sem domicílio (decreto 847/1890). A punição inicial variava de 15 a 30 dias. No mesmo decreto, a prática da capoeira é criminalizada com pena de 2 a 6 meses de prisão.

Consequências

Cento e trinta anos após a proclamação da Lei Áurea, a população negra continua segregada. A migração para as cidades não significou que os negros tivessem acesso a trabalho e educação. Vivendo em cortiços nas regiões mais centrais ou em favelas nas periferias, invisíveis para a população branca, formamos uma silenciosa maioria. Um grupo minorizado, ou seja, a maioria numérica não está representada nas posições de poder.

Crédito: Suzane Jardim

Como vimos, o racismo é um sistema de organização social que se apoia na pretensa hierarquia de uma raça sobre outra. Ao olhar para alguns dados demográficos, é impossível não perceber o quanto esse sistema está entranhado na estrutura do país:

  • Em 2016, a taxa de homicídios de negros foi duas vezes e meia superior à de não negros e a taxa de homicídios de mulheres negras foi 71% superior à de mulheres não negras. Em um período de uma década, entre 2006 e 2016, a taxa de homicídios de negros cresceu 23,1%. No mesmo período, a taxa entre os não negros caiu 6,8%.
  • Dos 820.000 presidiários no país, negros são mais de 65%. Negros correspondem a 75% da população classificada entre os 10% mais pobres do país.
  • A taxa de analfabetismo é mais que o dobro entre pretos e pardos (9,9%) do que entre brancos (4,2%), de acordo com a PNAD Contínua de 2016.
  • Quando se fala no acesso ao ensino superior, a coisa se inverte: de acordo com a PNAD Contínua de 2017, a porcentagem de brancos com 25 anos ou mais que tem ensino superior completo é de 22,9%. É mais que o dobro da porcentagem de pretos e pardos com diploma: 9,3%.
  • A média de anos de estudo para pessoas de 15 anos ou mais é de 8,7 anos para pretos e pardos e de 10,3 anos para brancos.

Diversidade Racial e Tecnologia

No processo de transformação digital que estamos passando, o acesso ao desenvolvimento de tecnologias representa diretamente o acesso ao poder. Por isso, assusta saber que 32% das equipes de tecnologia no Brasil não possuem sequer uma pessoa negra. Enquanto isso, na outra ponta, 71% dos entregadores que trabalham de bicicleta para aplicativos em São Paulo se declaram negros.

O processo histórico mostra que houve intencionalidade e consciência na construção do sistema racista que rege nossas relações sociais. É por isso que não acredito que o foco dos programas de diversidade deveria estar no aumento da rentabilidade das empresas.

Só superaremos o racismo se o combatermos de forma ativa, consciente e intencional.

Voltando às perguntas do início deste texto: qual a porcentagem de pessoas negras que trabalham em sua empresa? Quantas delas estão trabalhando nos times de tecnologia e desenvolvimento de produtos digitais? Quantos negros você já ouviu palestrando sobre as chamadas profissões do futuro?

A verdade é que nós existimos e estamos nos movimentando. Iniciativas como o UX para minas pretas, Afropython, Afrohub, Movimento Black Money, Blackrocks, Educafro, entre outros, estão unindo pessoas negras neste exato momento para capacitá-las a disputar as oportunidades desse novo momento histórico de igual para igual.

Se o racismo é um sistema que hierarquiza raças, sabemos que uma raça até agora tem se beneficiado desse processo. Por isso, se você é uma pessoa branca e leu até aqui, quero te convidar a ser um aliado na desconstrução desse sistema.

Estude, leia, aproxime-se dos movimentos negros que lutam por maior inclusão. Fale menos e escute mais as pessoas negras que convivem com você. Adote uma postura que vai além de reconhecer que o racismo existe: seja antirracista.

E bora construir junto esse tal de futuro do trabalho.

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Daniel Gonçalves De Sousa
Somos Tera

Seguidor de Jesus Cristo, defensor dos Direitos Humanos, vendedor na @somostera.