Nos pedais da empregabilidade — Um estudo de UX sobre a vida dos ciclistas de apps de entregas
Devido acontecimentos recentes envolvendo ciclistas que trabalham para empresas de entregas, os quais foram amplamente divulgados pela mídia, surge a oportunidade de estudar este fenômeno e sugerir soluções que levem em consideração os ciclistas e suas necessidades, sem inviabilizar o negócio de entregas com bikes.
Desafio inicial:
Como melhorar a qualidade de vida dos entregadores de aplicativo que usam bicicletas?
Restrições:
Prazo: 8 dias| Equipe: 4 pessoas | Verba: R$ 0,00
Cliente: Rappi
O conteúdo neste material foi elaborado sem o consentimento da empresa Rappi, a qual foi escolhida por propósitos educacionais.
Após a proposição do desafio, elaboramos uma Matriz CSD (certezas, suposições e dúvidas) para que pudéssemos iniciar a exploração do problema. Feito isto, fomos à região do Largo da Batata fazer pesquisa de guerrilha com os entregadores de aplicativos que ali estavam.
Este exercício inicial foi crucial, pois percebemos o quão influenciados nós estávamos pelas nossas próprias certezas. Devido desk research inicial em sites de notícias, blogs e redes sociais, acreditávamos que os entregadores sentiam-se exaustos devido a rotina em cima da bicicleta, além de explorados pelo aplicativo de entregas. Foi com este mindset que elaboramos um questionário qualitativo, o qual nos mostrou uma realidade diferente da que acreditávamos.
Hipóteses iniciais exploradas nas pesquisas:
- Jornada exaustiva.
- Falta de dignidade relacionada ao trabalho na rua.
- Ausência de segurança.
- Baixo rendimento financeiro.
Altos e baixos em cima da bike
Nossa amostra entrevistada, juntamente com pesquisas realizadas pela Aliança Bike, deu origem a um mapa de empatia e à jornada do nosso usuário, além de revelar a real persona do projeto e suas principais dores.
Descobertas:
- Os entregadores entrevistados amam andar de bicicleta.
- Quanto mais pedalam, mais eles conseguem ganhar.
- Um dos motivos que os fazem escolher a Rappi é justamente a ideia de que, como o app atua em outras áreas além do ramo alimentício, mais demandados eles são e, consequentemente, ganharão mais.
- Dos 4 níveis que um entregador pode ter, o quarto é o que melhor remunera, contudo eles relatam que é muita responsabilidade e que “dá muito B.O.”, pois lidam com dinheiro e pertences dos clientes.
- Sem exceções, para eles a pior parte do dia são as esperas. Segundo eles, cerca de 60% do tempo é perdido esperando serem chamados pelo app, que os pratos fiquem prontos (relatos de esperas superiores a 1h) e que os clientes saiam para receber os pedidos. Durante a espera eles não estão ganhando nada.
- Serem obrigados a esperar faz com que eles sintam-se desumanizados. Como não são vistos e não possuem voz dentro do app, seu tempo não é valorizado.
- Para eles, pedalar está diretamente ligado à saúde e à liberdade, mas sabem que não é atividade para sempre.
- Eles sabem que é um trabalho duro, mas veem na Rappi e outros apps de entrega uma oportunidade para saírem do desemprego, já que devido à pouca idade não possuem experiência que os qualifique.
- Um dos entrevistados havia acabado de sair da Fundação Casa. Segundo ele próprio, “é melhor isso do que fazer bobagem”.
- Em sua maioria estão em busca de posição fixa no mercado de trabalho.
- O aplicativo Rappi possui modelo de emprego fixo, mas os entregadores entrevistados preferem ser flutuantes e fazerem seus próprios horários.
- Alguns relatam que é ótimo não ter patrões.
Persona
Com as informações coletadas nós fomos capazes de identificar a persona, a qual descrevemos utilizando um formato de storytelling para nos auxiliar no restante da exploração.
Resumidamente, Caique é um jovem de 19 anos, negro, morador da periferia de São Paulo, o qual perdeu o ‘bico’ que fazia recentemente. Apenas com o ensino médio, o mercado de trabalho tem sido duro com Caique, mas ele viu na Rappi uma oportunidade de sair do aperto.
Depois desta exploração inicial, nos voltamos ao desafio proposto. Contudo, percebemos que o termo “qualidade de vida” era extremamente amplo e vago ao mesmo tempo, revelando que precisávamos de mais explorações.
Sabemos que muito pode ser feito para tornar o dia dos ciclistas mais agradável e seguro, mas queríamos encontrar a raiz do problema, sem que o negócio de entregas da Rappi fosse inviabilizado.
Decidimos então utilizar o framework Jobs To Be Done, cruzando-o com o que descobrimos no User Jorney. Chegamos então a conclusão que o termo “qualidade de vida” para a nossa persona tem relação direta com o bom uso do tempo e com empregabilidade.
Nova Abordagem
Caique optou por dedicar seu tempo para um aplicativo de entregas pois não tinha experiências e ensino suficiente que o qualificasse para outros trabalhos.
O tempo dele pedalando/esperando está ligado ao quanto de dinheiro ele poderá receber ao final de sua jornada, o que influencia diretamente a qualidade de vida dele e de sua família. Caique pedala o mais rápido e pelo maior número de horas possível para fazer o seu dia render, fazendo sua jornada ainda mais insalubre e perigosa. Com esta jornada não sobra tempo para que ele se desenvolva profissionalmente para encontrar a ocupação melhor que tanto sonha.
Com isso, decidimos redefinir o problema para dar andamento aos trabalhos exploratórios.
Desafio reformulado:
Como ajudar jovens entregadores de bike a evoluírem pessoal e profissionalmente de forma sustentável para uma empresa de entregas como a Rappi?
Explorando Soluções
Avaliando a jornada do nosso usuário, suas dores e necessidades, surgiram algumas hipóteses de soluções que mereceram estudos mais aprofundados.
Nosso cuidado nesta etapa foi em estruturar soluções viáveis, sem abrir mão dos interesses da Rappi enquanto negócio.
Transformar o tempo de espera dos entregadores em investimento para sua evolução pessoal:
Sabemos que muito dos problemas com a espera dos entregadores surge devido a logística dentro dos parceiros Rappi. Isto posto, uma solução universal ao problema exigiria pesquisas mais profundas com outros stakeholders, além de alto investimento de tempo e dinheiro. Contudo, acreditamos que é possível utilizar o tempo ocioso dos entregadores de forma produtiva, trazendo uma solução educativa para dentro do aplicativo.
Criar ecossistema de contratação desses entregadores nos parceiros Rappi:
Como apontado anteriormente, empregabilidade é um dos principais problemas que a Rappi resolve para estes entregadores. Também sabemos que, para eles, o trabalho com aplicativos de entrega é transitório, pois estão em busca de emprego fixo. Nossa hipótese é que podemos integrar uma solução de empregabilidade no aplicativo dos entregadores, interligada com a solução educativa e/ou outras regras de negócio. Assim, entregadores que atingissem os requisitos básicos poderiam inscrever-se em vagas dentro dos parceiros Rappi, tornando-se pontos de contato nos estabelecimentos e influenciando uma mudança organizacional que valorize o tempo dos entregadores.
Ou seja, cremos que com a proposta educativa e de empregabilidade seremos capazes de reduzir não apenas a percepção do tempo de espera, mas a longo prazo fazer com que os restaurantes — agora com ex-entregadores empregados — , passem a respeitar o precioso tempo dos nossos Caiques.
Wireframes & Protótipo
Após o desenho de alguns wireframes mais robustos, imaginando dezenas de sequências de telas, optamos por desenvolver um protótipo de média fidelidade textual e alta fidelidade estética em relação àquilo que acreditamos ser um caminho correto para a marca.
As hipóteses que estávamos procurando validar nesta etapa eram relativas às funções de educação e empregabilidade e se elas possuiriam aderência junto aos entregadores. Por este motivo, nosso protótipo levou em consideração apenas a navegação destas funções, a fim de fomentar discussões durante as pesquisas e compreender sua viabilidade. Mantivemos a mesma estrutura de informações, acrescentando novas funcionalidades, as quais chamamos de Rappi Eduka e Rappi Futuro.
Rappi Eduka
No Rappi Eduka nossos entregadores terão acesso a conteúdos em áudio super simplificados, pensados para o seu desenvolvimento pessoal levando em consideração possíveis situações do cotidiano, como cumprimentar alguém ou falar números em inglês, por exemplo.
Rappi Futuro
O Rappi Futuro apresenta as vagas disponíveis nos parceiros Rappi que forem mais coerentes com o perfil do entregador em questão. É possível estabelecer requisitos mínimos para as vagas, criando hooks que farão com que eles permaneçam engajados com o Rappi Eduka, a fim de estarem aptos para as vagas.
Outro requisito minimo possível é a necessidade de um nível específico dentro do app seja alcançado para determinadas vagas, fazendo com que os entregadores tenham maior interesse nos níveis superiores que exigem mais responsabilidade e dedicação.
Testando hipóteses com os entregadores
Elaboramos um roteiro de pesquisa sobre a aderência das hipóteses que levantamos dentro da nossa aplicação e fomos a campo para testá-las.
O valor percebido da nossa aplicação de empregabilidade foi imediato. Chamou a atenção dos entrevistados a facilidade com a qual eles puderam simular a inscrição em vagas disponíveis, ressaltando o interesse em parceiros específicos e na função de busca de vagas nas proximidade.
Já a ferramenta educacional dividiu opiniões, muito por conta do tipo de protótipo que foi levado a campo. Ainda que tenhamos informado que as funcionalidades eram limitadas por se tratar de um teste, muitos entrevistados não compreenderam como esta ferramenta funcionaria, nos levando a crer que o método de pesquisa precisaria ser adaptado para este tipo de teste de campo. Um MVP de audio learning foi criado para trazer mais veracidade ao teste, contudo não foi possível testá-lo.
Conclusão
Os resultados foram animadores! Todo o processo que nos levou à decisão de seguirmos com esta abordagem ousada do problema mostrou-se recompensador. Os entregadores sentiriam-se mais valorizados sabendo que a Rappi se preocupa com o futuro deles após a jornada sobre rodas.
A solução de aprendizagem requer mais exploração e validações. Inicialmente acreditamos que há uma falta de interesse educacional por parte dos entrevistados, mas que por se tratar de um requisito para a solução de empregabilidade eles se adaptariam rapidamente.
Todo este estudo de caso é uma exploração inicial, a qual necessita de mais validações, testes e pesquisas com outras pontas do ecossistema de entregas da Rappi.
Backlog
As soluções aqui apresentadas e testadas fazem parte de um todo que não pode ser desconsiderado. Abaixo deixo uma lista com possíveis ações que poderiam ser estudadas para futuras implantações.
- Perfil humanizado dos entregadores para que eles passem a ter rosto e voz no aplicativo, fazendo com que eles sejam mais respeitados
- Microinterações que fomentem o bom relacionamento dos entregados com clientes e parceiros
- Trilhas de aprendizagem mais completas e sistemas de avaliações
- Equipamentos de segurança personalizados
- Fones de ouvido Rappi com uma única saída de som e microfone
- Atalhos de voz nos aplicativos e acessibilidade para uso em cima da bicicleta
- Mais pontos de contato entre a Rappi e seus entregadores pela cidade
- Substituição da música de espera das ligações para o SAC por conteúdos instrutivos
- Compreender em profundidade o motivos da falta de interesse em atingir níveis superiores dentro aplicativo
Notas adicionais:
- Este estudo nasceu em um desafio proposto pela escola Tera em seu bootcamp de UX Design ministrado entre os dias 17 e 24 de agosto de 2019.
- Quem realizou este estudo (em ordem alfabética):
Felipe Carriço, Gabriela Novaes, Giulia Buono, Guilherme Lenz, Wedja Tainelly. - A amostra das pesquisas foi pequena (9 pessoas) devido ao tempo proposto para o desafio e restrições com o número de pessoas disponíveis para a elaboração e execução das pesquisas. Sabemos que em um cenário real, outras rodadas de pesquisas seriam necessárias após estas primeiras, as quais estamos consideraríamos como warm up.
- Outros stakeholders foram mapeados durante toda a jornada dentro do ecossistema de entregas da Rappi. Contudo, devido às constrições do desafio, nos ativemos exclusivamente ao entregador.