Os dados têm dono?

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5 min readDec 16, 2019

É urgente falar sobre governança e uso adequado de dados em produtos digitais.

A estratégia da maioria dos produtos bem sucedidos passa pelo uso de dados dos usuários — seja para criar experiências mais personalizadas, oferecer upgrade no momento correto ou definir a lógica de viralização para crescer a base de usuários. Estamos todos — sociedade, empresas, governos — amadurecendo em relação a questões de ética e privacidade em relação ao uso de dados — afinal, os dados têm dono?

Estamos vivendo o momento “hype” dos dados.

Essa é a visão de Ricardo Cappra, Chief Scientist Officer do instituto de ciência de dados que leva seu sobrenome. Quando ele abriu a empresa, “não tinha nada do que existe hoje.

“Precisávamos baixar planilhas do Facebook com dados para serem cruzados” — algo impensável nos dias atuais, em que a privacidade e a transparência tornaram-se palavras-chave nesse contexto.

No último dia da Digital Product Week 2019, Ricardo Cappra participou de um bate-papo com Jessica Voigt, Cientista de Dados da ONG Transparência Brasil e Bob Wollheim, co-fundador da consultoria digital MuchMore e CSO da CI&T. Eles debateram sobre governança, transparência, modos de utilização e boas práticas que apontem para um futuro mais ético e positivo.

Qual é o momento atual dos produtos digitais?

Esta foi a primeira pergunta de Bob Wollheim para os participantes. Numa escala de zero a dez, em que etapa estão os produtos digitais brasileiros? Como usam dados, se é que usam?

Para Ricardo Cappra, nossos produtos digitais usam dados para analisar, mas não são construídos baseados em dados.

“Os produtos não são pensados para os dados, enquanto nos EUA a maioria dos produtos é.”

De acordo com ele, no mercado norte-americano, as empresas criam produtos com o objetivo de coletar a maior quantidade de dados possível.

“Mas o que elas vão fazer com os dados que retêm?”, provocou Bob. Para responder, Jessica lembrou que os dados são ativos.

“Estamos migrando para modelos de negócio em que prevalecerão os serviços, coisas muito mais contínuas. Comprar um carro inevitavelmente implicará um serviço, um acompanhamento de tudo o que faremos, trajetos, hábitos etc, com base em dados. É algo novo.”

E a ética, onde fica?

Empresas coletando mais dados implica questões muito delicadas, como privacidade e transparência. “Agora, as organizações estão sujeitas a uma legislação bastante severa e complexa”, lembrou Bob. Jessica completou:

“Quando falamos de ética de dados, geralmente pensamos em empresas que têm produtos digitais; mas a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) vai atingir todas as companhias que tenham qualquer tipo de retenção de dado pessoal — ou seja, qualquer dado identificável”.

Ela explicou que, no campo da ética dos dados, o que se vem discutindo é que não se pode tratar informações que estão vinculadas a uma pessoa sem que ela tenha dado consentimento para tal e sem que ela saiba o que está se fazendo com esses dados. “Este é o ponto a que chegamos hoje.

O impacto da governança

Ampliando o debate sobre governança de dados, Ricardo Cappra lembrou que o assunto só veio à tona depois que a internet surgiu. De acordo com ele, quando discutimos uma lei para isso, colocamos um maior peso na questão da governança.

“Pelo seguinte: imaginem que eu seja dono do Facebook e que tenha decidido armazenar os dados das pessoas e vou começar meu negócio a partir disso, antes de haver qualquer lei. Ou seja, o negócio é legal. Mas, no meio do trajeto, surgem as leis. E agora eu tenho que tentar adequar meu negócio para um outro modelo.”

Para Cappra, esse movimento ilustra o impacto que a governança vai causar em modelos de negócio já estabelecidos.

“Se, num primeiro momento, empresas pensavam em armazenar dados de usuários para gerar valor de negócio, hoje esse pensamento está perto do fracasso”, afirmou.

Jessica vê o momento atual com bons olhos.

“Vivemos tempos em que é mais relevante do que nunca preservar a nossa identidade. Então, obrigar as empresas a arquitetar e organizar os dados de forma que eles sejam facilmente geridos é um passo importante. Agora, sabemos o que está sendo feito com os nossos dados, se estão sendo passados para outra pessoa, etc.”

Regras são necessárias, mas precisam de cuidado na formulação

O pensamento de Cappra vai pelo mesmo caminho.

“Precisamos de regras, então é bom que elas estejam sendo formuladas. No entanto, a elaboração dessas leis precisa de ajustes. Impõe-se o consentimento ou não no fornecimento de dados. Mas em nenhum momento perguntaram para mim se quero ser um doador universal de dados, e eu quero.”

Cappra entende que vive em um mundo melhor graças aos “dados personalizados que criam produtos personalizados” para ele.

“Quero continuar doando meus dados para o Netflix, que melhora as recomendações; para o Spotify, que elabora listas mais precisas; pro Google, que sabe que estou pedindo uma pizza lá na cidade dos EUA em que estou, e por aí vai. Como essas regras vêm no modelo de leis, vêm no modelo de punição. Sim, precisamos das regras; mas precisamos também de outros elementos, relacionados à evolução na gestão dos dados.”

Dados como moeda

Cappra lembrou, também, que os dados já são a moeda mais valiosa que existe.

“Eles são comprados com dinheiro, com dólar, e é preciso fazer a conversão; mas já são, não existem dúvidas. Isso porque as startups e empresas de tecnologia são monetizadas pelo valor de dados que têm. Basta olharmos para a moeda que o Facebook criou, o Libra”.

Mas esse movimento traz impasses. “Afinal, se o Google pega nossos dados e vende para a Unilever, por que eu não ganho com isso?”, provocou Cappra.

Ele mencionou o que vem acontecendo na Europa, onde já existem “escritórios de dados pessoais”: organizações que fazem acordos com pessoas e vendem os dados delas para as empresas, recebendo um percentual cada vez que o processo é realizado.

Para ele, Bob e Jessica, esse tipo de intermediação é positivo, porque contribui para legalizar e oficializar um processo que, hoje, costuma passar totalmente despercebido pela maior parte dos usuários.

Assista ao bate-papo completo:

Ricardo Cappra, Jessica Voigt e Bob Wolheim — Digital Product Week 2019 — Tera

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