Como as empresas estão se adaptando às novas formas de trabalho?
Pesquisa da Tera em parceria com a agência Scoop&Co mostra que o formato de liderança pelo medo e hierarquia do cargo não consegue mais entregar resultados
Por Caroline Marino
(Matéria publicada originalmente na revista Época Negócios, nov/2019)
Quando assumiu a operação brasileira da Visa, em agosto de 2016, Fernando Teles percebeu que, para alcançar os objetivos estratégicos da companhia, era preciso mudar a empresa internamente; transformar sobretudo os modelos de trabalho.
Chegava ao fim uma era de 45 anos, quando a empresa americana aportou no Brasil. Um tempo marcado pelo modelo tradicional de comando, fortemente hierarquizado; com setores ensimesmados, funcionando isoladamente. Fernando abriu as portas. Instituiu uma política baseada na cooperação, com metas compartilhadas e uso da metodologia ágil.
Uma forma de gestão nascida na indústria de tecnologia, em 2001, proposta por 17 desenvolvedores. O Manifesto Ágil se apoia em quatro princípios:
• Indivíduos e a interação entre eles devem se sobrepor a processos e ferramentas;
• Software em funcionamento mais do que documentação;
• Colaboração com o cliente mais do que negociações de contratos;
• Responder a mudanças mais do que apenas seguir um plano.
Hoje, segundo Fernando, a equipe da Visa é coesa, alinhada com as metas e os propósitos da empresa e disposta a ouvir e solucionar os problemas. “União e colaboração foram fundamentais para alcançarmos nosso atual cenário de trabalho e entrega”, diz o executivo. “Aqui tentamos não ter perguntas não respondidas. Não existe informação que não possa ser dividida.”
As mudanças na gestão da Visa ilustram à perfeição a revolução nos modelos de trabalho, captada pela pesquisa (Re)Trabalho 2019, elaborada pela Tera, escola de desenvolvimento de habilidades digitais, em parceria com a Scoop&Co, agência de pesquisa de mercado.
“Liderar pessoas sempre foi um desafio, e a forma de fazer isso vem mudando nos últimos anos. O formato de liderança pelo medo e hierarquia do cargo não consegue mais entregar os resultados esperados”, lê-se no relatório do levantamento.
“Estar aberto ao erro, ter espírito de colaboração e adaptabilidade constante são algumas das características mais comentadas e que corroboram as dez habilidades do futuro, de acordo com o World Economic Forum.”
As três competências mais importantes, segundo o WEF, são resolução de problemas complexos, pensamento crítico e criatividade. Na comparação com o ranking de 2015, pensamento crítico subiu duas posições, e criatividade, sete (veja tabela mais abaixo).
O trabalho da Tera contou com a participação de 438 profissionais de indústrias de diversos setores. Deles, 7% eram freelancers. Para a maioria dos entrevistados, as empresas que valorizam formatos de trabalho horizontais e têm mais flexibilidade nas funções e cargos tendem a ser mais eficazes (veja quadros nas páginas 37 e 38).
“Estamos vivendo uma transição no mundo do trabalho, saindo de um modelo industrial, com uma linha de produção sequenciada, para um mais fluido e ágil, e que combina áreas que trabalham juntas”, diz Leandro Herrera, fundador da Tera.
A partir do momento em que as máquinas passam a desempenhar funções até então atribuídas aos humanos, nossa relação com o trabalho naturalmente muda. “As pessoas hoje em dia estão em busca de mais autorrealização”, diz Ligia Zotini, futurista e fundadora do ecossistema digital de educação Voicers.
Com a tecnologia auxiliando em algumas atividades, as pessoas poderão mesclar fontes de renda de acordo com suas habilidades, sem um trabalho específico. Afinal, diz ela, as pessoas, em geral, têm mais de um talento. Ligia cita um projeto piloto da Unilever, sobre flexibilidade no trabalho. Duas diretoras de RH exercem a mesma função, em semanas alternadas.
“O poder, hoje, está ao lado dos profissionais”, defende Fernando, da Visa. “São eles que definem onde e como querem trabalhar, e as empresas precisam estar abertas a essas questões.”
Na pesquisa da Tera, a quase totalidade se sente confortável ou muito confortável, para ter autonomia de fazer seus próprios horários de trabalho (96%), tomar decisões estratégicas (86%) e trabalhar sem liderança hierárquica (82%).
Uma das mudanças mais eficientes na Visa foi a implementação, em 2017, dos squads. Agora, antes de iniciar um projeto, é feita uma análise de quem deve ser chamado para que o resultado seja efetivo. Esses times reúnem gente de diferentes setores, como comunicação, vendas, consultoria e análise de dados. E não há distinção por nível hierárquico.
Para estimular o uso do pagamento eletrônico onde ainda predomina o dinheiro em papel, a Visa criou o “Cidades do Futuro”. O time responsável pela iniciativa conta com vice-presidentes, diretores e coordenadores, e é comandado por uma gerente. O próximo passo da empresa é formalizar a política de home office e flexibilização de horários. Apesar de não abrir números, Fernando ressalta que, graças aos novos modelos, a empresa cresceu dez vezes mais do que em 2016.
Outra descoberta da pesquisa da Tera é sobre a importância da autogestão: 73% dos entrevistados acreditam que esse arranjo é o caminho mais inteligente para atingir objetivos de forma rápida.
Nessa gestão mais sociocrática, lembra Leandro, da Tera, não há chefes e subordinados. Os papéis e as pessoas podem variar de acordo com o objetivo a ser alcançado. “Nesse caso, a empresa tem um propósito e se organiza para cumpri-lo”, completa.
Entre os dois mundos
Para os mais velhos, acima de 47 anos, a hierarquia é imprescindível.
“O momento é de migração. As grandes companhias sofrem mais com a disrupção digital, ainda há a sensação de que a liderança é importante”, diz Leandro.
De qualquer forma, segundo o fundador da Tera, sempre existirão profissionais para oferecer direcionamento e senso de prioridade — e isso independe da hierarquia. O modo de comandar uma empresa também muda.
“Hoje, o papel da liderança é menos o de direcionar e mais o de inspirar. Sai o chefe e entra o coach”
afirma Marcos Barros, diretor de produtos e negócios digitais do Banco Votorantim.
No cargo há cerca de dois meses, o executivo vem se reinventando para atender às mudanças do mundo do trabalho. Marcos conta que passou por duas mudanças significativas na carreira por causa da transformação digital e da entrada das fintechs no mercado. Até então, na gestão de crédito, suas funções eram mais analíticas.
“Além de estudar sobre as novas tecnologias, precisei desenvolver alguns pilares, como trabalhar mais perto do time, com menos hierarquia e mais colaboração”, afirma.
Hoje, a área trabalha 100% no modelo de squads, com várias áreas do banco envolvidas. As profissões e os cargos, diz a futurista Ligia, serão ressignificadas. “O trabalho repetitivo de escritório já não faz mais sentido; as pessoas buscam outras formas de realização”, defende a fundadora da Voicers.
Diretor administrativo e financeiro da distribuidora de energia EDP, Vanderlei Ferreira tem caminhado nesse terreno ainda pouco explorado pelas empresas da velha economia. Ele foi responsável pelo desenvolvimento do primeiro robô da companhia, ao lado do departamento de TI. Coube a ele também mapear o passo a passo dos procedimentos necessários para a digitalização de diversas atividades.
Hoje, a empresa conta com 150 robôs para a realização de atividades operacionais, como na área tributária e em folha de pagamentos, e com cargos novos, como auditor e gerente de robotização.
Vanderlei precisou dar novos contornos para sua função — deixou de ser um diretor apenas administrativo para se envolver também com TI.
“Lidava com uma equipe de 200 pessoas e passei a lidar, também, com robôs”, afirma.
Segundo Vanderlei, além do domínio para programar e reprogramar máquinas, sua gestão se tornou mais participativa e próxima dos funcionários.
Isso porque os profissionais que lidavam com o operacional dedicam-se hoje a atividades mais estratégicas.
“O time todo passou a ter mais voz, com profissionais liderando projetos na área”, diz. “Aquele mundo fechado, em que o líder passava a estratégia e dizia o que a equipe devia fazer, acabou.”
Mais flexibilidade
“Pela primeira vez na história, por causa da automação, teremos mais cargos sendo substituídos do que criados”, diz Rosa Alegria, CEO do projeto Millenium no Brasil e especialista em estudos sobre o futuro. “Nossa relação com o trabalho tende a ficar mais saudável”, aposta.
O tempo, como defende, deve deixar de nos escravizar, permitindo que resgatemos interesses e atividades abandonadas por causa do dia a dia no escritório. “Esse é o momento de requalificar a relação com o trabalho”, ressalta Rosa.
Nesse sentido, outra tendência que aparece forte na pesquisa da Tera é a do trabalho freelancer. Quase 40% dos entrevistados consideram ideal a combinação do contrato em CLT com os temporários. É a gig economy, ou economia de bicos, em tradução livre.
“As empresas devem dar voz aos colaboradores gig na companhia”, diz Robin Chase, cofundadora e ex-CEO da Zipcar, empresa americana de compartilhamento de carros, e autora de Economia Compartilhada — Como Pessoas e Plataformas da Peers Inc Estão Reinventando o Capitalismo. Dessa forma, eles vão oferecer um trabalho de melhor qualidade, além de diminuir o turnover.
Segundo Guy Standing, economista da Universidade de Londres, grande parte da mão de obra será admitida por meio de contratos online e internacionalizados.
“Empresas no Brasil poderão contratar profissionais na Índia, China ou Quênia sem que eles se desloquem de seus países de origem”, afirma.
Mas Guy e Robin ressaltam que, para isso, é preciso um trabalho coletivo, com melhores políticas de regulamentação para fornecer segurança econômica para aqueles que atuam nesse modelo.