Um pedido de melhores condições de trabalho
Um estudo de caso sobre e para os entregadores de aplicativos, desenvolvido durante o curso da Tera de Digital Product Leadership em 2020, junto a Carolina G. Luditza
Já imaginou o que é trabalhar por mais de 10 horas por dia sem nem mesmo ter onde realizar suas necessidades mais básicas, como beber água ou ir ao banheiro, e ainda não saber quanto vai conseguir tirar no final do dia? Essa é a realidade de boa parte dos entregadores de aplicativos.
Frente a isso, ao observarmos a crescente “uberização” do trabalho e os recentes protestos ocorridos no período da pandemia de Covid-19, nos quais entregadores de aplicativos reivindicavam melhorias para a classe, consideramos nos aprofundar no tema durante o projeto.
Em uma pesquisa conduzida pela Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Humano constatou-se que durante a pandemia, 62% dos trabalhadores estavam trabalhando mais do que 9 horas ao dia com 51,9% trabalhando 7 dias por semana.
Desafio: Como podemos ajudar os entregadores de aplicativos que estão insatisfeitos com o atual cenário que as plataformas de delivery proporcionam?
Tomando por base as principais reivindicações das manifestações, tínhamos como expectativa inicial o desenvolvimento de uma solução que trouxesse maior estabilidade para o trabalho dos entregadores — algo que provou ser mais complexo do que imaginávamos.
A seguir, a matriz onde levantamos as certezas, dúvidas e hipóteses que tínhamos ao iniciar o projeto (que depois foi complementada pelos insumos das pesquisas de mesa):
Material disponível sobre o tema é o que não falta. Desde matérias em diversos portais de notícia, pesquisas, vídeos feitos pelos próprios entregadores, até documentários. A maioria traz a discussão da precarização do trabalho, uberização e a situação estressada pela pandemia que culminou nos protestos.
Um deles é o documentário Vidas Entregues curta-metragem. O tema é sobre os entregadores de aplicativos de comida (iFood, Rappi, Uber) que trabalham de bicicleta:
Levantadas os dados em uma pesquisa secundária e construída a Matriz CSD, prosseguimos a fase de pesquisa/descoberta entrevistando 8 entregadores que nos ajudaram a entender os problemas reais desse contexto, como:
- Imprevisibilidade de renda.
“Quando o movimento está bom, a gente aproveita e faz até 16h horas, pra garantir, porque a gente não sabe se amanhã vai estar bom de novo.”
- Ausência de suporte dos aplicativos (mesmo quando são desligados da plataforma sem nenhuma razão clara).
- Tempo de espera no restaurante até sair um pedido e depois no cliente até virem buscar.
- Falta de qualidade de vida por ficarem muito tempo na rua e consequentemente pouco com a família
- Não terem pontos de apoio.
“Os aplicativos deviam ter um ponto de apoio pra nós, porque a gente fica na rua, não tem banheiro, não tem um lugar pra parar e esperar os pedidos… tinha que ter um apoio pra gente conseguir beber água, ter uma mesa pra almoçar. A gente senta na calçada pra poder comer. Até um lugar pra carregar o celular é difícil.”
Registro das entrevistas feitas com os entregadores:
Em seguida, falamos com 4 restaurantes (donos e gerentes). Fica claro que a maior insatisfação é o valor das taxas cobradas pelos aplicativos, que podem chegar até 30% do valor do pedido. Porém, apesar desse descontentamento, continuam nos aplicativos pois se não estiverem, o número de pedidos cai drasticamente.
“O alcance do ifood é melhor, ficamos meio refém deles.”
Também apareceram questões relacionadas à falta de transparência na comunicação das plataformas, ao descasamento entre o pedido estar pronto para sair e o horário que o entregador chega (seja antes ou depois) e ao extravio de pedidos (o que gera uma certa desconfiança na relação entre restaurante e entregador).
Aqui mostramos todos os problemas encontrados (para entregadores, em vermelho, e restaurantes em verde):
Persona: Marcos — Homem de 32 anos, classe C/D e única renda da família
Após as entrevistas pudemos traçar o perfil e a jornada do nosso usuário, o entregador.
“É preciso aproveitar as oportunidades que aparecem para conquistar o que desejo para mim e minha família”
Desde que perdeu o emprego há 8 meses, Marcos encontrou nos aplicativos uma forma de manter o sustento de casa. Apesar da sua jornada ser flexível, normalmente cumpre a mesma rotina todos os dias: acorda por volta das 7 horas e toma seu café da manhã, momento que compartilha da companhia de sua esposa e filho.
Por volta das 9 horas sai do Grajaú em direção à Interlargos, percurso que demora aproximadamente 30 minutos. Após percorrer uma distância de aproximadamente 13 quilômetros, se posiciona em pontos estratégicos como o shopping, postos de gasolina ou o mercado que fica na região.
Geralmente, por volta das 11 horas começam a chegar os primeiros pedidos. Já os últimos, não tem muita previsão, pois só volta pra casa quando consegue bater a sua meta diária, que é em torno de R$150,00 a R$200,00. Para atingir essa meta, trabalha cerca de 12 horas por dia, porém se perceber que o dia está rendendo, vai ficando mais tempo na rua:
Como “tempo é dinheiro”, sente-se angustiado quando fica ocioso, coisa que acontece com certa frequência. Seja esperando os pedidos chegarem, os pratos serem preparados ou os clientes o receberem. Esses tempos perdidos significam mais tempo na rua e menos tempo com a família.
Apesar de existirem essas pausas, Marcos não consegue conciliá-los com momentos em que possa descansar e se preparar para as próximas entregas, seja esticando as pernas, se alimentando ou até mesmo carregando seu celular. Para isso, conta apenas com a boa vontade das pessoas que trabalham nos restaurantes.
Ao mesmo tempo que Marcos gosta de trabalhar de forma autônoma, por se sentir livre, gostaria de ter algum apoio das plataformas e dos restaurantes, afinal, sente que o trabalho pesado é ele quem está fazendo.
Mapeamos toda a jornada do entregador durante um dia de trabalho, com o objetivo de ajudar a entender onde propostas de solução entrariam:
Analisando todos os resultados, propusemos uma solução que fosse viável das plataformas considerarem e que atendesse tanto os entregadores quanto os restaurantes, um programa de pontos de apoio.
Nesse canvas "Product Vision Board" damos a visão do que estamos tentando propor como solução para alguns dos problemas identificados:
A ideia é que as plataformas criassem um programa onde restaurantes poderiam se cadastrar como pontos de apoio parceiros, inserindo os benefícios que podem e querem oferecer, como água, banheiro, comida, espaço para carregar o celular, etc. Em troca, esses estabelecimentos receberiam benefícios, como redução do percentual no valor das taxas de pedido, ou períodos com valores de entrega reduzidos.
Para o restaurante, além dos benefícios monetários, a proposta também visa a construção de um melhor relacionamento com os entregadores, já que ao solicitarem os benefícios, seria exibido seu perfil para o atendente.
Do lado dos entregadores o benefício é evidente. Não só para os momentos entre corridas, mas também quando precisam esperar o pedido ficar pronto, tendo um espaço mais bem preparado para recebê-los.
Por fim, para as plataformas, acreditamos que seria uma solução com alto potencial de deixar restaurantes e entregadores mais satisfeitos, aumentando o NPS (notas de avaliação da plataforma) e consequentemente com ambos mais satisfeitos, os clientes finais teriam uma experiência melhor — todos ganham.
Abaixo listamos todos os benefícios mapeados para todas as pontas envolvidas:
Trabalhamos então em um protótipo de como poderia se materializar a solução, na perspectiva do entregador:
Se você trabalha para uma plataforma de delivery e tiver interesse em conversar conosco para trocarmos os aprendizados que tivemos, estamos super abertos! É só entrar em contato através do meu LinkedIn.
Aprendizados
- Tem muita coisa que acontece por trás das cortinas após um simples toque para finalizar um pedido de comida em um aplicativo de delivery.
- Conhecer a rotina de pessoas que fazem o serviço de entrega nos ajudou a valorizar ainda mais esse trabalho precarizado que está cada vez mais presente nos dias atuais.
- Como a desatenção com uma ou mais pontas de uma cadeia pode afetar todo o resto da mesma.
- E por fim, como na busca por introdução de novos serviços em nossas vidas, empresas não podem deixar de olhar as necessidades mais básicas dos envolvidos.
Referências e materiais indicados
- Documentários: Documentários sobre trabalho em plataformas
- Artigo: Estudo de UX para melhorar a qualidade de trabalho das diaristas brasileiras
- Matéria: Documentário discute a precarização pós reforma
- Matéria: GREG NEWS | DELIVERY
- Pesquisa: Condições de trabalho de entregadores via plataforma digital durante a Covid-19
- Matéria: Conheça os desafios de um entregador em época de pandemia
- Documentário: GIG — A Uberização do Trabalho (Trailer)
- Documentário: VIDAS ENTREGUES