Abaixo a família monogâmica!

Gabrielle Dal Molin
4 min readJan 25, 2019

Dia desses eu fui num samba com ela e com as amigas, nenhuma até então sabia que eu estava grávida, e eu não sei como começou, mas sei que a gente passou o rolé inteiro brigando. E apesar de sempre termos discutido muito a relação, não havia acontecido isso assim, em público.

É claro que eu sabia (desde quando mandei aquele áudio chorando na porta da clínica falando sobre as seis semanas e sobre toda minha vida que parecia arruinada naquele momento), que ia ser difícil pra ela digerir toda a questão. Porque ela é lésbica, tem aquele histórico de se relacionar com mulheres bissexuais e ser traída com homens (bis parem de fazer isso!) e porque claro, receber uma notícia de uma gravidez que você não esperava, é chocante. Nesses dois anos em que estivemos juntas, a sombra desses traumas monogâmicos existiu, embora não tenham feito, graças a deusa, ela se tornar bifóbica.

Apesar de não ser o mesmo caso, porque vivemos relações abertas com honestidade, nas quais não há a ideia de traição, de certa forma, acho que consegui enxergar que a “traição” nesse caso se deu pela gravidez, coisa que eu sempre disse que não queria e que não iria acontecer. Em algum momento, eu mesma me senti traindo meus próprios princípios.

Mas voltando ao samba, a notícia era mais ou menos recente, a gente tava tentando sobreviver à bomba e uma das coisas que ela disse que me faz pensar até hoje foi “ele conseguiu uma ligação com você que eu jamais terei”.

E é este o mote das reflexões desse texto.

Porque não há nada que nos empurre mais para a heteronormatividade do que uma gestação.

Sim, é possível que um casal de lésbicas geste um ser, inclusive estou torcendo pra esse negócio de não precisar mais de espermatozoide, mas ainda precisa. E aí, no geral as pessoas, quando se fala de filho, pensam em uma mulher e um homem. E se for pensar em duas mulheres, vai pensar em banco de esperma ou adoção. Ou seja, infelizmente o elemento masculino da equação sempre está presente. E aí como faz pra uma lésbica que se relaciona com uma bi não se sentir menor do que o cara hetero porque ele conseguiu engravidar a mulher amada pelos dois?

Eu queria muito ter podido não fazê-la se sentir assim, mas eu não pude. Porque a realidade da sociedade é mononormativa e heteronormativa. Porque a cultura hetero se sente superior à mulher lésbica, afinal está do lado da biologia. E por mais que eu seja mulher, feminista, bi e amar essa mulher lésbica, é meu discurso de “podemos fazer do jeito que queremos” contra todo o resto que diz que não.

E eu acabei dizendo, nesse dia, que ela estava sendo heteronormativa e bifóbica. E não me orgulho disso, mas na hora eu me senti tão mal que eu não tinha o que dizer a não ser mostrar de uma forma ríspida que esse não era o caminho.

Algo que dificulta muito é essa ideia de que filho tem que ser criado pelo papai e pela mamãe, essa maldição de família burguesa nuclear que nunca deu certo nem nunca dará. As crianças em boa parte da história humana foram criadas pela comunidade, o coletivo se responsabilizava pela segurança e educação desse ser dependente e isso extrapolava essa coisa de que o filho é do casal.

Se a gente ainda pensasse assim ou conseguisse retomar essa forma de viver, a gente não teria tanta dificuldade em ver um filho sendo cuidado por mais de duas pessoas, onde houvesse de fato ligação entre todas essas pessoas. Na verdade, a gente vê isso o tempo todo, com os pais que não assumem e com as avós, tias, e outros membros das famílias que se responsabilizam pelas crianças. O problema é que mesmo assim, existe essa ideia da falta e do desajuste, o que ainda se espera para as famílias é que elas tenham pai e mãe.

Daí eu penso, este ser vai vir ao mundo por obra genética de duas pessoas, mas eu não quero ser reduzida aos cromossomos que passei pra ele. Meu ser em totalidade contém a herança fenotípica que vou passar, mas também a minha visão de mundo, meus desejos e o que as pessoas que eu amo deixam em mim.

Sendo assim, será que em meu filho não existe nenhuma centelha do meu amor por ela também?

Eu acredito piamente que sim, e estou na tentativa de que ela também acredite, porque nesses dois anos, não consegui muito desassociar minhas emoções entre as duas relações, percebo que meu amor é partilhado e ao mesmo tempo multiplicado. Mas é difícil construir afetos assim numa sociedade de amores neoliberais e desejos capitalistas, na qual um filho costuma representar somente uma etapa a ser cumprida por um casal hetero. Sem esquecer que pai e mãe tem suas funções muito bem definidas e é por isso que uma terceira pessoa não costuma se sentir parte disso, mesmo que ela seja parte importante de uma das pessoas, ou até das duas.

Essas funções vendem imagens, produtos, serviços e modos de viver e sem querer a gente se acostuma a pensar assim também.

O título desse texto veio de um livro muito legal do Sergio Lessa, que conta a história da monogamia e como, para sermos anticapitalistas (comunistas no caso dele e anarquistas no meu caso), a gente precisa começar de casa.

Então a minha empreitada é essa, tentar construir essa família, retomando o modo de vida dos meus antepassados indígenas e das minhas companheiras anarquistas dos anos 20 que já falavam sobre isso, e ao mesmo tempo criando a minha forma específica de viver e amar.

Não tem sido fácil e talvez nunca seja, mas eu preciso tentar, porque para mim a maior revolução que posso fazer é a minha.

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Gabrielle Dal Molin
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Written by Gabrielle Dal Molin

escrevo, dou aula, faço bruxarias.

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