O Romântico é político

Introdução do livreto “Lo romántico es político” de Coral Herrera Gómez

Priscila Costa
5 min readApr 23, 2019

Tradução livre: Priscila Costa

Está na hora de começarmos a falar sobre amor, emoções e sentimentos em espaços onde eles tem sido ignorados ou invisibilizados: nas universidades, nos congressos, nas assembleias dos movimentos sociais e associações de bairros, nos sindicatos, nos partidos políticos, nas ruas, em fóruns cibernéticos e nas comunidades físicas e virtuais. É preciso desaprender e repensar o amor para criarmos relações mais igualitárias, saudáveis, mais abertas e mais livres. Precisamos conversar sobre como nos querer mais, nos darmos melhor, como criar relações bonitas e estender carinho à todas as pessoas ao invés de centrá-lo em uma só pessoa.

Há que se romper com a ideia de que amor só pode acontecer entre dois seres e acabar com os medos que nos separam: racismos, homofobia, transfobia, xenofobia, misoginia, classismo… para, então, criarmos mundos mais horizontais, abertos e solidários. Agora mais que nunca necessitamos nos apoiar e lutar juntos por melhores condições de vida e pelos direitos humanos.

O amor romântico que herdamos da burguesia do séc XIX está fundado nos padrões mais cruéis de individualismo: nos fazer acreditar que devemos nos unir de dois em dois é muito significativo. Sob a filosofia do “salve-se quem puder” o romantismo patriarcal se perpetua em seus esquemas narrativos nas histórias contadas por diferentes meios (cinema, televisão, revistas, etc) e nos ajuda a escapar de uma realidade que não gostamos. É assim que ao consumir estes produtos românticos aprendemos a sonhar com uma utopia emocional e política que nos ofereça um mundo melhor ao que está posto — mas somente para mim e para você, os demais que se virem.

Diante das utopias religiosas ou utopias sociais e políticas como o marxismo, o anarquismo, o comunismo, etc, o amor romântico nos oferece uma solução individual e nos mantém entretidos/as sonhando com finais felizes. O romantismo serve também para aliviar dias ruins, para nos levar a mundos mais bonitos, para sofrer e sermos felizes com histórias idealizadas de outros, para esquecer da realidade dura e cinza do nosso cotidiano. Serve, sobretudo para as mulheres, investirem mais recursos econômicos, de tempo e energia na busca pela cara metade acreditando fielmente que nossa vida será melhor quando encontrarmos o amor ideal, que vai nos adorar e acompanhar na dura batalha diária. Serve para adotarmos um estilo de vida mais concreto, para focarmos na busca por um par ideal, nos reproduzir, seguir a tradição e manter tudo como está.

As indústrias culturais e o setor imobiliário nos vendem paraísos românticos para nos trancarem em lares felizes. Não à toa uma grande parte da população permanece adormecida, protestando de suas casas, tolerantes com as perdas de direitos e liberdades, assumindo a realidade como desgraça o má sorte. Cada um remoendo suas dores e desesperos como vítimas solitárias de despejos.

Esses meios jamais promovem o amor coletivo já que poderíamos destruir o patriarcado e o capitalismo juntos. As redes de solidariedade poderiam acabar com as desigualdades e hierarquias, com o individualismo consumista e com o medo coletivo “ao outro” (os estranhos, os marginais, os imigrantes, os presidiários, os transexuais, as prostitutas, os mendigos, os estrangeiros). Por isso é preferível que nos juntemos de dois em dois ao invés de vinte em vinte: é mais fácil controlar duas pessoas trancafiadas em suas casas a grupos de gente que vem e vão.

O problema do amor romântico é que o tratamos como se fosse um tema pessoal, se você se apaixona e sofre, se perde o ser amado, se não está contente com a sua relação, se é infeliz e está entediado/a, se suporta desdém e humilhações por amor — é sempre um problema seu. Assim como nos dizem que é falta de sorte ou que somos nós que não escolhemos parceiros/as mais adequados/as. Porém, o problema não é individual, é coletivo: são muitas as pessoas que sofrem porque suas expectativas e sonhos são quebrados, porque temem ficar sozinhas, porque se veem obrigadas a cumprir com o ritual para demonstrar sucesso social e porque, ainda que nos vendam assim, o amor romântico não é eterno, não é perfeito e tampouco é a solução para os nossos problemas.

O pessoal é político, o romantismo é patriarcal. Assumimos modelos sentimentais, papéis e estereótipos de gênero e normas de conduta patriarcais através da cultura. E temos todos esses padrões muito bem incorporados ao nosso sistema emocional. Desse modo, as esquerdas e os feminismos também seguem ancorados em velhos padrões que nos custam muito desaprender. Elaboramos muitos discursos em torno da liberdade, da generosidade, da igualdade de direitos, da autonomia, no entanto, na cama, em casa e em nossa vida cotidiana não é tão fácil repartir igualmente as tarefas domésticas, controlar o ciúmes, assumir as separações, lidar com os medos, se comunicar com sinceridade e expressar sentimentos sem se deixar arrastar pela dor.

Não nos ensinam a lidar com sentimentos nas escolas, mas nos bombardeiam com padrões emocionais repetitivos e nos induzem a imaginar o amor através de uma relação heterossexual somente entre dois membros, com papéis bem distintos, adultos e em idade reprodutiva. Esse modelo não é só patriarcal, mas é também capitalista: Barbie e Ken, Angelina Jolie e Brad Pitt, Javier Bardem e Penélope Cruz, Rodrigo Hilbert e Fernanda Lima são alguns dos modelos de sucesso que a imprensa do coração nos vende, a comédia, as séries de televisão, as novelas românticas, os filmes, os telejornais, os reality shows… fácil entender, então, o porquê de darmos mais importância à busca por um paraíso próprio ao invés de buscar soluções coletivas.

Para mudar a realidade que vivemos temos que tratar politicamente o tema do amor, refletir sobre sua dimensão subversiva quando é coletivo, e sua função como mecanismo de controle de massas quando se limita ao mundo do romantismo idealizado, heterocentrado e heterossexista.

É necessário pensar o amor, desaprendê-lo, reinventá-lo, acabar com os esteriótipos tradicionais, nos contar outras histórias a partir de outros modelos, construir relações diversas baseadas em cuidado, carinho e liberdade. É necessário propor outros “finais felizes” e ampliar o conceito de amor, hoje restrito aos que se organizam de dois em dois. Para acabar com as solidões famintas de emoções exclusivas e individualizadas necessitamos mais generosidade, melhor comunicação, mais trabalho em grupo e mais redes de apoio.

Somente através do amor coletivo é que podemos articular politicamente a mudança. Confiando nas pessoas, interagindo nas ruas, tecendo redes de solidariedade e cooperação, trabalhando unidos para construir uma sociedade mais igualitária, equitativa e horizontal. Querermos uns aos outros um pouquinho mais. Ao pensar no bem comum é mais fácil dar e receber, mais fácil parar de se sentir sozinho/a, mais fácil escolher companhia a partir da liberdade e não da necessidade, e diversificar afetos.

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Priscila Costa

Tradução • Mulheres • Política • América Latina