pelas madrugadas, pela zombaria.
todo o solfejo da dor daquele momento parecia intrínseco a ela. toda a sujeira do ar invadia seus pulmões e sufocava seus alvéolos junto da fumaça e do pó. o coração em largos galopes: para no ar e pulsa ao tocar o chão. aquele suor nojento que escorria na sua pele enquanto todos a olhavam a incomodava cada vez menos.
ela sabia que aquilo não era vida. mas era pra ela. naquele turvo e escuro bar de leds coloridos, com aquelas pessoas que formavam a mais alta classe de quem não presta no submundo de uma metrópole. ali era a vida dela. e em cada sessão, a cada noite, o asco era mais confortável do que na noite anterior. não que estivesse, de fato, aceitado a derrota, mas sabia que era isso ou o peso de sofrer o resto da vida nas mãos daquele monstro.
e, jamais. jamais ela iria retornar pra perto dele, com aquelas mãos pesadas, ásperas, brutas, que insistiam em deslizar sobre sua pele, explorar suas linhas e curvas ainda sob esboço, poluir o ar de pinga e horror. não! não. ser observada ali naquele clube era melhor.
esperava nunca mais encontrar o canalha de novo. assim o fez do dia que fugiu da casa do pai até o dia que morreu. nunca teve notícias do escroto.
foda-se
pensou ela durante um peça e outra da lingerie que se desfazia ao chão. ela sabia que de alguma forma ela não ia acabar ali. ela era uma mulher, aos dezessete mas uma mulher, e carregava tudo nas costas como se fosse apenas uma má sorte avulsa que a vida esqueceu de desviar pra quem merecia de verdade. todas as cicatrizes agora eram só marcas de uma guerra travada pra sobreviver.
desde os 15, quando saíra de casa, foram dois anos e sete meses nas ruas, as vezes parecia ter um atração por aquele asfalto azul petróleo. já teve mais de uma oportunidade de largar aquilo e seguir sua vida, tudo bem que ao lado de pessoas que nada de bom traria pra vida, mas estaria longe da sarjeta.
a casa sempre tá cheia, ela acha que é pra vê-la, todos sabem na região do poder do olhar lascivo dela. ninguém nunca ousou cruzar seu caminho sem ao fazer, depois dar aquela virada pra “conferir”, nem homem, nem mulher resiste. ela tem razão foram ali para vê-la, o dono do tal espaço também sabe, não a toa, apesar de isso não significar nada, ela ainda recebe alguma atenção por parte dele. as vezes, até demais para um gordo que vende pó ter por uma garota de dezessete anos. mas dezessete é o novo 23 ali.
todo dia, depois da sessão e da carreira filtrada em suas narinas, ela recolhe os valores e vai pra pensão. lá, esconde tudo no assoalho, do dinheiro aos seus medos, esperando um dia ter a certeza que juntou o suficiente pra fugir pra sempre, de si e de todos.
é só angústia que ainda faz seu coração pulsar. angústia essa que vem herdada de uma infância difícil nos confins do titanzinho, angústias que em outros momentos fizeram cogitar pôr-se no descanso profundo e inevitável, irreparável e imutável, e, enfim, deixar tudo no esquecimento. ninguém saberia quem foi e ela nunca saberia quem seria.
foi naquele pequeno titã que cresceu e ali que ela jamais planeja morrer. para ela pode ser qualquer lugar. mas seria a pior notícia que o jornal poderia noticiar seria a sua morte nesse lugar numa machete. mesmo tendo certeza de que não tem garbo, excelência ou poder suficiente para pleitear uma manchete em qualquer jornal local.
como qualquer um.
apesar da vida difícil e de todo peso que se pode ter nos ombros, ela sempre soube que numa outra misancene poderia ter um grande futuro. ela tinha nascido para brilhar, mas brilhar nunca é fácil (ou recomendado) quando se nasce em lugares desprovidos de qualquer amor e compaixão. a vida é muito arisca com quem nasce ali.
se apaixonou uma ou duas vezes até completar os dezoito. um traficante e um playboy. dois que acabaram morrendo em alguma situação normal da cidade. ela então passou a vagar pelas ruas escuras e cambaleantes da cidade.
se descobriu um dia vagando naquele bairro onde as terras de Iracema encontram as águas de Iemanjá, deviam ser 2 ou 3 da manhã, com carros parando e a chamando. era algo comum, a rotina de uma mulher que anda nessa cidade. já não incomodava mais, estava dormente à isso. nesse dia, dia útil qualquer, ela se viu, mais de uma vez, apenas olhando o formigamento de uma cidade na madrugada. a dormência que parece impenetrável, nada que ela fizesse ia refletir além daquele momento.
foi assim que ela se despiu, peça por peça, como se no mar, sentados, flutuantes, cada um de seus expectadores contemplassem o momento. o vento que batia, vindo do leste, carregava tecido por tecido. um mix de areia, suor e frio colaram no seu corpo. ali estava a volúpia, em pé, numa praia lotada de espaços vazios, com todas suas curvas, suas dores e seus desejos. nua. uma mulher, amadurecida fora do seu pé, que sentia em sua espinha cada reflexo de dor que já passara, cada arrepio desgostoso que subia até a nuca. ela se sentou, enquanto aos poucos o mar parecia querer possuí-la, como todos os outros, aos poucos chegando mais e mais perto.
aos poucos a volúpia foi se juntando a mãe da fertilidade até não existir mais barulho, olhares e dor. todo aquele solfejo que um dia fora intrínseco sumiu. todo asco foi embora. mas todos os medos e economias continuam no assoalho esperando por sua fuga. e agora ela fugia deixando-os para trás. esperava voltar de forma diferente. dessa vez com menos calos e com menos dor.