Guia do Colonizador Espacial — Parte IV: Rumo a Marte

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Space Talks
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9 min readOct 3, 2021

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Para um alienígena visitante do sistema solar, Marte terraformado não será nada diferente do nosso planeta natal. Concepção artística por: Ittiz

Colonização de Marte. Essa ideia foi considerada com seriedade pela primeira vez em 2013 pela Mars One, que pretendia levar astronautas para um gigantesco reality show. Como arrecadar o dinheiro para fazer um objetivo tão ambicioso acontecer? Através de investidores e patrocinadores, visto que ele poderia acabar se tornando um dos programas mais assistidos do planeta Terra — literalmente um Big Brother Marte. O fim desse sonho veio com diversos estudos à respeito da inviabilidade da missão proposta, principalmente quanto aos custos financeiros envolvidos.

Três anos depois, em 2016, Elon Musk não perdeu a oportunidade de embarcar na onda e anunciou seus planos na conferência internacional de astronáutica (International Astronautical Conference, ou IAC). A SpaceX prometeu levar os primeiros seres humanos a Marte em 2025, arrecandando seus fundos através de lançamentos privados como os que são oferecidos à NASA. Hoje, a mesma já está em fase de testes para o foguete Starship (originalmente chamado de BFR, ou Big Fucking Rocket), que conta com 15 testes, dos quais o último foi bem sucedido.

A SpaceX prometeu levar os seres humanos a Marte usando o seu foguete que viria a ser chamado de Starship. Crédito: SpaceX

Hoje, quais desafios nos restam para levar a espécie humana para Marte? O que podemos esperar das próximas décadas?

Para responder essas perguntas, convido o leitor a se aventurar na quarta de 6 partes do Space Talks com os principais insights do Roadmap to Space Settlement, da National Space Society (NSS). Nesse Guia, vamos mergulhar nas 31 metas em que a humanidade vai mirar para progredir na exploração espacial, desde lançamentos orbitais até viagens interestelares.

A boa notícia? 1969 já reservava planos pela NASA para a conquista de Marte após levar homem à Lua. Seu foguete Saturn 5-C, sucessor do veículo que levou Neil Armstrong à Lua (Saturn V), foi concebido como um foguete para Marte, mas desistiram da ideia. Nossa missão já começa com a primeira de quatro metas fundamentais que nos levarão ao planeta Marte.

Tempo ruim

O primeiro empecilho da exploração humana de Marte consiste no risco de ela culminar em missões consideradas “deixar pegadas e colecionar rochas”, seguidas pela máxima popular do “tá visto” que acabou com o programa lunar Apollo. Esse risco será diminuído se o objetivo resultar em uma presença humana continuada com assentamentos em Marte por esforços privados ou governamentais (ou uma combinação dos dois).

As arquiteturas de missão são projetadas começando como um sistema sustentável, reutilizável e integrado que busca utilização de recursos in-situ (In-Situ Resource Utilization, ou ISRU) e outras tecnologias para autossuficiência.

Também podemos destacar o problema biológico. Tal como acontece com a Lua, existem dois grandes potenciais barreiras para o assentamento humano permanente de Marte: radiação e gravidade. Além disso, certas características marcianas oferecem desafios exclusivos como tempestades de poeira, química do solo perigosa, difícil acesso à água, baixas temperaturas noturnas e aclimatação a dias ligeiramente mais longos.

As tempestades de areia em Marte fazem as nossas parecerem inofensivas. Crédito: NASA

Outro problema em potencial é a proteção planetária. A possibilidade de vida em Marte atualmente parece remota, mas não pode ser totalmente excluída. É improvável que a existência de vida em Marte possa ser definitivamente comprovada ou refutada apenas por sondas robóticas. Há quem sinta que, até que algum resultado definitivo seja obtido, todas as espaçonaves devam passar pelas mais extenuantes processos de esterilização com grande custo, e que nenhum ser humano deva andar em Marte devido ao resíduo microbiano.

Que seja dada a largada

Os protagonistas na exploração preliminar de Marte serão rovers como o Perseverance, lançado pela NASA em 2020. Crédito: NASA/JPL-Caltech

Antes de efetivamente sairmos de casa para começar nossa jornada, os seres humanos serão precedidos pela exploração robótica de Marte para recursos in situ (meta #22). Ao invés de irmos ver com nossos próprios olhos as tais tempestades, essa meta visa aprimorar nosso conhecimento científico sobre o ambiente, além de prospectar dados para exploração humana e postos avançados.

Entre o conhecimento científico, podemos destacar o objetivo de explorar a existência de vida marciana, a localização e quantidade de minerais valiosos e água no estado sólido e líquido, o entendimento do clima e atmosfera marciana, e indicação de contaminantes que podem ser perigosos se levados de volta à Terra.

Quanto aos dados destinados à exploração humana, pretende-se encontrar os melhores locais para atividades humanas. Isso inclui fontes de água e gelo, concentração de salmoura e minerais, além de testes extensivos de máquinas e materiais para utilização de recursos in-situ. Será essencial realizar testes de painéis solares para conversão de energia, além de equipamentos para escavação e transporte de gelo, técnicas de construção autônoma usando solo marciano e métodos de cultivo de alimentos.

Saindo da Terra

Não é só de máquinas que é feita uma missão nesse calibre: precisamos também de cérebros e muitos, muitos cálculos. Essa parte do projeto está diretamente ligada à física e à matemática por trás da mecânica orbital —aquela responsável por fazer com que a nave esteja indo na direção certa, e não para o vácuo negro do espaço. Logo, é natural que a próxima meta seja Um Sistema Integrado de Transporte e Logística (#23).

Sistemas propostos para viajar entre a órbita da Terra e a órbita de Marte incluem veículos em que a tripulação estará em microgravidade durante o trânsito (popularmente conhecida como gravidade zero) e veículos usando métodos para criar gravidade artificial por rotação. A maioria dos sistemas que foram propostos usam propelentes químicos de um tipo ou outro. Outros sistemas de propulsão propostos incluem propulsão nuclear-térmica e propulsão elétrica.

A escolha do sistema de transporte é feita determinando a duração ou o tipo de viagem e a quantidade de carga que pode ser transportada. Veículos de trânsito reutilizáveis, por exemplo, ​​que podem retornar à órbita terrestre ou uma base logística em uma localização cislunar, reduziriam e muito o custo para voos repetidos até Marte.

Outra opção é utilizar um metrô em forma de nave espacial, às vezes chamada de Aldrin Cycler (em homenagem a Buzz Aldrin, que refinou o conceito). Esse sistema se moveria entre a Terra e Marte, sem realmente entrar em a órbita de qualquer planeta, o que exigiria menos combustível. Por causa disso, o transporte pode ser muito grande, o que pode fornecer muito mais proteção a radiação para os passageiros.

O Aldrin Cycler funcionará como um sistema de transporte integrado entre a Terra e Marte. Crédito: NASA

O pouso

Para pousar diretamente na superfície marciana após ter saído da Terra, ou da órbita terrestre, são propostos métodos como o aerobraking, paraquedas e foguetes de frenagem. Esses métodos podem ser usados ​​por sistemas que têm uma precisão de pouso muito alta e não dependem de uma base orbital pré-posicionada em Marte ou depósitos de propelente.

Considera-se também lançar o veículo da Terra, ou da órbita terrestre, para uma lua marciana ou a própria órbita do planeta primeiro e, em seguida, usar uma espaçonave separada para a superfície de Marte.

Fincando a bandeira

Projeto vencedor de uma competição da NASA para habitações em Marte. Crédito: AI SpaceFactory.

Após chegar, as primeiras tripulações serão responsáveis por se adaptar no ambiente, o que inclui construir uma base multifuncional marciana continuamente ocupada (#24). Para fazer acontecer, a base deverá experimentar diretamente as tecnologias de utilização de recursos in-situ, além de testar fontes de energia alternativas, habitats, técnicas de fabricação de propelente, processos de extração de oxigênio, métodos de jardinagem e técnicas de construção. Essas as tripulações devem dar atenção especial à extração e utilização de gelo de depósitos próximos para produzir água, oxigênio e combustível de foguete, para permitir que seus veículos retornem para a órbita da Terra ou de Marte.

É importante destacar, contudo, que qualquer base na superfície que venha a ser projetada ou destinada a ser temporária pode ser um beco sem saída. Essa base iria desperdiçar recursos logísticos cruciais, como a planta de produção de combustível necessária para apoiar a base e os veículos de subida, ou
exigiria o uso de todos os veículos descartáveis, tornando tais expedições a Marte muito caras para realizar ou manter. Logo, se possível, a primeira base deve ter a intenção de ser permanente, ao menos até as investigações e experiências demonstrarem que não é um bom local para uma base definitiva.

Isso nos leva à meta de um verdadeiro assentamento marciano (#25), que deverá, entre outras coisas:
• Continuar a pesquisa científica e exploração de Marte por membros da tripulação na superfície;
• Iniciar ou expandir a produção de combustível, além de água marciana;
• Iniciar ou expandir atividades de mineração e desenvolver técnicas
para localizar e fazer uso de recursos in situ;
• Iniciar a perfuração profunda para tentar encontrar qualquer salmoura
camadas abaixo da camada de permafrost;
• Utilizar minerais marcianos para criar materiais estruturais.

Para curta permanência (um mês), o habitat de superfície pode ser a própria sonda ou um habitat pré-posicionado. A sua localização provavelmente será determinada pela disponibilidade de grandes depósitos de gelo e oxigênio, para produção de água e propelentes. Uma peça importante de equipamento para o habitat é um movedor de terra que pode escavar o solo marciano para cobrir módulos de habitat com regolito, que fornecerá proteção da radiação e poderá escavar gelo enterrado.

Diversas concepções de bases marcianas incluem o uso de regolito (material do solo) para cobrir as estruturas.

De volta à casa

Voltar antes do jantar seria muito conveniente para todos, mas talvez leve alguns meses mais do que isso. Para retornar diretamente da superfície marciana para a Terra, a SpaceX propõe usar o veículo de pouso original, onde o veículo de trânsito também é o módulo de pouso. Outra concepção bastante popular é aquela do filme The Martian (Perdido em Marte), no qual o retorno é feito usando um veículo de retorno separado (chamado de Mars Ascent Vehicle, ou MAV).

No filme The Martian, o sistema proposto para a volta do astronauta perdido era um veículo de ascensão separado do foguete original.

O veículo de trânsito da tripulação original poderia também permanecer em uma órbita circular baixa em Marte, possivelmente ancorada a uma base orbital. Os veículos de retorno à Terra (incluindo módulos de habitat) também teriam como ser deixados em uma órbita elíptica alta de Marte, onde
a tripulação seria transferida entre habitats de base orbital e os habitats de retorno da Terra em pequenos veículos de balsa usando uma quantidade muito pequena de combustível. O encontro da órbita de Marte seria feito com um Aldrin Cycler em seu caminho para o retorno à órbita da Terra.

O que podemos esperar de um futuro próximo?

As características mais distintas de um assentamento bem sucedido em Marte podem incluir pessoas literalmente emigrando para Marte sem intenção de voltar para a Terra nunca mais. É possível, também, que tenhamos crianças sendo trazidas para Marte e nascendo lá, além de uma autossuficiência razoável, o que inclui suporte básico de vida, produção estável de alimentos e a capacidade de construir espaços de habitação adicionais com materiais locais. Instalações médicas e cirúrgicas razoavelmente adequadas,
comparáveis a um hospital rural na Terra, provavelmente se formarão, além de desenvolver-se uma economia local, com os habitantes atendendo a cada
as necessidades dos outros, como em pequenas aldeias isoladas na Terra.

Em termos de arquitetura, a maioria dos assentamentos e edifícios iniciais de Marte provavelmente estarão abaixo do solo, para que a população civil não seja exposta à radiação. Veículos subterrâneos conectarão a maioria dos habitats em cada comunidade, onde alguns edifícios podem estar parcialmente na superfície, mas, se forem destinados ao uso humano estendido, serão protegidos com regolito. Algumas comunidades separadas poderão até mesmo ser conectadas por metrô.

A pressão psicológica por uma visão do ar livre pode resultar na criação de áreas acima do solo em cúpulas ou estruturas com paredes de vidro e telhados totalmente blindados. Isso permitirá que qualquer pessoa, até mesmo crianças, vejam ao ar livre sem ter uma exposição significativa à radiação.

Espero que você esteja tão animado quanto eu para presenciar o estabelecimento da humanidade em Marte em um futuro tão próximo. Podemos não chegar lá em 2025, mas certamente ainda nesse século teremos muito a vislumbrar. E, depois disso, poderemos dar dois passos além. Quais? Descubra nas partes V e VI deste Guia, nos próximos meses!

Se acha que esse assunto foi interessante, você pode acompanhar o canal Science & Futurism With Isaac Arthur no Youtube, que tem uma playlist super bacana envolvendo as 31 metas da NSS, na qual o autor do artigo se inspirou para este guia.

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Astronomer, physicist and space engineer. I write about space, philosophy, consciousness and life overall.