[Jupiter] Ana Albuquerque
Space Talks
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8 min readMar 19, 2023

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Quando a engenharia aeroespacial e a biologia se encontram

Fig.1 Simulação de cultivo em Marte. Imagem NASA.

Ao lançar foguetes, sejam em competições de foguetemodelismo ou em projetos oficiais, sempre há uma missão a ser cumprida. E é aí que entra o sistema de Payload, que é a instrumentação que vai realizar esta missão predefinida. Existe uma grande diversidade de formas, funcionamento e objetivos para Payloads, alguns exemplos são:

  • Satélites de comunicação, monitoramento meteorológico, observação espacial, etc.
  • Sondas de exploração interplanetária.
  • Equipamentos com sistema lander, ou seja, que chegarão à superfície de outros corpos espaciais para observação, coleta de material, etc.
  • Espaçonaves para transporte de humanos.
  • Experimentos científicos e tecnológicos.

Fig.2 Telescópio James Webb, desenvolvido em conjunto pela NASA, a ESA e a CSA e lançado em 2021. Estuda a formação de galáxias, estrelas e planetas por meio de medições de radiação infravermelha. Imagem NASA.

Fig.3 Robô Philae da missão Rosetta iniciada em 2004 pela ESA, pousou na superfície do cometa 67P/Churyumov-Gerasimenko com o objetivo de obter dados que ajudem no entendimento da origem da vida na Terra. Imagem: ESA/ATG.

Fig.4 Cápsula Gemini VII, NASA 1965, cuja missão foi levar e manter dois astronautas no espaço por 14 dias para estudo dos efeitos de um voo de longa duração. Imagem NASA.

Dentro desta extensa lista de possibilidades de projetos, existem os Payloads biológicos, que são instrumentos usados pela astrobiologia para aprofundar o conhecimento científico acerca da origem, evolução e distribuição da vida no Universo. Estes estudos incluem desde tópicos como química prebiótica, procura por ambientes favoráveis à vida fora da Terra, adaptação e sobrevivência de organismos terrestres no espaço, procura ou inserção de formas de vida em outros planetas, etc. Nesse contexto, os Payloads biológicos são de extrema importância, pois são verdadeiros laboratórios espaciais para estudo destes assuntos.

A microbiologia foi a primeira área da biologia a ser foco de pesquisas espaciais, pois devido tamanho microscópico dos organismos é possível fazer pesquisas preliminares utilizando equipamentos de dimensões reduzidas, como os CubeSats (satélites cúbicos com tamanho padronizado em 10 cm de aresta). Com os organismos modelo usados na microbiologia foi possível fazer predições acerca dos efeitos de voos espaciais em humanos. Os primeiros testes foram em 1960 com bactérias, quando a missão soviética Korabl-Sputnik 2 carregou Escherichia coli e o satélite americano Discoverer 17 transportou Clostridium sporogenes para o espaço.

Alguns dos projetos mais interessantes de microbiologia e astrobiologia em CubeSats são:

  • GeneSat-1 é um CubeSat da NASA, lançado em 2006, que visava caracterizar o crescimento bacteriano usando E. coli como organismo modelo.
  • PharmaSat, CubeSat da NASA, lançado em 2009, que estudou os efeitos da microgravidade no crescimento e metabolismo de leveduras Saccharomyces cerevisiae e na eficácia de drogas antifúngicas via absorção óptica de três cores.
  • EcAMSat, CubeSat da NASA, lançado em 2012. Investigou os efeitos da microgravidade na resposta antibiótica dependente da dose e resistência em E. coli uropatogênica.
  • O/OREOS, CubeSat da NASA lançado em 2010, voltado à pesquisa em astrobiologia que carregava 2 cargas úteis, a Space Environment Survivability of Life Organisms (SESLO) e Space Environment Viability of Organics (SEVO). O objetivo do SESLO era medir a sobrevivência, germinação e atividade de esporos de Bacillus subtilis expostos à microgravidade e radiação ionizante por até 6 meses. Já a SEVO continha quatro compostos orgânicos: um aminoácido, uma quinona, um hidrocarboneto aromático policíclico (PAH) e uma metaloporfirina, que foram expostos à iluminação solar de espectro total.

Fig.5 Componentes do Gene-Sat durante a integração. Imagem: CubeSat Handbook — From Mission Design to Operations, pág 151.

Fig.6 Carga útil do SESLO juntamente com seu recipiente hermético. Imagem: CubeSat Handbook — From Mission Design to Operations, pág 157.

Um dos projetos mais importantes na área foi o BIOKIS, um payload multidisciplinar que esteve a bordo da ISS. As 4 experiências biológicas que ele continha foram nomeadas como BioS-SPORE (levedura do gênero Saccharomyces), Arabidops-ISS (planta Arabidopsis thaliana), PHOTO-EVOLUTION (alga verde do gênero Chlamydomonas) e TARDIKISS (tardígrados).

O BioS-SPORE tinha por objetivo avaliar a esporulação e germinação de leveduras em ambiente de microgravidade, com ênfase nos mecanismos moleculares de isolamento reprodutivo.

O Arabidops-ISS buscava investigar a nível molecular o fenômeno do gravitropismo, que é o crescimento da planta orientado a gravidade.

O principal objetivo do PHOTO-EVOLUTION é obter informações sobre a tolerância de algas Chlamydomonas reinhardtii em condições extremas. Estas microalgas fotossintéticas oxigenadas são de interesse ao suporte da vida humana na exploração espacial, pois podem servir como fonte de oxigênio para revitalizar a atmosfera, como alimento ou nutracêutico.

Por fim, o TARDIKISS buscava compreender mais profundamente os mecanismos regenerativos dos tardígrados, organismos multicelulares que resistem a condições extremas devido a sua capacidade de entrar em estado de animação suspensa, por meio de dessecação (anidrobiose) recuperável por reidratação. Este experimento se tornou famoso em 2009 quando mostrou que os tardígrados conseguiram sobreviver em boa proporção quando submetidos a combinação de vácuo e radiação solar.

Fig.7 BIOKIS, visão externa. Imagem: artigo BIOKIS: A Model Payload for Multidisciplinary Experiments in Microgravity.

Fig.8 Resultados do BioS-SPORE, demonstrando que a capacidade de germinação da levedura é seriamente comprometida em órbita. Imagem: artigo BIOKIS: A Model Payload for Multidisciplinary Experiments in Microgravity

Neste universo de pesquisas biológicas espaciais, a astrobotânica (ramificação da astrobiologia) tem se destacado, ela busca entender como plantas se comportam em condições ambientais extraterrestres, seja em equipamentos orbitantes ou também a inserção destas espécies em outros planetas.

Este tipo de estudo surgiu paralelamente à chegada do ser humano ao espaço, e agora é ainda mais necessário com a possibilidade de colonização de outros planetas. Isso ocorre porque a vida humana na Terra é completamente dependente das plantas, seja no ar que respiramos, na alimentação, no clima, etc. No espaço, além de ser de extrema importância para a qualidade de vida do ser humano, o consumo de alimento fresco e a presença de plantas também ajudam no bem estar psicológico dos astronautas. Logo, para onde quer que o ser humano migre no espaço, as plantas precisam ir junto.

As primeiras pesquisas relacionadas ao tema surgiram na década de 60 e buscavam entender o processo fotossintético no espaço e em exoplanetas, para direcionar melhor a busca por vida extraterrestre. O Biosatellite Program foi um projeto da NASA iniciado em 1966 que obteve os primeiros dados sobre o cultivo de plantas (soja) no espaço.

Nas décadas de 70 e 80 predominaram estudos acerca de fototropismo (crescimento da planta orientado ao estímulo da luz) e gravitropismo (crescimento das plantas orientado pela gravidade). Já nos anos 90 o foco foi em reprodução e transportes de sementes para outros planetas. Dos anos 2000 até o momento atual, as agências espaciais têm trabalhado para melhorar os equipamentos de cultivo de alimentos, tanto no espaço (por exemplo na ISS) e futuramente in situ (Lua e Marte por exemplo).

Já é possível cultivar alimentos saudáveis em ambiente extraterrestre, como demonstrado pelo programa Veggie da NASA, que desde 2014 tem obtido êxito em produzir vegetais na ISS (Estação Espacial Internacional).

Fig.9 Advanced Plant Habitat (APH), estufa artificial para cultivo de alimentos na ISS. Este projeto tem capacidade de produção 25% maior do que o anterior (Veggie). Imagem NASA.

Apesar dos resultados positivos, os processos metabólicos envolvidos na adaptação destas espécies em ambientes com gravidade, radiação, solo e diversas outras condições completamente diferentes das encontradas na Terra ainda desafiam os cientistas.

A astrobotânica atualmente se apresenta como uma ciência suporte para o assentamento humano definitivo na Lua, em Marte e em outros planetas no futuro. O projeto OMNICROP, proposto pelo brasileiro Rafael Loureiro ao NASA Kennedy Space Center, buscava gerar um modelo preditivo do sucesso de cultivares na Lua e em Marte, combinando dados das pesquisas espaciais anteriores com o conhecimento de agricultura na Terra. Este projeto obteve grande sucesso e com isso o pesquisador e sua equipe começaram a testar o cultivo de alimentos em regolito marciano e lunar. Neste trabalho ficou claro que há muito mais problemas a serem pensados, como a granulação do regolito, que implica na quantidade e distribuição de água absorvida, a necessidade de inserção de microrganismos neste material e a presença de substâncias tóxicas, como o perclorato na superfície de marte. Contudo, a equipe obteve uma base de dados sólida sobre o tema.

Fig.10 Planta cultivada em solo lunar simulado por Loureiro e sua equipe, em 2021. Imagem Linkedin: Rafael Loureiro, Assistant Professor of Botany and Plant Physiology at Winston-Salem State University

Ao que tudo indica, a astrobiologia e a astrobotânica continuarão crescendo e se tornando cada vez mais essenciais na exploração espacial nas próximas décadas, por isso, o desenvolvimento de tecnologias para Payloads que carregam sistemas vivos também será imprescindível.

A complexidade do projeto de um payload depende muito da missão, mas em geral, além da estrutura, eles possuem alguns subsistemas básicos, como a telemetria, o sistema de alimentação elétrica, propulsão, determinação de atitude, etc. Porém, devido a sensibilidade dos sistemas biológicos, os Payloads que possuem algum tipo de organismo vivo podem conter mais subsistemas, para controle de pressão, umidade, temperatura por exemplo. Outra questão complexa é como obter, armazenar e enviar dados desse tipo de experimento, muitas vezes é necessário desenvolver uma instrumentação completamente nova para este processo, pois a integração do sistema biológico com os sistema mecânico e eletroeletrônico não é trivial, como visto nos diversos exemplos acima.

Apesar de estarem focadas no auxílio à vida humana no espaço, as pesquisas e tecnologias desenvolvidas na astrobiologia podem ser usadas e adaptadas para diversos fins na Terra. Por exemplo, o cultivo de tecidos humanos fora do corpo — um dos principais objetivos da pesquisa médica atual — em ambiente espacial tem grande potencial, pois na microgravidade é possível obter aglomerados 3D ou esferóides de células, isso facilita o estudo de angiogênese, proliferação, adesão celular, migração, sinalização da matriz extracelular, etc. Tal conhecimento é crucial para o avanço do estudo relacionado a diferentes tipos de câncer. Isso mostra a importância da biologia aplicada à exploração espacial, uma área riquíssima em temas a serem aprofundados e em possibilidades para a humanidade.

Referências:

Astrobotanist, R. Woolley — Nature, 1969

Chapter 26 — Space food on celestial bodies and on the way there-Future Foods, 2022, Pages 451–468

CubeSat Handbook — From Mission Design to Operations

Astrobotânica como ciência suporte para missões assentamento permanente Lua e Marte — Rafael Loureiro (video no YouTube)

Potential Biological Remediation Strategies for Removing Perchlorate from Martian Regolith

Gina Misra, William Smith, Madeline Garner, and Rafael Loureiro -2020

BIOKIS: A Model Payload for Multidisciplinary Experiments in Microgravity — 2012.

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