Navios Negreiros

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Vinícius Spanghero
Vinícius Gonçalves Spanghero
3 min readAug 20, 2020

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Esses dias eu fiz um “Quiz” no Instagram. Nele eu numerava 8 nomes e perguntava qual seria a finalidade deles. Os nomes era de embarcações de Navios Negreiros, (ou Navios Tumbeiros — que remetiam a tumbas). Os nomes eram:

1. Amável Donzela, 2. Boa Intenção, 3. Brinquedo dos Meninos, 4. Caridade, 5. Feliz Destino, 6. Feliz Dias a Pobrezinhos, 7. Graciosa Vingativa e 8. Regeneradora e as opções de finalidade dos nomes eram: 1. Títulos de filme pornô, 2. Navios negreiros, 3. Capítulos de um livro antigo e 4. Faixas de um EP de RAP.

De quase 400 pessoas que passaram por esse quiz, 55 arriscaram uma resposta e dessas últimas, 32 acertaram. Não sei se o quiz vindo de mim já direcionava a resposta. Talvez sim, mas o fato é: que nomes são esses?

Print Collector / Getty Images

Em particular, essas embarcações monstruosas flutuaram pelo Oceano Atlântico de 1788 até 1845 (isso porque desde 1831 já era proibido o desembarque de escravizados no Brasil). Foram mais de 60 travessias, responsáveis pelo sequestro de um total de 18.835 pessoas negras entre homens, mulheres e crianças, das quais apenas 17.341 resistiram até o porto final, deixando 1494 no meio do caminho, mortas, jogadas ao mar. Curiosidade: o costume de jogar as pessoas ao mar (por vezes ainda vivas) ocasionou uma mudança no ecossistema do Oceano. Houve uma migração de tubarões devido à quantidade de corpos lançados ao mar.

Em qual realidade isso era possível? Como se aceitava uma crueldade dessas com seres humanos? “Seres humanos”. E essa é mais uma questão dessa situação genocida.

Eles não nos viam como seres humanos. Negros eram o “outro”. Animais a serem domesticados, ameaças que deveriam ser abrandadas e adestradas para servir. Não tínhamos direito de ter nenhuma identidade — éramos todos “negros” e só. No máximo, “negros de alguém”(hoje em dia se diz muito “nego”isso, “nego” aquilo quando quer se referir a “qualquer um" ou "alguém genérico" e eu não consigo deixar de ligar uma coisa a outra mas isso é assunto pra outro texto).

Se não éramos seres humanos, que direito poderíamos ter? Nenhum. Sofríamos, gritávamos, sangrávamos, morríamos… mas por não sermos enxergados como humanos, não havia comoção, sofrimento ou motivo pra interromper aquilo. E tudo era justificado pela religião, pela economia e pelo desenvolvimento da sociedade. Éramos parte daquilo sem ser parte, só “aquilo”. Navegando de casa à um lugar desconhecido. E depois de 30 ou quase 100 dias de viagem, os que ainda resistiam, tinham que se submeter ao trabalho escravo e à tortura. Sem remorso algum, os brancos sustentavam esse sistema que os beneficiava e nos matava.

Os nomes dessas embarcações demonstram o cinismo, o sarcasmo, o descaso que tinham pela vida de pessoas negras. Era a arte de fazer “piada” com a nossa desgraça. “Mas tudo bem, não eram seres humanos morrendo, eram só negros. Pagãos amaldiçoados.”

Pessoas negras eram só números. Eram um grupo de pessoas que, se algumas morressem, não significaria nada além de mão de obra perdida. O transporte que tínhamos direito era abarrotado, desconfortável, não-ventilado e inseguro. E era destinado aos negros e negras. Exclusivamente. — o barco podia ser o mesmo, mas o compartimento não — Nos eram privados os direitos estudar, se expressar, manifestar religiões, bem alimentar, sonhar, amar, crescer. Qualquer sinal de rebeldia (não obediência ou desvio de comportamento “normal” (branco)), era motivo pra justificar o descarte, daquele indivíduo. Se apresentássemos qualquer sinal de “defeito”, como princípio de uma doença que pudesse nos incapacitar, éramos descartadas também. Ser uma pessoa negra ali era pior do que ser um nada, porque à um nada você não tenta fazer o mal. Um nada não te ameaça.

Agora releia esse último parágrafo pensando nos tempos atuais. Ainda sofremos, gritamos, sangramos e continuamos morrendo de maneira cruel e violenta tendo como agente justificatório o racismo disfarçado de progresso e segurança. Continuamos tendo direitos básicos privados. Continua havendo espaços onde não somos bem recebidos e outros onde "cabemos". Ainda condenam a manifestações religiosas, culturais e sociais vindas de nós. Condenam relacionamentos. Ainda somos vistos como ameaças, como animais, como descartáveis.

Como disse Marcelo Yuka: “todo camburão tem um pouco de navio negreiro”.
Se una povo negro, se una.

Agora releia o texto todo.

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