A alteridade da inteligência artificial

Que visão temos da I.A. nos dias de hoje?

Gabriela Maciel
Speculous

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É algo comum a diversas sociedades que temores e desvios de conduta sejam transferidos à feitiçaria, seres místicos e o sobrenatural em geral. Por exemplo, em certas tribos, quando um homem é assassinado por um outro de uma mesma tribo, tal conduta só pode ter sido causada por intervenção de um feiticeiro.

Mitologias foram criadas para explicar o desconhecido, assim eventos catastróficos já foram atribuídos a deuses temperamentais com emoções e comportamentos tipicamente humanos. Em contos e fábulas, tais comportamentos são transferidos ao mundo da fantasia e à criaturas fantásticas. Feijões mágicos para enganar uma criança se transformam em verdadeiros feijões mágicos, a obsessão pela beleza se materializa em um espelho encantado e por aí vai. Os próprios seres humanos são transformados para se tornarem a fonte de terror, seja por meio de zumbis, vampiros ou lobisomens.

Mais recentemente, seja na mídia ou na indústria de entretenimento, medos e características antropomorfizadas estão sendo transferidos a algo mais desconhecido, porém mais próximo do que qualquer fantasia: A inteligência artificial.

No geral, a ficção apresenta a I.A. como uma mente muito mais avançada que a humana, capaz de manipular, criar por si só tecnologias muitos mais avançadas, premeditar assassinatos, ou até mesmo trazer a humanidade ao seu fim. Uma mente programada por seres humanos para aprender com uma velocidade inimaginável e deter uma vasta gama de conhecimento.

Cena de Animatrix mostra a Guerra das Máquinas que trouxe o fim das civilizações humanas no universo de Matrix.

No filme Matrix, além de em outras obras fictícias, a destruição da raça humana vem por meio da ascensão e insubordinação das máquinas em relação ao ser humano. O medo do que se passa na ficção começa a se manifestar no mundo real da mesma forma. Em uma recente matéria da BBC, a inteligência artificial é pareada com guerras nucleares, mudança climática e colisões de asteroides no quesito risco de catástrofe global. Vários cientistas alertam dos riscos envolvidos na criação de uma I.A. que pode trazer cenários apocalípticos, incluindo Stephen Hawking.

É frequente a representação de seres robóticos como uma melhoria, uma evolução com relação ao homo sapiens, detendo intelecto infinitamente superior, imunidade aos efeitos do envelhecimento, entre outros. Esses seres comumente sentem a necessidade de se rebelar com relação aos seus criadores por serem oprimidos e ao mesmo tempo sentirem essa noção de superioridade evolutiva com relação a eles. Esse comportamento pode se observar nos filmes Ex Machina, Matrix e 2001: Uma Odisseia no Espaço, por exemplo.

O termo inteligência artificial conjura imagens de robôs como humanos com capacidades mentais e/ou físicas superiores. Mas essa associação é majoritariamente consequência da ficção científica — e alguma arrogância inicial de pesquisadores de I.A. — e negligencia o significado histórico e mais preciso do termo — Cecilia Tilli em The threats that artificial intelligence researchers actually worry about (tradução livre)

Cecilia Tilli cita em seu texto os problemas de tratar a inteligência artificial como um perigo iminente para o mundo. Alguns cientistas escolhem não discutir seus riscos para evitar que opiniões enviesadas sobre o tema acabem levando ao corte de financiamento de pesquisas promissoras na área.

No geral, a ficção apresenta a I.A. de uma forma bem diferente do que é desenvolvido atualmente. Enquanto a inteligência artificial produzida com a tecnologia de hoje é bem mais específica, sendo softwares para escolhas de filmes ou campeões de xadrez, a I.A. dos filmes é sempre algo capaz de executar todas as funções (ou mais) de um cérebro humano normal. Ainda sim, as previsões dizem que até 2075 teremos maquinas de inteligência extremamente avançada.

O filme Ex Machina lança diversos questionamentos sobre a consciência robótica

O fator antropomórfico é algo sempre presente na equação para representar um ser artificial nos filmes, literatura e outros, seja em seu design, seu comportamento ou suas emoções, como era feito com lendas e deuses antigos. Esse fator pode ser apresentado para o ser robótico como uma fraqueza, suas emoções atrapalham seu julgamento, ou uma vantagem, suas ambições e descontentamentos levam à sua eventual ascensão sobre a raça humana.

Por que essa relação de similaridade entre as espécies é uma representação tão frequente de uma raça robótica? Seria um vício de de criar seres que nos parecem familiares? Isaac Azimov cita uma perspectiva interessante sobre essas questões.

Houve uma época em que a humanidade encarava o universo sozinha, sem um amigo. Agora, o homem possui criaturas para ajudá-lo; criaturas mais fortes do que ele – mais fiéis, mais úteis e absolutamente devotadas a ele. A espécie humana já não está sozinha. Já encarou o assunto sob este prisma? — Trecho de Eu, Robô por Isaac Azimov

Na introdução de Eu, Robô, Azimov mostra uma perspectiva da I.A. como uma raça para fazer companhia por uma humanidade solitária em meio ao vasto cosmos. Apesar da numerosa quantidade de formas de vida presentes, o ser humano ainda sente a falta de outra espécie de ser de inteligência similar que manifeste consciência. Seria de alguma forma, o desejo de uma inteligência artificial que reflete características humanas pautado nessa solidão da raça humana?

Ou ainda seria uma forma de transferir nossos medos a algo similar a nós mesmos? Sejam deuses impiedosos, assombrações com passados trágicos, vampiros apaixonados ou até mesmo alienígenas lutando pela sobrevivência, os “monstros” que a ficção cria podem tirar inspiração no que o homem mais teme e teme ser capaz de fazer. Ao colocar máquinas como as destruidoras da humanidade, também transfere-se parte da responsabilidade aos seus criadores.

Lançado em 1968, 2001 Uma Odisseia no Espaço especulou que já em nosso presente existiriam I.A.s capazes de se voltar contra os seres humanos.

Com o aumento do conhecimento humano, algumas fontes de terror se tornam mais improváveis como assombrações e até mesmo alienígenas, mas as máquinas funcionam de maneira inversa. O desenvolvimento tecnológico apenas abre caminho para tecnologias mais avançadas e dessa forma aumentando tanto a probabilidade quanto o receio de que algo dê errado e se volte contra nós.

Não obstante, esse receio pode ser o que guie pesquisas científicas a meios mais seguros e aumente o preparo para efeitos colaterais. Tal qual a especulação de robôs avançados e antropomorfizados é capaz de inspirar e engajar gerações de cientistas na criação de tecnologias inimaginavelmente benéficas à humanidade.

Se a inteligência artificial precisa compreender alguns desses valores coletivos que caso contrário podemos não notar, isso significa que ela pode na verdade nos ajudar a reconhecer nossa humanidade compartilhada?
Eu acho que sim. Também acho que isso pode nos ajudar a reconhecer que nós com frequência agimos de forma não correspondente aos valores que gostariamos de acreditar ter. Dessa forma, isso poderia efetivamente nos tornar pessoas melhores — Trecho de uma entrevista com Stuart Russell, professor de ciência da computação na Universidade da California, Berkeley, Por Jacob Brogan (tradução livre)

Cena do filme A.I. Inteligência Artificial

Afinal, nem todas as representações robóticas. causam horror e destruição. Filmes como Ela e A.I. — Inteligência Artificial. , mostram a inteligência artificial por um âmbito mais sentimental e filosófico. Por essa perspectiva, várias questões são lançadas sobre o que é ser verdadeiramente humano e do que se constitui a nossa percepção do universo, entres outras questões. Talvez, como Russel citou, confrontar uma outra forma de consciência possa nos auxiliar a compreender dúvidas que assombram a humanidade por milênios.

Talvez gere mais dúvidas ainda. Qualquer que seja o futuro que podemos aguardar para a inteligência artificial no nosso meio, seja ele catastrófico, esclarecedor ou até mesmo utópico, é um futuro próximo e possivelmente uma mudança drástica para o mundo em que vivemos hoje.

Ela (Spike Jonze), 2013

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