A ficção científica, a teoria social e o desenvolvimento tecnológico

Gabriel S.
Speculous
4 min readMay 4, 2018

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A nossa década está se mostrando inquietante em termos de inovações técnicas. Novas tecnologias surgem, outras que se difundem, e todas provocam mudanças profundas na vida humana: A conectividade se intensificou de forma inigualável com o advento dos smartphones, redes e dados e internet sem fio; o uso de drones e Inteligência artificial teve sua aplicabilidade descoberta pelos governos, exércitos e empresas; etc.

Essas mudanças, pelo seu grau de profundidade, interessam não só estudioso do assunto mas também o cidadão comum, que, diante dos seus olhos, vê as antigas realidades se abalando frente às novas tecnologias, nos lembrando daquilo que Karl Marx já sintetizou no Manifesto Comunista, sobre a força desintegradora do desenvolvimento capitalista: “tudo que é sólido desmancha no ar”.

Se essas perplexidades não são exclusivas do meio acadêmico, sem duvida reverberam em outras formas de produção cultural, que tem igual capacidade de registrá-las e refletir sobre elas. Este texto escolheu tratar, dentre as inúmeras formas de interpretação das inquietações sobre o desenvolvimento tecnológico, a ficção científica. A referência será especificamente o livro Neuromancer (1984) do escritor americano William Gibson que será analisada comparativamente ao texto de H L Dreyfus “A internet: uma critica filosófica à educação à distância e ao mundo virtual”.

Capa brasileira do primeiro livro da Neuromancer

Para começar, a escolha de Neuromancer não é arbitrária. O livro é considerado um marco seminal na “cibercultura”. Lançado no início dos anos 80, quase simultâneo ao filme Blade Runner, marcaram juntos, estética e tematicamente, os contornos de um novo subgênero da cultura urbana, e mais especificamente um de seus mais proeminentes subgêneros a partir de então, o “cyberpunk”, que enquanto movimento cultural, se estende pela literatura, cinema, moda, e filosofia.

O cyberpunk, portanto, é um subgênero da ficção científica que apresenta uma visão pessimista de futuro, onde um capitalismo cada vez mais intensificado, aliado aos avanços na tecnologia da informação, robótica, cibernética, e outros ramos da tecnologia, ao invés de oferecerem mais liberdade, propiciam novas formas de repressão, controle e desigualdades.

Dentro desta estética, uma das contribuições importantes de William Gibson em Neuromancer é trazer pela primeira vez o conceito de “ciberespaço”. Na história, existe uma tecnologia que permite que o usuário se conecte “fisicamente” ao mundo digital, através de um sistema de realidade virtual. Esse espaço virtual onde as pessoas se incorporam é chamado de Matrix, mais ou menos equivalente ao que conhecemos como internet. Seu nome seria emprestado novamentes anos depois, onde qualquer semelhança com o filme homônimo de 1999 não seria mera coincidência.

O personagem principal chama-se Case, ele é um “cowboy”, que é como na história são conhecidos os indivíduos que realizam trabalhos perigosos dentro do ciberespaço, como invasões de sistemas de segurança, espionagem etc, em troca de dinheiro e de vantagens. Certa vez, Case falhou na realização de um de seus trabalhos, e como retaliação teve suas ligações neurais danificadas através de uma cirurgia, de forma que ele nunca mais poderia se conectar ao ciberespaço. Este acontecimento é descrito pelo próprio protagonista como sua “Queda”. Como descreve o narrador, “Nos bares que frequentava no seu tempo de cowboy fodão, a postura da elite envolvia um certo desprezo suave pela carne. O corpo era carne. Case caiu na prisão da própria carne.” (Gibson p.26)

Assumindo o ciberespaço como um conceito filosófico, o trecho destacado pode representar muito bem a noção simbiótica que pode ocupar na vida “real”, a ponto de a vida na “carne”, aquela fora do espaço virtual, perder gradativamente sua importância. Um exemplo anedótico é a manchete de jornal que noticia que jovens estariam pagando a diária de um hotel de luxo no rio de janeiro e levavam inúmeros conjuntos de roupas para tirar fotos que pudessem ser postadas em suas redes sociais o ano inteiro.Neste exemplo, a experiência de estar realmente no Hotel tem pouquíssima importância se comparada à experiência de estar lá virtualmente.

É possível estabelecer um paralelo com as descrições do mundo de Second Life feitas por Dreyfus (2012). O autor, sustentado em um niilismo filosófico de Kierkegaard e Nietzsche conceitualiza o game Second Life como uma forma de “telepresença desincorporada” (outro nome para ciberespaço?). Para ele, este “espaço desincorporado” que é o mundo digital, nos priva do senso de risco e vulnerabilidade que atravessam os acontecimentos na ‘vida real’. Então, como afirma Dreyfus, “se nós quisermos viver a vida no seu melhor, teremos que abraçar nosso envolvimento incorporado no arriscado e temperamental mundo real.” (2012 p.106). Essa posição é diferente da de muitos dos habitantes do mundo fictício de Neuromancer, que inclusive veem na necessidade do ‘espaço incorporado’ do mundo real uma forma de prisão, a prisão de carne.

William Gibson vislumbrou uma potencialidade da tecnologia da informação que fora subestimada por Dreyfus quando o segundo apresenta uma distinção muito clara entre real e o virtual. Em Neuromancer um se funde ao outro de tal forma que o virtual acaba se tornando uma realidade objetiva. Neste sentido, a obra dos anos 80 descreve com impressionante precisão a forma como a atual geração se relaciona com as tecnologias da informação. O “ciberespaço”, incorporado nos sites e redes sociais, é um “local” tão presente na vida cotidiana, que, para o assombro de uns, torna a presença corporal cada vez mais prescindível na experiência humana.

BIBLIOGRAFIA

AMARAL, Adriana. A potência do imaginário de Neuromancer nas origens da “cibercultura”. In: Neuromancer. Editora Aleph, 2016. São Paulo

DREYFUS, H. L. A Internet; uma crítica filosófica à educação a distância e ao mundo virtual. Belo Horizonte, Fabrefactum, 2012

GIBSON, William. Neuromancer. Editora Aleph, 2016. São Paulo

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