Aurora

Allan Mendes
Speculous
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7 min readJul 11, 2017
Ilustração: Estela Castro

Sat correu pelas multidão, dessa vez sem a certeza de que escaparia. Se afastando das pessoas que o cercavam, conseguiu se esgueirar entre dois edifícios para escapar do movimento da rua principal. Ao chegar no final do beco viu que agentes da força militar qturiana o aguardavam. Estava sem saída. Ele não podia ser pego. Não por eles. Os rumores do que faziam com os criminosos que capturavam davam pesadelos a qualquer humano.

Virou-se para o outro lado e viu que uma escada descia de uma plataforma de reformas do edifício ao lado. Valia o risco. Ao subir, a plataforma começou a ceder. Era feita para qturianos, fraca demais para aguentar o peso de um humano. Teria que entrar em uma das janelas antes que a estrutura desabasse. Testou a janela na sua frente e estava trancada. Estendeu a mão para subir no próximo nível da plataforma e tentar a próxima janela, mas o patamar sob o seus pés desabou.

Atingiu o chão com força. Sentiu uma dor enorme na cabeça e começou a perder a consciência. A última coisa que viu foi um agente qturiano se aproximando e provavelmente checando se a plataforma tinha terminado o serviço pra ele.

-Podem levá-lo — Alguém disse antes que tudo ficasse escuro.

-Sexo masculino, dezesseis anos solares de idade, 14 xirens de altura, pesa 80 klors…

-Tipo sanguíneo?

-AB- terrestre. Temos dele no estoque?

-Sim, mas acho que não vai ser necessário. De acordo com os últimos testes, posso afirmar que as chances de rejeição são mínimas.

-Espero. Não podemos continuar perdendo tantos deles se queremos um dia conviver em paz com essa espécie.

-Acho que já passamos desse ponto.

Sat podia ouvir uma conversa entre uma voz masculina e outra feminina, embora não compreendesse o idioma. Parecia qturiano. Abriu os olhos e uma luz branca intensa era visível.

-Ele está acordando.

-Garoto, você pode me ouvir? — alguém disse com um forte sotaque.

-Hmmm… — foi tudo que Sat conseguiu responder. Sua boca estava seca.

-Consegue dizer seu nome?

-Quem são vocês?

-Eu sou Lin e esse é Qót. Somos os médicos encarregados do seu caso. — disse uma moça com uma fisionomia claramente qturiana enquanto o médico ao seu lado fazia anotações — Está sentindo alguma dor?

-Minha cabeça — ele respondeu tentando levantar. -Não sinto nada.

-Você levou uma pancada na cabeça quando caiu da plataforma. Nada grave, reparamos os danos em um instante, mas o efeitos do anestésico ainda não passaram.

-Que lugar é esse? — Sat sabia como era o Hospital central da cidade de Týr das vezes que sua irmã havia tido crises de asma, que não foram poucas, e esse sem sombra de dúvidas não era o hospital. Apesar das macas e apetrechos hospitalares qturianos, a atmosfera era totalmente diferente, com paredes cinzentas, janelas amplas de vidro com um grupo de pessoas observando do lado de fora. Além disso, ele e os outros “pacientes” estavam atados às macas.

-Vocês estão no Centro de Pesquisa 12 de Qtur. Como você foi pego por uma infração contra a sociedade de Qtur, não podíamos te levar para um hospital. E a outra opção era o campo de detenção.

-O que vocês vão fazer comigo? — assustado, Sat tentou se levantar, mas nós cegos o atavam à maca.

-Garoto… Você não disse seu nome.

-Sat.

-Sat, o que você já ouviu falar sobre a Aurora?

O menino ficou pálido.

No campo de habitação humana poucas histórias circulavam sobre a Aurora. Uma arma sendo desenvolvida por Qtur para acabar com os conflitos entre Qtur e os humanos rebeldes. Contos mormuravam sobre crianças humanas pegas no centro de Tyr cometendo alguma infração para serem utilizadas como cobaias. Nenhuma delas retornando ao campo de habitação. Sat sempre pessou que eram histórias espalhadas por humanos rebeldes para fazer com que mais pessoas se juntassem à resistência.

-Não precisa ter medo, criança. Nada de ruim vai lhe acontecer. Apenas precisamos que alguns humanos testem o funcionamento da máquina. Você sabe o que ela faz?

-Não. — Começava a suar frio, passeando os olhos ainda tontos por aquela sala inóspita.

-Bem, dentro de algumas horas você poderá ver, como vocês dizem, com seus próprios olhos.

Depois de uma incômoda e desesperadora espera, a maca de Sat foi removida daquela lugar cheia de pessoas semi-conscientes. O levaram por um extenso corredor até uma porta de aço. Essa sala era ainda pior que a outra. Era vazia. Uma sala inteiramente branca, com iluminação forte, uma câmera em cada canto, e um grande painel em uma das paredes com vários controles e alguns fios pendurados.

-Sat — disse a médica apontando para o painel — conheça Aurora.

-Ahm? — o menino olhou confuso para o painel. Ele esperava uma arma. Como aquelas que via em filmes antigos ou em imagens da invasão de Freya.

-Essa é a máquina que vai encerrar esse conflito com a sua espécie definitivamente. Estamos trabalhando em um modelo mais portátil, mas essa será eficaz em seu propósito.

-O que é isso? — rosnou Sat, possivelmente ainda mais assustado.

-Garoto, já imaginou como é estar na mente de outra pessoa? Poder experiências tudo através da visão dela? Poder ver seus pensamentos e lembranças? Saber o que ela sente? Aurora é capaz de te transportar do seu infinito universo para o infinito universo de qualquer outro ser.

-Isso vai ler a minha mente?

-Se você estiver se limitando a apenas uma de suas funções… Sim e não. Aurora não pode ler a sua mente, não é uma inteligência artificial. Tudo que pode fazer é a veicular para a mente de outro ser consciente. Entende o que estou dizendo?

-Me tira daqui — sussurrou o menino.

-Sat, a máquina não vai…

-ME TIRA DAQUI — Ele começou a gritar, espernear e tentar desfazer os nós a força. Dois qturianos entraram na sala, um para segurar o garoto descontrolado e outro para aplicar nele alguma injeção. Sat logo perdeu qualquer força pra lutar contra suas amarras, mas se manteve acordado.

Podia ver um por um os fios sendo conectados ao redor da sua cabeça, no seu pescoço, no peito, até mesmo na palma das mãos.

-Sat, vou aplicar essa solução em você para dar início ao procedimento. Odeio ter que fazer isso, mas…

-Você não… se im… — fraco ele conseguiu interromper — nenhum de vocês.

Conto feito por Gabriela Machado. Ilustração de Estela Castro. Revisado por Tatiana Queiroz e Allan Mendes.

Posfácio — Trez3

O conto foi feito para um exercício de escrita que abordasse a utilização de um artefato especulativo, concebido através das lentes de design+narrativa apresentadas na matéria. Neste caso, o artefato é a maquina que seria utilizada para que uma outra raça hominídea pudesse transferir uma consciência para outro corpo.

Essa mecânica de narrativa é explorada no filme ‘Metrópolis’, onde uma ginoide é utilizada para se infiltrar na revolução e que pudesse controlá-la por dentro, e deturpada no filme Avatar, onde o agressor toma controle do corpo do oprimido e se vê como a única esperança de redenção de sua raça e de salvação do oprimido.

Progredindo na sua construção, o conto tornou-se em um projeto de transmídia chamado ‘Trez3’, onde são explicados pontos vitais como ele poderia expandido. Variando da maior parte dos contos que são construídos na matéria, que focam em tecnologias e tempos tangíveis, o grupo focou em construir uma space opera que se assemelha a ‘The 100’ e outros scifi atuais.

Ele revela uma humanidade sozinha no espaço após a destruição da Terra (similar a ‘Titan A.E.’), que vagaram separadas três naves por milênios ao ponto de construir seus próprios modelos de sociedade e cultura, e ao ponto de acontecer uma especiação biológica. Isso muda quando a raça dos Qturs é encontrada e híbridos com vegetais geneticamente modificados.

É um conto que teria bastante potencial de ser explorado, por levar em conta questões sociais atuais.

Allan Mendes

Acho que a primeira coisa que me veio à cabeça enquanto lia esse conto foi como ele parecia ter sido retirado de uma narrativa maior. Não só pela escolha de não contar o que acontece com o personagem principal antes e depois dos eventos que se descrevem, mas também pela boa escrita e fluidez do texto. O mundo fictício pareceu bem construído mesmo que tenhamos o conhecido somente por esse trecho, e também gostei da personalidade passiva-agressiva dos qturianos: “Nós nos importamos com você, mas só se você agir dessa maneira. É para um bem maior”.

Porém, uma coisa que deixou a desejar, na minha opinião, foi uma descrição mais cuidadosa de como é essa raça fisicamente e como os dois médicos são; e também o que os diferencia do resto dos qturianos.

Eles são como os humanos, num sentido de cada um expressar fisicamente a própria personalidade? Com acessórios, cortes de cabelo, roupas específicas, tiques nervosos etc? Ou eles tem uma cultura que utilizam um tipo de vestimenta e todos são iguais? Por exemplo, o personagem reconheceu duas vozes ao longo do texto mas como os qturianos são pra que se possa dizer qual é feminino e qual é masculino? As vozes femininas são parecidas com vozes humanas femininas? Eles são um tipo de ramificação da raça humana, já que possuem certas semelhanças, ou são uma raça completamente nova?

Não senti que teve um bom desfecho, já que há uma ambiguidade bem ampla e cheia de perguntas. Acredito que esse texto, apesar de ter sido bom, exigiu um pouco mais de informação para que ficasse ótimo.

No geral fiquei contente com o texto. Ele parecia um rascunho para uma publicação séria e me fez lembrar um pouco do “O Nome do Vento”, de Patrick Rothfuss (o que é um elogio, já que eu adoro esse livro). Fiquei com vontade de ler mais e conhecer Sat mais a fundo e o por que de suas ações. :)

Tatiana Queiroz

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Allan Mendes
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Designer, teacher and foresight researcher. Posts about rabbit holes, cyberpunk and the zeitgeist