Ilustração: Vitor Teles

Egresso

Allan Mendes
Speculous
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6 min readMay 30, 2016

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Os calafrios correram o meu corpo enquanto submergia no gel ACI. A solução química de Ácido Carbônico Ionizado foi minha patente de maior sucesso nos últimos dois anos. Uma dormência leve surgiu conforme meu corpo nu ficou completamente submerso. De dentro do capacete de realidade virtual eu não pude ver nada, ao menos enquanto a tela estava desligada.

“Vai ser a experiência imersiva mais espetacular que você já viveu. Certamente, os babacas da Google Millenium vão babar quando mostrarmos esse protótipo no Visionary Festival 2040, ano que vem. E certamente você vai investir toda a sua fortuna nessa belezinha.”

Foi o que Matthew me disse quando o algoritmo preparado para a minha experiência ficou pronto. Eu dei a ele e sua equipe acesso à minha casa, escritório, agenda e tudo o que eu mantenho em minha nuvem particular.

“A nossa ideia de controle térmico do ACI está dando muito certo. A inteligência artificial está sendo adaptada e já funcionou com dois testes em humanos. Deixe-me criar uma imersão especialmente pra você e aposto a minha cota na empresa que você vai se convencer!”

E aqui estou eu. Testando o protótipo do Alpha Life Immersive Experience (ALIE). A máquina é um tanque cheio com o gel e com vários sensores mecânicos tão finos quanto um fio de cabelo.

Pelo visto a máquina ligou. A tela inicial abriu com a marca da nossa empresa: Alph.AS.

Ilustração e Animação: Vitor Teles

Os capilares metálicos estão trabalhando, posso senti-los movendo-se lentamente. O gel não está mais frio e a temperatura do oxigênio entrando na máscara também ficou mais amena. Os receptores de ondas na testa estão coçando. Precisei ficar quase 40 minutos sincronizando mais de 100 movimentos, para que a máquina consiga manipular os capilares de forma correta dependendo de qual informação meu cérebro enviar.

A luz da tela começou a escurecer e uma luz forte deu lugar ao breu. Eu, que antes parecia estar flutuando, agora vejo o chão, e imediatamente o gel se adapta para que eu sinta uma falsa força gravitacional me puxando para baixo.

“Incrível. Verossímil demais!”

Um campo florido. Campo de girassóis, idêntico ao que ficava em frente à fazenda do meu avô. O trabalho dos modeladores está incrível e muito bem renderizado.

“Filho da mãe. Fuçou longe pra descobrir esse lugar. Até o cheiro é igual.”

Ainda consigo sentir que o ar que entra em minhas narinas está muito pesado, mas isso é uma das poucas coisas que ainda me fazem sentir que não estou na realidade.

— Como você cresceu, meu menino.

“Essa voz!”

A figura da senhora baixinha com o rosto enrugado me dá um calafrio

Eu me viro rapidamente para trás, e a brisa que antes batia no meu rosto agora banha minhas costas com um frescor que eu há muito eu não sentia. A figura da senhora baixinha com o rosto enrugado me dá um calafrio.

“Eu achei que nunca mais a veria de novo.”

Meus olhos enchem de lágrimas enquanto eu me aproximo, sentindo o peso de meu corpo e das roupas que surgiram ao início da experiência.

— Vó Anna!?

“Eu ainda não posso acreditar. Está tão real!”

O rosto todo enrugado com a verruga milimetricamente posicionada um pouco acima da sobrancelha esquerda. Aquele mesmo vestido florido que eu puxava quando queria alguma coisa que meus pais já tinham me proibido. Aquele mesmo vestido com cheiro de bolo e mofo. E com os cheiros e texturas exatamente como eu me lembrava.

Sem saber o que dizer, eu só consigo me expressar de uma forma. Um longo e quente abraço. O último abraço que eu gostaria de ter dado antes da morte dela. O último ato de carinho que eu me esqueci de dar quando fui embora dessa mesma casa, há quase 20 anos.

Não consigo conter as lágrimas. E ela parece não entender.

— Por que você tá chorando, Felippe?.

E agora eu percebo que esse abraço não representa o último, mas sim o primeiro. A primeira interação de uma nova experiência. Uma nova situação com a minha avó falecida há anos.

“Então esse é o potencial que o Matthew tanto falou…”

— Fala alguma coisa, menino! Você brigou com a Mariah de novo? Vocês dois não conseguem ficar um dia sem brigar, né?!

Ainda não consigo conceber o que está acontecendo. Não sei como interagir com ela. E ela mencionou a Mariah. Eu terminei com a Mariah há muito tempo. Foi muito antes de eu me casar com a Elisa…

“Espera! Se ele recriou a minha vó, a casinha dela, o cheiro de bolo no vestido e até a verruga, ele pode recriar…”

— Felippe?

“Essa voz!”

Meus olhos se enchem de lágrimas novamente.

“Seu filho da puta! Como você ousa recriá-la?!”

Uma mão quente e macia toca meu ombro e eu reconheço exatamente a maciez. O toque de minha esposa que faleceu há 2 anos em um acidente de carro. Não me contenho. Caio de joelhos com a mão em meu rosto, cobrindo as lágrimas, como uma criança.

— Não se preocupe, meu amor. Eu te perdoo. Eu sei que não foi sua intenção.

Chorei como não chorava há muito tempo. E precisei de muita coragem para levantar os olhos e visualizar o rosto dela. Esse rosto eu conheci muito bem, e percebi algumas falhas de modelagem.

Matthew deve ter usado os vídeos e as fotos como referência. Mas havia mais de 6 meses que ela não tirava uma foto antes do acidente.

“Ela não é real. Isso não é real!”

Até que enfim tomo coragem suficiente para falar.

— Você não é real, não é mesmo?

— É claro que sou real, meu amor. Tanto quanto você e sua Avó Anna ali atrás.

Ela toca meus braços, ajudando a reerguer-me. O toque é tão real, o vento, o calor do sol, o cheiro das flores, o chão embaixo dos meus pés.

— Eu não trocaria isso por nada…

— Então aproveita, meu nerd. Cada segundo!

Ilustração: Matheus Vieira e Téo Fabi

Ela se aproxima do meu rosto. Ter me chamado de “meu nerd” me fez ficar emocionado novamente. E sem relutância alguma eu me entreguei ao beijo.

Um beijo quente e molhado, tão genuíno quanto o primeiro beijo que dei nessa boca na frente da casa dela há 8 anos atrás.

Um beijo doce e amargo ao mesmo tempo, carregado com prazer e pesar.

E apesar de tudo, para mim, um beijo real. E que definiu em um segundo quão desejoso eu estou em obter essa experiência dia após dia.

Custe o que custar!

Conto feito por César Domingos / Ilustrações por Vitor Teles , Matheus Vieira e Téo Fabi

Feito pela matéria de Design Fiction ministrada por Allan Mendes / Título original “O Beijo”

Pósfacio

Esse conto vai direto ao ponto ao tratar de uma tecnologia de futuro próximo com detalhes que lembram o cyberpunk. O fato de lidar com memórias pessoais e recriar um espaço semelhante a um sonho lúcido é uma temática interessante, que nos faz questionar se a virtualidade é mesmo algo distante de obtuso, sendo que contêmos em nós, humanos, pequenos pedaços de sonhos e imaginações que transformam nossas identidades e sentimentos a todo momento.

Em nossos sonhos costumamos questionar o quão real algumas pessoas são, sua voz e o seu modo de agir, tiques e reações, como se em nossa mente coubesse todas informações necessárias para copia-la com exatidão cirúrgica.

Porém, isso abre precedências para que novas memórias sejam construidas, deixando espaço para que nossos sentimentos, desejos e o subconsciênte interfiram, além de criar preconceitos em relação as pessoas que essas virtualidades representam, já que esses “avatares” não são elas, nem controlam suas ações. Sem citar a possibilidade de se viciar nessa realidade simulada, dificultando períodos de luto invés de reforça-lo.

Por acaso, ele lembra um videoclipe do TV on the Radio, que retrata um rapaz se utilizando de uma tecnologia parecida para relembrar as memórias de um amor perdido. “Bonus points” pelo look DIY/Hacker da tecnologia.

Allan Mendes

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Allan Mendes
Speculous

Designer, teacher and foresight researcher. Posts about rabbit holes, cyberpunk and the zeitgeist