Josan Gonzalez

Nowpunk: como nos tornamos em um gênero de ficção

Allan Mendes
Speculous
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11 min readMay 30, 2018

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A pandemia de sofrimento mental que afeta nosso tempo não pode ser devidamente compreendida, ou curada, se vista como um problema privado sofrido por indivíduos danificados. (Mark Fisher)

Esse texto começou a ser escrito em janeiro de 2016, passando desde então por diversas reformulações e autocríticas durante as pesquisas feitas em torno dos gêneros de ficção e práticas em design.

Essa demora foi positiva, porque deu para perceber nesses anos o que eram modas momentâneas e o que eram constantes de nossa atualidade.

Algumas presunções escritas aqui acabaram (infelizmente) se tornando realidade, como as instabilidades democráticas e provas da existência de um mundo pós-político, antes citadas apenas como ficções.

Os estudos basearam-se principalmente nas ideias apresentadas no livro Speculative Everything por indicar problemas do atual imaginário coletivo estagnado, e por semear a esperança na possibilidade de sonhar e construir realidades diferentes.

Simulações e Simulacras, representando nossas trocas de símbolos reais por simulações e virtualidade, que podem ser desde skins de jogos online, marcas de leite que afirmam serem de fazendas fictícias a bombardeios reais baseados em acusações falsas.

Outra referência é o livro Sociedade do Espetáculo, ao mostrar que a nossa realidade mediada por redes sociais e políticas por não políticos é um trend que veio para ficar.

Em conjunto com a ideia de atemporalidade, já abordada por Bruce Sterling, confirma ainda mais que o nosso sentimento de Presente vai persistir por ainda mais tempo, já que nossa relação com a história mudou com a cessão da linearidade dos livros que foi trocada pelas relações plásticas da Internet.

As obras do canal do Youtube e selo editorial Zero Books se mostraram úteis para a produção desse material ao dialogar sobre o vaporwave, a cancelação do futuro e os fantasmas das mídias passadas. Principalmente pelas obras do querido Mark Fisher — infelizmente vítima da depressão em 2017—, ao nos revelar um ponto de vista importante ao descrever a nossa aparente estagnação temporal e de esperanças a futuros diferentes.

Tudo começou com uma constante indagação sobre como classificar determinadas obras de ficções contemporâneas que, ao mesmo tempo que tinham elementos do cotidiano, ainda tinham uma semente "punk" transgênica. Mr. Robot, Dennō Coil, episódios de Black Mirror, e outras obras que serão apresentadas no texto.

Eu, alunos e amigos começamos a classificar certas obras como “Nowpunk”, quando seus elementos de narrativa representavam não somente elementos do cyberpunk, distopia e tecnologia, mas que abraçavam problemas que estamos vendo aqui, agora.

Problemas, inclusive, que aparentavam já terem sido citados em obras de outros gêneros, como distopia e pós-apocalismo, reforçando essa ideia de vivermos uma realidade imersa de ficções.

Essa reflexão veio em conjunto com a propagandização do gênero cyberpunk de ultimamente. Seja com o insosso Ghost in the Shell hollywoodiano, Blade Runner 2049 e o Cyberpunk 2077, o gênero aparenta sim estar sendo revisitado, seja por causa de sua estética para alguns mas também pelos seus paradigmas para muitos.

Conversas despretensiosas que logo criariam então um material de estudo suficiente que ainda em 2016 viraria uma aula para o curso de “Design+Narrativa”, na qual exercitamos a partir destas dúvidas a criação de um gênero especulativo baseado em críticas ao nosso atual desenvolvimento social e tecnológico.

Só que invés de utilizar obras ficcionais para engatilhar o assunto, utilizamos nossa própria realidade para servir base para um gênero. E com o passar do tempo, na pesquisa em “Design + Narrativa”, exemplos de como a literatura e outras mídias especulativas coparticipavam ficaram ainda mais evidentes.

Watch Dog 2: A narrativa hacker contra megacorps do Vale do Silício de uma forma pop; A ficção científica somos nós.

Os paradigmas políticos e sociais mostraram-se muito próximos aos métodos de construção de narrativa e aos de design que estavam sendo analisados, junto com as tecnologias e acontecimentos mundiais previstos em ficções científicas que já se realizaram nesses últimos 3 anos, configurando-se assim em profecias autorrealizáveis.

Meu foco nunca foi querer antecipar o futuro, mas apenas declarar suas diversas possibilidades e complexidades. Alguns dos exercícios feitos em sala, por exemplo, é sobre escrevermos contos baseados em futuros inevitáveis da automação; discutir sobre transumanismo e as ventures atuais que visam nos fundir com máquinas; e dialogar sobre como nos afundamos em um poço de simulacras que podemos chamar de hipernormalização.

Nesse meio tempo, a semelhança entre nossas reflexões e a realidades fictícias de várias obras começaram a aparecer. A praticidade do design, de construir para resolver, começou a se desmontar, e nossas práticas de crítica e especulação surgiram como principais armas.

Cena do filme Ghost in the Shell (2017); Apesar de suas críticas, a arte conceitual do filme revela algo: as máscaras são baseadas nas mesmas das Forças Armadas de Taiwan. Nossa atualidade faz a mão contrária e serve de inspiração para futuros cyberpunks.

Mr. Robot, por exemplo, conseguiu se destacar por retratar um protagonista cuja especialidade não é um superpoder sobrenatual, mas sua habilidade de hacking excepcional e uma depressão crônica causada pelo nosso mundo atual. Seus antagonistas são difíceis de definir, onde o status-quo da sociedade pós-capitalista se destaca — imponente e invencível — como principal vilã.

Black Mirror e suas narrativas que giram em torno de tecnologias atuais expandidas está no Netflix, trazendo ao público de fora dos círculos de futurismo e sci-fi conceitos mais palpáveis, acerca dos riscos e impactos que as tecnologias atuais e futuras irão construir e estão construindo.

Serial Experiments Lain e diversas outras obras continuam sendo discutidas, como Pedras de Roseta ainda não decifradas em sua completude, revelando de pedaço em pedaço quem e o que somos agora, nos levando mais a fundo de um diálogo que revela como a internet alterou severamente nossas relações interpessoais e como nós construímos nossas próprias identidades em um mundo afogado de digitalismo.

Portanto, o objetivo atual desse texto é de introduzir alguns assuntos e semelhanças das ficções especulativas aos nossos dias atuais, para que então possamos construir um gênero artificial que possa servir de exemplo para percebermos problemas e características únicas do nosso presente.

Assim, poderemos ter um início para encarar os círculos de apatia que nos cercam, mesmo que em uma esfera do faz de conta e nos ajudar a sonhar com futuros diferentes dos que estamos acreditando agora.

Antes de mais nada, levanto aqui um ponto pelo qual o texto foi escrito: Uma perspectiva de um jovem do Brasil. O cyberpunk começou como uma narrativa importada, onde escórias de uma sociedade ultra-tecnológica, capitalista e corporativista tentam sobreviver e coexistir em um espaço que lhes foi cooptado, onde a diferença entre ser humano e as próprias máquinas começam a se desmanchar.

Esse será assunto para outro tópico, portanto, vamos começar esse texto logo.

Ah não… outro -punk?

Ok, todos nós já sabemos do -punk, o sufixo mais traumatizado do mundo graças às diversas tentativas de desbancá-lo com seu uso excessivo nas mais variadas categorias, onde bastando ser uma estética fechada com uma meia dúzia de filosofias o suficiente para reivindicar um rótulo com o sufixo — indicação da torpe doença humana mais presente em nós: a de catalogar tudo e todos, sem deixar espaço para que ideias e expressões consigam fluir, caindo em mais uma cama de Procusto.

Mesmo com esses exageros de formulações de gêneros, não podemos retirar o mérito desses produtores que tanto lutam por suas visões de realidades diferentes.

Steampunk: Apesar do gênero se inspirar em fórmulas do cyberpunk, ela permanece como uma subcultura sem muito apreço a filosofias de seu inspirador: Não há punk, mas sim, em sua maior parte, um nicho de consumidores dessa mídia estética. Fonte: steamgirl.com

Antes de vir com suas pedras nas mãos por eu tentar vir com outro solarpunk, recomendo que vejam este vídeo do Idea Channel que irá digerir junto com você que sim, esse conjunto de características que o cyberpunk criou (e também seu uso de referência exagerado) não é excepcional a seu gênero.

Simplesmente abraçar a ideia de que o cyberpunk deve permanecer estagnado, transformando-se em um fragmento de memória cristalizado, um retro-80’s, seria ignorar a sua relevância em nosso tempo e sua maior preocupação: nós e o futuro que ele imaginava.

Maquiagem camuflando o rosto de uma modelo dos algorítimos de reconhecimento facial

Vivendo agora em uma realidade permeada de Assanges, golpes políticos, guerras-fantoches e a ineficácia da imposição "democratica" ao redor do mundo, levando muitos a crer que si, estamos sendo levados a um futuro distópico, tecnológico, pós-apocalíptico e retro-futurista; e não foi porque as ficções científicas começaram a acertar mais sobre o nosso dia a dia, mas porque a nossa realidade começou a se transformar em pequenas ficções.

Essa amálgama de ficções e realidades nos faz chegar a algumas perguntas singulares:

1. O cyberpunk é capaz de existir ainda hoje?

2. Como seria o nosso próprio “-punk”?

3. O que nós esperamos de nosso presente e futuro?

Perguntas pesadas (que podem elas mesmas estar erradas) e que não vou conseguir responder nesse texto, mas que irei abordar nos outros desta série. Elas são respondidas de tempos em tempos de formas diferentes, mas cada vez só indicam uma sensação universão de eminência distópica, solidão e falta de horizontes para resolução para problemas como guerras, ultracapitalismos corruptos e política.

Mesmo assim, conceber a construção do que seria um gênero de narrativa nowpunk nos auxiliaria a encontrar quais seriam essas características que nos estagnam, catalisando inclusive outras questões para que, possamos então, sonhar com um futuro diferente.

Assim como o material filosófico e estético construído pelo gênero cyberpunk nos anos 80–90 pode ser usado de termômetro para nos indicar quais eram as preocupações e desejos para o futuro àquela época, um nowpunk nos daria pistas, referências de quando esse mágico futuro teria chegado.

Black Mirror: Nossa realidade, só que em uma distância segura.

Nós já vivemos em um mundo em que robôs são utilizados como seguranças. Pessoas vivem em um estado de vigilância severo por corporações e Estados, no qual a internet e suas redes permeiam nossos costumes. O cotidiano é entrecruzado por guerras eletrônicas entre países, chips em cérebros, roubos multimilionários em criptomoedas, hackers interferindo ativamente em governos, a automação substituindo pessoas em seus empregos, e a grande parte dos trabalhos sendo feita frente a um computador por 8 horas seguidas (como eu nesse exato momento).

Enquanto boa parte das ficções especulativas criam cenários distantes e fantásticos, futuros distópicos ou até mesmo reinvenções históricas, o nosso cotidiano é inserido em uma teia de características mundanas, como Facebook, Instagram, pós-verdades e fake news.

Portanto, foram percebidas algumas constantes em narrativas que abrangem as tecnologias atuais e “em fase beta” de nosso tempo. Tanto os problemas, e características de personagens quanto próprio cenário apresentam certos elementos que indicam uma situação distópica silenciosa à qual todos assentem e contra a qual ninguém consegue ter força e espaço para lutar.

Okay, e para que serviria esse tal de nowpunk?

A proto-idéia de nowpunk já foi pensada e citada por Bruce Sterling e pelo próprio Willian Gibson, mas existe atualmente quase nenhum material publicado cujo objetivo fosse discutir sobre o que isso é. “Quem são seus praticantes?”; “É um movimento artístico?”; “Qual o objetivo?”.

Então chegou a hora: Essa palavra nasceu para ser mais um gênero especulativo estético, para servir de molde criativo ou para fazer uma crítica ao que estamos passando hoje? Vejamos então.

Isso fez com que esse “gênero” acabasse se tornando uma ficção.

Nenhuma discussão existente, fazendo com que “nowpunk” fosse uma palavra de uma aparição só, um meme morto, já foi zoado em diversos textos, que ignoram por completo o que um dos maiores expoentes do cyberpunk apresentou.

Serial Experiments Lain e o hacker como protagonista; Redefinindo conceitos de consciência, identidade e narrativa na Era da Informação

Isso fez com que esse “gênero” acabasse se tornando uma ficção, uma palavra solta sem significado. Tanto por não conter obras que se reconhecessem como tal, quanto por não conter elementos suficientes para poder se diferenciar de narrativas contemporâneas. Enquanto o “steampunk” contêm sua estética e o “cyberpunk” um grande background ideológico, esse protogênero que deveria representar nosso cotidiano acabou sem referências suficientes para ser mencionado ou construído como algo reconhecível.

Para que ela ganhasse então um significado na aula de nowpunk, partimos do princípio de nossa realidade ser literalmente uma ficção, para então identificar-mos características suficientes para construir esse gênero fictício. Isso emerge da quantidade de elementos de nossa realidade que parecem ter sido citados literalmente de ficções especulativas.

Slides da aula de Nowpunk: Após 13 aulas descobrimos que não estavamos falando de ficção científica, mas sim de nossos quintais.

Para o cyberpunk construir esses futuros próximos, teriam que imaginar esse processo dos anos 2000 que estamos passando agora. Imaginaram então megacorps com poderes infinitos, a queda de coletivismos e do bem estar social, e principalmente a dualidade entre homem e máquina que começaríamos a passar. Receitas de uma realidade que está batendo em nossas portas no momento em que você lê este texto.

Extremismos ressurgindo como promessas e soluções sociais e econômicas

Peguem por exemplo os casos do Julian Assange e seus vazamentos que iam desde informações de Guantanamo a vídeos da Guerra do Iraque. Da morte do Aaron Swartz, o garoto da internet. Ou do whistleblower mais importante dos últimos tempos, o Snowden, que atualmente está exilado na Rússia por ter vazado milhares de informações da NSA, comprovando por exemplo complôs entre fabricantes, empresas de telecomunicações e Agência Central de Inteligência do EUA para que falhas de software permanecessem, e senhas pudessem continuar sendo fracas. Também, comprovando que a CIA espionava o governo brasileiro e seus planejamentos petrolíferos, o que pode abrir questões relevantes ao atual quadro político brasileiro.

Este documentário narrado pelo próprio Rami Malek, protagonista de Mr. Robot, sobre o projeto Titanpoint. Nesse vídeo, ele lê arquivos da NSA, relacionados a um prédio no meio de Manhattan, sem janelas e concretado, que serve de base de operações e de coleta de dados da própria NSA.

Rami Malek foi convidado para esse documentário porque, no final da segunda temporada da série, o mesmo edifício tinha um papel fundamental no enredo, sendo ele o mesmo que os produtores do curta estavam investigando.

As referências de, Mr. Robot, Serial Experiments Lain ou à Trilogia Millenium atestam que acabamos por construir um consenso da nossa realidade, junto a um grande quadro de referências vindas de ficções.

Com tudo isso podemos então encontrar alguns elementos que constroem uma ficção nowpunk. Não vou poder escrever por completo sobre eles aqui agora, pela enorme quantidade de conteúdo que cada um aborda.

E agora?

Eu sei que já falei boa sorte, então deixo um obrigado por ter lido esse artigo — que já dura 2500 palavras — . Meu intuito era apenas começar o diálogo e vencer minha procrastinação.

Quero falar de vaporwave, lofi hip-hop, solidão contemporânea, representatividade e muito mais, o que deixaria esse texto longo demais. Então vamos com calma.

Acho que consegui introduzir a idéia do que seria um nowpunk, que querendo ou não serve de um exercício para começar certas comparações e reflexões sobre o que estamos passando atualmente.

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Allan Mendes
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Designer, teacher and foresight researcher. Posts about rabbit holes, cyberpunk and the zeitgeist