O cyberpunk nosso de cada dia

Speculous
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5 min readJul 11, 2016

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O termo “cyberpunk” foi cunhado pelo autor Bruce Bethker no início da década de 1980, em referência a um gênero de ficção que aborda como desparidades sociais ainda se fazem presentes em futuros com tecnologia considerada avançada, podendo ter inclusive aumentado graças a seus próprios gadgets. As histórias desse gênero podem ser sumarizadas pela frase “high tech, low life” (“alta tecnologia, padrão de vida baixo”), que, no atual ano de 2016, também define muito bem problemas de cunho social e político mundo afora. O universo desenvolvido por William Gibson em Neuromancer ou por Katsuhiro Otomo em Akira não se assemelham muito ao nosso quando se trata do uso de neons, motocicletas luminosas ou até mesmo superpoderes, mas não se pode negar o quanto as críticas sociais feitas nas primeiras obras do gênero se fazem bastante presentes por meio de outras tecnologias.

Histórias a parte, é bom entender que essa era uma visão futurista que envolvia principalmente o conceito de “tecnologia”. Tecnologia que, desde o final da II Guerra, começou a expandir de uma forma muito violenta em comparação ao resto da história humana. O choque cultural, ocidental e oriental, começou a demonstrar como a tecnologia podia engolir e deformar a cultura e nossos conceitos de humanidades. Portanto, não são coincidências que essa ficções apresentem problemas que começamos a passar atualmente.

Um primeiro exemplo de como isso ocorre é a atual crise dos refugiados na Europa, que há alguns anos começou a se tornar notícia em jornais do mundo todo. Desde a década de 50, com a decadência do Imperalismo europeu, as grandes nações do ocidente estão relativamente acostumadas a receber imigrantes asiáticos e africanos em situação de risco, causada pelos problemas políticos deixados pela antiga ocupação europeia. Esse tipo de imigração ocorria sazonalmente, em paralelo a conflitos nos dois continentes, e não dizia respeito a muitas pessoas senão os responsáveis por abrigar os novos imigrantes.

O que explica então o nível de visibilidade que a atual crise de refugiados impulsionada pelos conflitos na Síria está tomando? Vários fatores relacionados à tecnologia e desequilíbrio social podem explicar isso: não só o número de desabrigados é assustador, chegando a 2 milhões de novos refugiados por semana desembarcando em países do sul europeu, como pela primeira vez na história existem sistemas de comunicação imediato que ajudam pessoas a se contactarem e se localizarem em terra e no mar em questão de segundos — razão pela qual grande parte dos refugiados têm um smartphone junto a seus poucos pertences.

Cena do videoclipe “Duas de Cinco + Cóccix-ência” de Criolo, representando o bom e verdadeiro cyberpunk com nossos problemas reais: “High tech, low life”

Relacionado a isso, vêm os veículos de grande mídia, que não se reduzem apenas a jornais que publicam o que querem, mas também contas no Facebook e tweets que podem veicular vídeos sobre maus tratos contra imigrantes em segundos para o mundo inteiro. A popularização de remédios que combatem doenças consideradas letais antigamente, como gripe e tuberculose, também ajudam muitos a chegar no continente ainda vivos.

Um outro ponto em que obras de cyberpunk previram nossa realidade foi o dilema da segregação socioespacial: existe um número cada vez maior de pessoas no mundo, o que gera uma concentração urbana cada vez mais caótica, e recursos como água limpa e energia elétrica mais escassos. Misturado a isso, questões dessa década como gentrificação (bairros pobres se tornando bairros nobres rapidamente, expulsando os habitantes antigos, que não podem pagar mais por eles) e guetos que nascem com invasões em grandes cidades contrastam com os prédios cada vez maiores e mais tecnologicamente desenvolvidos, como o Burj Khalifa, em Dubai, considerado maior prédio do mundo.

Pode-se citar como grandes contribuidoras para isso o poder que as mega-corporações vêm ganhando com o desenvolvimento de países emergentes. Se tornou cada vez mais comum para empresas norte-americanas e europeias terceirizarem seus serviços para países com mão de obra mais baratas, e, muitas vezes, sem proteção legal para seus trabalhadores. Não é incomum ver notícias sobre empresas como a Zara e Forever 21 submetendo seus empregados em países mais pobres a condições análogas a semi-escravidão, assim como casos de suicídio em fábricas chinesas que são atribuídas às intensas jornadas de trabalho. O papel de grandes blocos econômicos em muitos desses casos é de apoio às corporações, o que faz com que países economicamente periféricos temam o monopólio e controle de recursos básicos em um futuro próximo.

William Gibson podem imaginado um futuro mais analógico, quanto a humanidade utilizar video-cassetes de bolso, ou avançado demais ao explorar drogas para enxergar o cyberespaço, mas o que diferencia esses artigos das redes sociais que existem atualmente? Podem não ser as mesmas ferramentas, já que o boom da internet e das redes sociais não foi previsto por boa parte da ficção cyberpunk do século passado, mas as questões sociais abordadas ainda se fazem bem presentes. Os video-cassetes de bolso existem como o Netflix e diversos serviços de streaming online, e em Akira a população faz uma série de protestos muito bem televisionados contra um evento mundial, tal qual várias cidades de países economicamente desequilibrados que receberam as Olimpíadas ou Copa do Mundo dos anos 2000 pra cá. Ainda temos fome, guerras, censura e questões sociológicas impactantes, ao mesmo tempo que pessoas acampam na frente de uma Apple Store esperando o próximo lançamento.

A década de 2010 é o cenário em que se passam várias obras de cyberpunk antigas, como Blade Runner, em que o protagonista caça andróides conhecidos como “replicantes”. E, apesar da estética ser bem diferente, a moral das histórias e as jornadas dos personagens, muitas de nossas tecnologias já avançaram além do que foi especulado. O que deixa como questionamento: já vivemos numa realidade cyberpunk, afinal de contas?

Post por João Victor Santos Rocha, para o grupo de estudo sobre Design Fiction da UnB, ministrada por Allan Mendes

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